14 de dezembro
RALI E AVENTURA NA CHAPADA GRANDE
Elmar Carvalho
Em virtude de estar respondendo pela Comarca de Arraial, durante as férias da titular, juíza Nazildes Santos Lobo, fui ontem a essa cidade. Preferi ir por dentro da Chapada Grande e retornar por Francisco Ayres e Amarante. Logo ao sair desta cidade de Regeneração, começou uma chuva, que, ora mais forte, ora simples chuvisco, durou toda a viagem. Em certos trechos, quando apenas serenava, aproveitei para tirar umas fotografias, que ficaram um tanto prejudicadas por causa da baixa luminosidade. As folhagens estavam bem verdes, lustrosas, e os córregos já começavam a correr. Em certo ponto, pude escutar a estridência alegre de uma cigarra cantadeira, em dueto com um passarinho, que parecia louvar a chuva mansa que caía. Algumas “passagens molhadas” estavam realmente molhadas, com os riachos a passar sobre o concreto da construção. Os morros, colinas e chapadões verdejavam à distância. Redobrei o cuidado, temendo a picape escorregar sobre as ladeiras úmidas. Felizmente, não houve nenhum perigo e nenhuma derrapagem.
Essa viagem me fez lembar uma anterior, feita três anos atrás, em que fiz o mesmo périplo. Fui em companhia do soldado Pereira, hoje reformado, que na época estava à disposição da Justiça. Quando assumi a Comarca de Regeneração, ele era chamado apenas de Raimundinho; brincando, disse que ia promovê-lo a Pereira, seu apelido de família, porque esse nome impunha mais respeito, mormente em se tratando de um militar. Após despachar os processos mais urgentes da Justiça estadual, fui até a serventia eleitoral. Lá, ao saber que eu iria voltar por Francisco Ayres e Amarante, o chefe do cartório, por duas ou três vezes, me recomendou que não passasse por cima de uma ponte de madeira, que estava danificada; que eu seguisse por um atalho que havia, e passasse pelo vau do rio. Fiquei um tanto preocupado, pois o “inverno” estava rigoroso na época. Em seguida, fui com o Pereira almoçar num dos restaurantes de Arraial. Comemos um peixe delicioso. Pedi a conta à dona do estabelecimento. Ela deu o preço. Quando eu ia puxar a carteira de cédulas, ela refez o cálculo, dizendo que havia esquecido de incluir uma Coca-Cola; quando, novamente, eu me preparava para sacar o dinheiro, ela voltou a alterar a conta, alegando que não incluíra uma cerveja; na terceira vez, não vacilei, e lhe coloquei o dinheiro na mão, antes que ela alterasse o preço, como sempre para um valor mais elevado. Quando ela processava os dados mentalmente, levantava os olhos para cima, revirava-os, como se em busca de inspiração. Mas foi um preço justo, porquanto a comida estava realmente saborosa. No restaurante, voltei a encontrar o chefe do Cartório Eleitoral, que nele fazia as refeições. Novamente, ele me advertiu que, em hipótese nenhuma, passasse sobre a ponte.
Imediatamente, seguimos em direção a Francisco Ayres. Imprimi uma velocidade razoável, mas tendo em vista que a estrada era cheia de curvas e ladeiras, e recoberto o seu leito com a traiçoeira piçarra, propícia a derrapagens. Quando menos esperei, vi a famigerada ponte à minha frente. Não tive dúvida, pisei no freio. A picape quase fazia um “cavalo de pau”. Manobrei em direção ao atalho. Para minha decepção, a correnteza do rio estava violenta, e não havia a menor condição de atravessá-la. Quando eu já me preparava para retornar, e fazer o percurso pela Chapada Grande, o que me causaria um considerável prejuízo de tempo e combustível, enxerguei um rapaz numa motocicleta, que vinha em sentido contrário. Esperei que ele chegasse até nós. Com firmeza, ele me garantiu que eu poderia passar por cima da ponte, pois na manhã daquele dia um caminhão do tipo ¾ passara sobre ela. Agradeci ao motociclista, e me preparei para enfrentar o desafio. As vigas trepidaram, estalaram, gemeram e rangeram como a moenda do poema de Da Costa e Silva, balançaram, mas não caíram. Exultante, ultrapassei aquela geringonça desengonçada e capenga, em que a ponte, verdadeira arapuca, havia se convertido.
Quando atravessei a cidade de Francisco Ayres, novo desafio me esperava. O rio Canindé, naquela forte estação chuvosa de três anos atrás, estava cheio, com as águas correndo fortemente sobre o paredão da barragem, como se este fosse o sangradouro. Era por ali que eu deveria passar. Não vou mentir, fiquei com medo. Perto da barragem existia o esqueleto de uma ponte inacabada. Do local se viam as vigas e pilastras de concreto do que deveria ser uma ponte. Lamentei tanto descaso, tanto desperdício de dinheiro público, já que aquele monstrengo de cimento para nada servia. Ante o inelutável, perguntei a um pescador se dava para passar sobre o paredão da barragem. Respondeu-me que sim. Indaguei-lhe, em tom de brincadeira, se ele garantia; retrucou-me que não, mas que há poucos minutos um automóvel passara sobre a barragem. Aduziu que eu deveria me nortear pelo “caculo” da água, na borda esquerda do paredão. Manobrei o carro em direção à barragem, sem enxergar o piso por onde passaria, e sem ter noção da profundidade da lâmina d' água que o recobria. Quando estava no meio do percurso, olhei, de esguelha, o bravo Pereira, com a água a turbilhonar na borda esquerda da barragem e a despencar no abismo do lado oposto. Sua pele da cor do ébano tomara uma cor que se aproximava da tonalidade das garças. É claro que estou brincando. Afinal, o soldado Pereira faz jus ao nome que ostenta. Como dizia o senhor Augusto Pereira, pereira é pau amargoso, é madeira de lei, é cacete de dar em doido. Que os doidos e os politicamente corretos, mais reais do que os reis, não me leiam. Graças a Deus, escapei são e salvo desse verdadeiro rali improvisado pelas ladeiras, montes, chapadões, abismos, veredas e pinguelas dessa Chapada Grande de tanta beleza e encantamento.
Chapada Grande, é a natureza na inspiração do poeta, a força capaz de impelir o homem à condição de poeta é de natureza divina.
ResponderExcluir"A inspiração poética é um delírio equilibrado, mas sempre um delírio" (Fernando Pessoa).
Nativa
ResponderExcluirNatura
Natureza
De véu.
Nuvens que passeiam
Nuvens que beijam
Mãos que tocam
O céu.
Meritíssimo,
ResponderExcluirA maneira como você conta histórias, com vivências do cotidiano, é nota dez. Eu tô acompanhando, sempre, situações como essa do rali pelo Sul do Piauí (é essa região mesmo onde fica a tal Chapada?) e me transporto no tempo.
Você sempre foi ótimo na arte de passar para o papel aquilo que pensa, que vive... Me lembro dos gloriosos tempos do Colégio Estadual, quando você já emitia sinais de que seria um homem de Letras. Parabéns mesmo pelo texto.
Antonio de Souza, jornalista, Cuiabá-MT
Eu concordo com o que a pessoa aí em cima disse.... a maneira como tu conta histórias cotidianas desperta bastante o nosso interesse e nos levar a imaginar o cenário e tudo o mais. Realmente merece nota 10.
ResponderExcluirEstes cenários ao meio da Chapada me fez lembrar um povoado chamado Riachinho municipio da cidade de São João dos Patos-Ma, normalmente visito este lugar nas minhas férias (terra natal da minha esposa) cumprimentá-los os amigos, colocar o papo em dia e tomando uma gelaga.O mais engraçado é o porquinho fuçando algum caroço de manga.(rs)
ResponderExcluirdireto de sp.
Conheci, caro Horácio, de passagem, a cidade de São João dos Patos, porque, quando servi em Ribeiro Gonçalves, algumas vezes indo ou voltando, fiz o percurso pelo Maranhão, passando por Barão de Grajaú, São João dos Patos, Pastos Bons (terra natal do Dr. Celso Barros), São Domingos do Azeitão e Benedito Leite. Esta última cidade era ligada a Uruçuí através de um pontão, que atravessava os automóveis e as carretas, carregadas de soja. Recentemente, foi construída uma ponte. De Uruçuí eu seguia para Ribeiro Gonçalves. De forma que conheci os cerrados e as chapadas maranhenses e piauienses. No Dicionário histórico e Geográfico do Estado do Piauí, de Cláudio Basto, que contribuí para publicar, quando fui presidente do Conselho Editorial da Fundação Cultural Mons. Chaves, encontra-se o verbete: "CHAPADA GRANDE - Serra. Regeneração e Arraial, fazendo limites deste com Francinópolis e Várzea Grande."
ResponderExcluirÉ bem proválvel caro Elmar que já nos cruzamos em rodovias do Piauí e Maranhão, porque: até o ano de 2005 eu fazia rota SP a Campo Maior/Maranhão de veículo sabedor das péssimas condições das estradas, indo pelo centro-oeste cruzava a Belém-Brasilia passando por Araguaiana até o Estreito ou desviava até Filadélfia fazendo atravessia de balsa pelo rio Araguaia já em terras maranhenses até o destino São João dos Patos. Pelo planalto central saía de Brasilia até Barreiras-Ba já no limite do Piauí precisamente chegando a cidade de Corrente seguindo o retão até Floriano, de modo que, geograficamente conheço um pouco das planícies brasileiras e a sua faúna. De 2007 para cá o percurso ficou mais curto, no máximo quatro horas de viagem, a última foi em 2009 desembarcando em Teresina debaixo de um pé dágua, fazendo o uso necessário do guarda-chuva, esta façanha foi o máximo, calor e chuva.
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