sábado, 26 de fevereiro de 2011

RAZÕES DE NÃO SER FICCIONISTA


CUNHA E SILVA FILHO

Uma vez um dos meus filhos, me confessara: “Papai, sou de uma área humanístico-científica, mas, como admiro quem escreve ficção, seja romance, seja, novela, seja conto! E ainda mais, viver apenas do suor da pena, da força da escrita, circunstância feliz que dá a alguém um sensação de liberdade quase absoluta.” Creio que inventar vidas e conflitos seja algo maravilhoso. Extrair do nosso próprio talento situações, tempos, eras, personagens, paisagens, cores, sons, perfumes, cheiros, espaços, ambiências, linguagens, seja em que estilo narrativo for, mas desde que convincente e criativo na harmonia do todo e na capacidade de verossimilhança, de convencimento, de espontaneidade em lidar com fatos e a realidade, sem , contudo, duplicar esta servilmente tentando artificialmente compor histórias forçadas, sem sopro algum de vida e sem personagens de “carne e osso”, como diria o velho e esquecido crítico Agripino Grieco (1888-1973)
Dar vida plena a tudo isso, fazendo com que o leitor, ao abrir as primeiras páginas de uma história, se veja em outra plano de uma existência parecidíssima com o chamado mundo empírico, porém urdido com um convencimento tão notável que, ao fim, faça aquele leitor sentir ser a vida um a realidade bem menos completa e interessante do que a imaginária e, além disso, com aquele poder mágico e encantatório de ser capaz de penetrar no pensamento do personagem ou do narrador. Isso não é grandioso no domínio estético?
“Por que, meu pai, o senhor não se tornou um escritor, quero dizer, um ficcionista?” A estas indagações filiais, responderia que o melhor seria ler o que José de Alencar (1829-1877) e tantos outros escritores têm a afirmar sobre esse questão tão complexa e fascinante ao mesmo tempo.
Até poderia ensaiar alguma ficção com o esforço do intelecto, com a experiência da leitura de grandes autores brasileiros e estrangeiros e com o conhecimento teórico da estrutura do texto ficcional. Entretanto, existe algo mais que inibe a possibilidade de alguém se tornar ficcionista. Esse “algo mais” chamarei simplesmente de talento, um termo antigo, mas ainda bem indicado para essa ideia que tenho de alguém vocacionado para a criação literária.
Se não há talento, espírito inclinado ao ato de “fingere” “modelar, imaginar, fingir, compor” (MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literário. São Paulo : Cultrix, 1992, p. 229), ou a presença da “poesis” (para o poeta Wallace Stevens [1879-1955], “a poesia é a suprema ficção”), ou o uso adequado do mimetismo aristotélico, do “fabbro”, ou ainda a natureza contida na definição magistral de Fernando Pessoa(1888-1935) sobre a figura do poeta, num poema tão conhecido e citado, que é “Autopsicografia”, todo esforço de querer inventar mundos e vidas, intrigas e os chamados “mundos possíveis”, os mundos de papel barthesianos, fazendo a movimentação necessária do desenrolar da narrativa, da representação dramática, do diálogo ou do monólogo exterior ou interior, do trabalho de engenharia no uso do tempo e do espaço, do domínio indispensável da descrição, da narração, tudo isso perderia seu sentido mais elevado e pleno na criação artística. Tudo isso seria fracasso e não construção ficcional.
Se o escritor não reúne atributos inatos no uso da linguagem literária, na habilidade do desenho dos personagens, na construção da trama ou intriga e na expressão de sua cosmovisão, na descrição da natureza, dos objetos concretos, na visualização do ambiente físico ou psicológico dos personagens, no conhecimento perfeito da paisagem, do interior das habitações, do urbano e do campo, na descrição das ações físicas, nas expressões adequadas à situação narrativa, ou seja, se não for equipado com um vasto e variado domínio de vocabulário e o que for de artifício de técnica narrativa, seja por linhas de construção romanesca tradicionais, seja modernas ou pós-modernas, de nada adiantará ao “would be writer” desejar chegar à praia de uma criação literária de qualidade. Neste caso específico, não há oficina de ficção que dê resultados eficazes. Lembre-se o leitor de que aqui se está discutindo o campo da criatividade, da arquitetura do belo, do sensível, do palpável, do pictórico, do lúdico e de outras formas de construir experiências humanas e objetos naturais e culturais paralelos ao mundo físico-existencial, uma forma de idealizar, via emoção e beleza, o mundo imaginário através do chamado “correlativo objetivo” formulado por T.S. Elliot (1888-1965) A vocação é condição sine qua non do surgimento de um escritor verdadeiro.
No Brasil, e certamente em outras países, sempre tivemos exemplos de homens cultos, versados numa dada área, até mesmo associada às letras, que escreveram ficção sem que tivessem nenhuma repercussão, só se restringindo a um pequeno círculo de amigos que a leram e sobre ela se calaram ou fizeram algum comentário critico mais fundado na amizade do que no valor artístico da obra. São inúmeros esses exemplos.
O intelectual deve, portanto, tomar cuidado, auscultar sua consciência, conhecer melhor suas possibilidades e ser, antes de tudo, um severo crítico de si mesmo.
Encontrar o caminho mais afinado com o seu talento - e é aqui que a repercussão dos leitores conhecidos ou desconhecidos – vai jogar um papel decisivo – será a maneira mais correta de o intelectual não se iludir com uma suposta vocação para ficcionista.
Naturalmente, há os talentos múltiplos, que produzem, até em nível acima da mediania, abrangendo gêneros literários diversos. São as exceções. Todavia, mesmo neste caso, o talento múltiplo tem gradações qualitativas e de competência com frequência desigual com relação aos inúmeros gêneros por eles cultivados.
Um mínimo de autocrítica e, sobretudo, estar atento às repercussões dos leitores e de pessoas conhecedoras de literatura, tais como críticos, teóricos, professores de letras, amigos amantes de livros, escritores. Serão estes que servirão de baliza para que o candidato a escritor reconheça suas limitações e se dedique com mais intensidade aos reais talentos com que a natureza o prodigalizou.
Ante todas essas considerações, julgo que de alguma forma respondi à indagação de meu filho e à expectativa de algum leitor.

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