ROTEIRO DE UM CRIME
Elmar Carvalho
No início da década de 1960 não havia linha de ônibus de Recife para Teresina. O passageiro que estivesse na capital pernambucana teria que seguir para Fortaleza, para desta cidade prosseguir em demanda da capital piauiense. Por essa razão, algumas pessoas optavam em ficar no restaurante de um dos postos de combustível na saída de Recife, para tentar conseguir uma carona com algum caminhoneiro, que tivesse frete para Teresina. Nesse tempo os crimes de assalto eram raros, de modo que os motoristas davam carona sem maior dificuldade, até porque ainda recebiam uma gratificação, correspondente ao preço de uma passagem de ônibus ou até mais.
O motorista Gregório da Silva fazia sua refeição a uma mesa do restaurante, num dos postos de combustível, na periferia de Recife, quando uma pessoa pediu licença para sentar-se à sua mesa. A pessoa disse chamar-se João Damásio. Esclareceu que era comerciante, estabelecido no povoado Morrinhos, que ficava um pouco antes de Teresina. Falou que tentava conseguir uma carona, em algum caminhão que fosse para a capital piauiense. Gregório, a princípio, não declarou seu destino, um tanto desconfiado das reais intenções do interlocutor. Afinal, embora raros, os crimes existiam. Notara que o outro trazia uma pasta de couro, que poderia conter duas ou mais mudas de roupa, além de outros objetos, até mesmo alguma arma. Perguntou o que o suposto comerciante viera fazer no Recife. Damásio lhe respondeu que, aproveitando um caminhão que ia voltar vazio para Recife, fretara-o, por um preço razoável, para trazer uma carrada de cera de carnaúba, tucum, azeite de coco babaçu e pele de animais, produtos que comprava para revender; que já fizera esse procedimento algumas vezes, pois era mais rentável que vender esses produtos a intermediários de Teresina. Acrescentou que fora bem sucedido no negócio. Gregório sentiu que o homem falava a verdade, embora demonstrasse ser um tanto ingênuo, e algo falastrão. Resolveu conduzi-lo. Pediu-lhe que aguardasse ali mesmo, uma vez que ainda ia fazer uns ajustes no caminhão e abastecê-lo. Para assegurar a carona, João Damásio disse que iria lhe dar uma boa gratificação.
Durante a conversa no restaurante e agora no carro, Gregório começou a fazer algumas conjecturas. João Damásio, a seu lado, deveria estar conduzindo uma boa soma de dinheiro, pois ele mesmo dissera que fora bem sucedido na venda dos produtos que trouxera. Por outro lado, um povoado como Morrinhos não dispunha de agência bancária, de forma que o dinheiro era conduzido em espécie. Começou a ter estranhos pensamentos, que tentava afastar, por serem malignos. Mas esses pensamentos eram insistentes, e retornavam. Lembrou-se do “pai nosso” que sua mãe lhe ensinara, e pedia a Deus para não cair em tentação. Contudo, os pensamentos voltavam tentadoramente, e lhe lembravam que seu salário de caminhoneiro mal dava para o sustento da família, ainda mais agora com a vinda do caçula, que tinha apenas dois meses. A dívida na mercearia, a ser paga no final de cada mês, só aumentava de mês para mês. Nunca pegara no alheio, embora isso já lhe tivesse passado pela cabeça, nos momentos de maior acocho financeiro. Conhecia o ditado que afirmava que a ocasião fazia o ladrão, mas nunca desejara isso para si. A recomendação materna para não roubar e nem matar era forte em sua lembrança.
Tiveram que pernoitar em pousada de beira de estrada. O passageiro se prontificou a pagar o pernoite e o jantar, e ainda convidou o motorista para tomarem antes umas três cervejas, geladas em refrigerador a querosene. Após a terceira garrafa, Damásio se mostrou ainda mais conversador, e terminou por revelar que o negócio fora muito bom, e que ele obtivera uma boa soma em dinheiro, com a qual pretendia dar uma boa entrada na compra de um jeep, para as suas viagens entre Morrinhos e Teresina, e também para ganhar algum dinheiro com frete. Após a refeição, foram dormir, no quarto que lhes foi destinado. Embora pudessem dormir no mesmo quarto, o que diminuiria a despesa, o comerciante, sob a alegação de que roncava alto, preferiu pagar dois quartos. Gregório entendeu que era alguma desconfiança de Damásio, afinal ele sempre se mostrava vigilante com a pasta e nunca dela se afastava. Estava no seu direito de cautela, afinal eram estranhos, nada um sabendo da vida do outro.
Gregório não dormiu direito, incomodado pelos pensamentos e pelas tentações, que vinham e voltavam; que adejavam em sua mente como bando de ascosos e esvoaçantes morcegos. Chegou mesmo a culpar o outro por estar sofrendo essas tentações. Por que Damásio falava tanto no negócio que fizera? Por que não fora de ônibus, que era mais seguro? Por que não vendera seus produtos em Teresina, que ficava perto de seu povoado? Por que, na hora de pagar a conta, ele abrira a pasta, de modo a exibir um maço de cédulas? Voltou a lembrar-se do ditado de que a tentação faz o ladrão. Não, nem Damásio e nem pessoa alguma tinham o direito de se exibir para tentar os outros. Foi criando certa raiva ao comerciante, que ficava a exibir seu dinheiro, que ficava a fobar por causa do negócio lucrativo que fizera. Por que diabos ele não fora de ônibus, ainda que seguindo por Fortaleza? Por que se expunha ao perigo dessa maneira? Inquieto, algo nervoso, levantou-se às seis horas. Foi chamar o comerciante, mas notou que este já estava, sempre agarrado à sua pasta de couro, sentado a uma mesa do refeitório. Após o café, seguiram viagem. A estrada de piçarra estava muito mal conservada, cheia de buracos e “catabilos”, tendo o motorista que manobrar constantemente, para se livrar das crateras mais profundas.
Chegou a planejar como mataria o comerciante. Fingiria que o carro dera um defeito. Sairia para verificar o que acontecera. Após algumas simulações, mexendo em peças do motor, chamaria Damásio para lhe ajudar. Pediria para ele apertar determinado dispositivo, enquanto iria até a cabina buscar uma chave. Na volta, já traria o revólver, que estava numa gaveta, ao lado de seu banco. Atiraria bem na cabeça, para evitar qualquer reação do comerciante. Após, arrastaria o corpo para dentro de uma moita perto da estrada. Retiraria todos os documentos e objetos pessoais; derramaria um galão de combustível no cadáver e atearia fogo, para dificultar a identificação. Em seguida, iria até um local que lhe permitisse fazer a manobra de retorno sem dificuldade, e iria em direção a Fortaleza, que era o verdadeiro destino da carga que levava. No seu entendimento, isso dificultaria o trabalho de eventual investigação a respeito de fretes de Recife a Teresina, no período, porquanto a família de Damásio informaria que ele, anteriormente, já pegara carona com caminhoneiros. Todavia, após ter tudo planejado, lembrou-se dos conselhos e pedidos de sua falecida mãe, para que não matasse e não roubasse; arrependeu-se e decidiu que não cometeria esse crime, mesmo porque correria o risco de ser preso, além de carregar o peso do remorso, já que não tinha índole perversa.
Contudo, quando se encontrava nas proximidades do povoado Natal o caminhão efetivamente teve problema. O pneu dianteiro da direita estourara. O lugar era deserto, com matagal fechado ao lado da estrada. Damásio, espontaneamente, se colocou à disposição para ajudar, e foi logo descendo da boleia. Insistiu mesmo para desaparafusar a roda, enquanto Gregório providenciaria a vinda do estepe. Quando Gregório retornou, a roda já fora retirada. Damásio, incontinenti, começou, com muita destreza e boa-vontade, a colocar o estepe. Gregório foi buscar algo na cabina. Viu, então, a pasta de couro. Abriu-a rapidamente, e enxergou vários maços de cédulas graúdas, entre as roupas usadas. A tentação lhe voltou. Tudo o que planejara, num átimo, lhe foi repassado em sua mente, à revelia de sua própria vontade. Lembrou-se, novamente, do ditado de que a ocasião faz o ladrão. Tudo obra do acaso ou do destino. Jamais poderia haver planejado o estouro do pneu.
Empunhou o revólver. Deu um tiro contra a cabeça de João Damásio. E executou fielmente tudo quanto havia planejado.