SÉRGIO SOUZA
“As almas que se quebram no chão“, quarto romance de Karleno Bocarro, poderia ser chamado de retrato de uma época. Embora cumpra, e bem, esse papel, com a geração que viu a queda do muro de Berlim e viveu seus efeitos (ainda que um tanto quanto inconscientemente, como que “atropelada” pela história), ele vai muito além disso. Escarafuncha os meandros da alma humana.
Karleno não se perde em psicologismos fúteis, seus personagens se constróem na ação, o que torna seu romance daqueles que não se quer largar, carregado na mochila onde quer que se vá, à procura de um tempo livre para retomar a leitura, como nos clássicos policiais que nos aprisionam com seus enigmas. E apesar de se pautar na ação, “As almas” contém um fundo, como que um fio d’água que corre pelos seus subterrâneos, um tema profundo por detrás da trama: o deslocamento das vidas em relação ao destino que têm que cumprir; o mundo trágico e sombrio em que mergulham aqueles que escolhem a trilha fácil dos prazeres sensoriais e do hedonismo ao sacrifício ( do latim sacre + facere, ou seja fazer sagrado, ação sagrada) que exige cumprir uma vocação. A gente só vem mesmo ao mundo para fazer o que não deve, pensa Marco, o protagonista, em dado momento do livro.
O desvio do caminho tem um preço caro. Se não o trágico e o sombrio, o que se afigura é ainda pior: a mediocridade.
O romance se desenvolve ao redor de quatro personagens, um grupo de brasileiros que vai à Berlim pós queda do muro, com pretensões intelectuais e à busca de uma liberdade fácil que não existe. As experiências frustrantes desse grupo envolvem sexo, drogas, literatura e uma gama de relacionamentos e aventuras que, em certo sentido, lembram as narrativas beat de um Kerouac, por exemplo. Mas a profundidade e complexidade dos personagens remetem à Dostoievski. Karleno é um romancista de peso, que sabe dar à sua escrita a desenvoltura e a maturidade dos grandes mestres. E, para ser sincero, não vejo nenhuma nova geração de escritores surgindo junto com Karleno. Ele está anos-luz à frente dessa tal “geração zero-zero”, blogueira e rasteira. E Karleno nunca é raso. Nunca.
Voltando ao romance: também o Mal dá as caras. O Mal que seduz e destrói, que vicia e arruina. O pacto diabólico se insinua na relação de Marco com Bocas. Além disso, a ambientação do romance deixa entrever, em impressionantes descrições, uma presença do Mal quase palpável. E se existe o Mal, existe também a Graça. A Graça imperceptível (Tenho medo da Graça que passa e não volta, diz Agostinho), que se apresenta na forma de uma mulher, Luzia, a namorada de Marco, desprezada por ele ao longo do romance e talvez sua única possibilidade deviajar para fora do karma.
Mas não, não há redenção possível para o indivíduo que não assume a responsabilidade de seus próprios atos; e não toma as rédeas de sua pópria vida.
É cruel ter que escrever um parágrafo como o anterior, porque o livro de Karleno não é nem um pouco moralista. Mas são palavras necessárias. Ao menos para mim o são. Mas talvez esta seja apenas uma interpretação demasiadamente cristã – e pessoal ! - do romance. Ele merece mais do que uma leitura, é rico o suficiente para isso.
Creio que Karleno traz uma ponta de esperança ao romance brasileiro. “As almas que se quebram no chão” é um marco. Resta a nós , leitores, torcer para que venham outros romances da pena apurada do Bocarro (ele está com outro livro pronto, “O advento” ) e que existam, escondidos nesse Brasil, outros romancistas, que tenham a sua coragem e seu talento para levar à frente a vocação de escritor.
Durante a leitura, um fato curioso. Uma pessoa viu o livro em minhas mãos, perguntou: espírita? . Não, caríssimo amigo, as almas das quais esse romance trata não são aquelas do além. São estas que estão nos escritórios, nos departamentos, nas faculdades, nas ruas. Que está aqui dentro de mim.
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