Daniel Castello Branco CIARLINI
A Emoção cria o Ritmo;
O Ritmo produz a Beleza;
A beleza desperta a Emoção!
Manuel do Carmo.
RESUMO: o presente trabalho tem como objetivo analisar o sentido da palavra poesia e a sua
influência no ato da criação literária. Parte, inicialmente, do conceito aristotélico para então chegar à essência da expressão metafórica do “eu”, diferenciado em três tipos: “eu-social”, “eu-odioso” e “euprofundo”. Trata-se de uma análise científica à base de uma pesquisa bibliográfica de críticos literários como Boileau-Despréaux (1979), Moisés (2003), Ivo Korytowski (2008), Bosi (2006), Machado de Assis (1946) e Carlos Bousoño (1966). Verificaremos que a importância criadora do elemento poético para os textos literários reflete-se não no plano estilístico de uma estrutura concreta, mas através do abstrato, em um dado momento imaginativo de produção, ou seja, exteriorização do “eu”, de cuja voz ativa resulta a própria arte literária.
PALAVRAS-CHAVES: Poesia. Literatura. Criação.
1. Considerações iniciais
Quando estudamos a arte poética, somos conduzidos a apreciá-la sob dois pontos de
vista: Material (concreto) e imaterial (abstrato). A poesia, no sentido explorado deste artigo,
está situada no plano imaterial, adequada à subjetividade, diferente, portanto, das demais
manifestações literárias como o poema e a prosa, que se situam no campo estético, estilístico.
Sendo os dois campos muito vastos – muitas vezes confundidos –, e a poesia uma
manifestação que transcende as barreiras da literatura, incidindo, inclusive, sob as demais
artes, restringimo-nos, pois, a analisá-la em seu aspecto criativo e essencial à produção
literária, como ponto de partida ao entendimento da mudança de seu estado primitivo
(imaterial) à concretude da escrita configurada polivalente e carregada de sentimento.
Conforme veremos, e como dita a concepção tradicional, a poesia é a essência que
conduz o autor à vontade e o leitor à contemplação da arte. Como não está relacionada ao
campo estético, torna-se comum a todo e qualquer ser humano conscientemente são: “A
poesia é algo tão natural que mesmo pessoas sem instrução formal, homens simples do povo,
às vezes se revelam exímios poetas” (KORYTOWSKI, 2008, p. 7).
A problemática que conduz contemplar a poética em dois prismas de entendimento,
embora não comum, ainda hoje se reflete no ambiente de ensino, no que tange o saber básico
do aluno, e a não especialização docente, por confundirem e/ou dar sentido simples ao
conceito histórico, e etimologicamente amplo, da poesia.
Como diz o verbete do dicionário Aurélio (2001, p. 578), a poesia significa, de forma
denotativa: “Arte de criar imagens, de sugerir emoções por meio de uma linguagem em que se
combinam sons, ritmos e significados”; nesta, e em outras tantas definições práticas, ela
aparece relacionada, apenas, a um sentido estritamente material, e sem análise às concepções
individualistas dos estados emocionais que influem de maneira transformada do abstrato para
o concreto. Entendemos, aqui, abstrata, a poesia, e concreta, a sua estrutura poemática, ou
seja, o poema, a prosa literária e seus respectivos gêneros, enfim, quaisquer manifestações
artísticas que têm por limite o apuramento intelectual lírico através das letras.
Nosso objetivo, portanto, será a leitura da poesia, em suas diferentes dimensões, na
construção da literatura. Para isso, trabalharemos um dialogismo entre autores de diferentes
correntes teóricas como Boileau-Despréaux (1979), por sua visão filosófica e à linha de
Aristóteles, Massaud Moisés (2003) e Ivo Korytowski (2008), que seguem a concepção
estruturalista, Alfredo Bosi (2006), pela explanação e teorização, necessárias, das escolas
literárias das quais se expressa a poesia diferentemente, Machado de Assis (1946) e Carlos
Bousoño (1966), pela visualização abstrata e ampliada acerca do fenômeno poético. Estes
autores nos conduzirão a um estudo que enxergará a poesia expressa nos mais diversos
períodos da arte literária, hoje, pelos críticos e teóricos, divididos, a fim de didática, em
escolas; assim, veremos, também, as singularidades da poética e as formas com que se
manifesta nos gêneros lírico e épico, e quando, e até quando, neste, ela está desenvolvida.
Para isso, analisaremos as características e as formas do “eu-poético”, fator decisivo à
compreensão da imaterialidade poética.
Voltando ao campo de ensino, a diferença que não se costuma, portanto, ensinar da
poesia, como elemento abstrato, e do poema, como elemento concreto (objeto literário), por
exemplo, se deve ao fato natural de se entender, em suas etimologias, as duas palavras como
análogas. De acordo com o nosso estudo, o poema se trata, apenas, de uma ferramenta auxiliar
para a expressão do eu-poético (poesia), não obstante, aquele que transmite e indica uma
carga de sentimentalismo através dos signos linguísticos, até então latentes, não
transformados, senão pela interpretação. Para Boileau-Despréaux (1979), a interpretação da
poesia a partir de um objeto literário trata-se de um processo inverso ao ato criativo, já que
tende da racionalidade para a emoção, ou seja, do concreto para o abstrato: “A sabedoria,
expressa em mil escritos famosos, foi anunciada aos mortais, com auxílio dos versos; e por
toda a parte, seus preceitos venceram os espíritos, introduzindo-se pelos ouvidos, e entrando
nos corações” (BOILEAU-DESPRÉAUX, 1979, p. 69-70).
2. Algumas questões
Quando tratamos a poesia sob jugo de algo abstrato, importante é considerar a sua
essência e o verdadeiro sentido da palavra, já indicada pelo conceito aristotélico como
“filosófica e de caráter mais elevado que a história”, o que nos remete aos princípios da
diferenciação entre o universal (a poesia) e o específico (a história): “[...] é evidente que não
compete ao poeta narrar exatamente o que aconteceu; mas sim o que poderia ter acontecido, o
possível, segundo a verossimilhança ou a necessidade” (ARISTÓTELES, 2007, p. 43).
Este caráter universal, na concepção de Moisés (2003, p. 81-2), é atribuído a um
“indivíduo de determinada natureza, pensamentos e ações que, por liame de necessidade e
verossimilhança, convém a tal natureza”. Para o poeta e crítico literário espanhol Carlos
Bousoño (1966, p. 23), a universalidade não está associada aos “pensamentos e ações que, por
liame de necessidade e verossimilhança, convém a tal natureza”, porque “el pensiamento que
en ella reside no es, en postrer esquematización, nuevo”, ou seja, pensamentos e emoções
nada mais são que uma releitura de mundo e de indivíduo, nada há mais de novo.
Horácio chega a comparar, em um sentido mais amplo, os poetas aos pintores, quando
diz: “Os pintores e poetas sempre tiveram o comum privilégio de tudo ousar” (HORÁCIO
apud BOILEAU-DESPRÉAUX, 1979, p. 55), pensamento este reforçado e ampliado pelo
espanhol, anteriormente citado, quando refere que “La pintura menos figurativa, la poesía más
metafórica, existen en cuanto que se refieren a la vida, y pensar lo contrario es ignorar que los
seres humanos no podrían interesarse por un supuesto arte que no los implique de un modo o
de otro” (BOUSOÑO, 1966, p. 28).
A ousadia citada por Horácio é vista por Boileau-Despréaux (1979, p. 41) como “a
habilidade agradável de um pincel delicado transforma o mais horrendo objeto num objeto
fascinante”, logo, tanto para o poeta como para o pintor, a realidade não é tal qual a
enxergamos, mas como queremos ou podemos, através de nossas sensações e emoções,
distinguir ou criar, isto é, na concepção aqui exposta, a beleza que a poesia nos faz perceber
intrinsecamente.
No saber de Bousoño (1966, p. 43), “El término „poesía‟ es más amplio que el término
„poema‟”. E conforme pontuou Hermes Vieira (19--), a respeito do pensamento de Órris
Soares, o fazer literário, mais precisamente o verso (poema), pode tanto ser construído ao
crivo de poesia como não.
Por seu estado lírico e abstrato, a poesia, como expressão elevada da subjetividade,
“tensão dialética entre vários pares, um dos quais constituído de emoção e pensamento”
(MOISÉS, 2003, p. 174), possui, ainda, caráter de modificador da língua, a-narrativo, ahistórico e, por consequência, a-temporal. Partindo, então, deste pressuposto, notar-se-ão
relevantes diferenças da poesia para a prosa não literária, e a sua consonância com os gêneros
literários, pois sendo a literatura uma linguagem que se desenvolve “como uma constelação
de signos carregada duma enorme taxa de subjetividade” (idem, ibidem p. 34), ou “um tipo de
conhecimento expresso por palavras de sentido polivalente” (idem, ibidem, p. 37), não
estranho fica, portanto, classificar a poesia não como produto, mas veículo que conduz a este
sentido. A par e passo disto, chega-se à constatação de que ela age como núcleo literário,
elemento criador que propaga, através das ferramentas que a literatura aplica no campo de
produção subjetiva, o verdadeiro ato criador, a inspiração e o lirismo, transmitidos pelo artista
em um dado momento fecundo de criação; o sentimento transgredido do abstrato para o
concreto. Como afirma Moisés (2003, p. 90), “A poesia está em nós”, ou seja, está num
conjunto de fatores que desencadeiam a sensibilidade do receptor em interação com a obra
vista.
2. Correntes teóricas
Frederich Hegel (1770-1831), filósofo alemão, sob o ponto de vista metafísico, definiu
a poesia como o “reino infinito do espírito” (HEGEL apud MOISÉS, 2003, p. 84). Suas ideias
foram acolhidas pelos literatos da escola do Romantismo, que também entendiam a poesia de
forma imaterial, consoante à própria vida, como afirmou Bosi (2006, p. 96):
A poesia, o romance e o teatro passam a existir no momento em que as idéias e os
sentimentos de um grupo tomam a forma de composições, arranjos intencionais de
signos, estruturas ou ainda, para usar do velho termo rico de significados humanos,
no momento que os assuntos viram obras (grifo do autor).
Nesta mesma linha, e após a febre parnasianista, que se relacionava unicamente à
estética, os simbolistas retomam os valores abstratos da poesia, classificando-a em um plano
ainda maior: O místico; portanto, integrada a uma espécie de “vida cósmica”, diferenciandose, desta maneira, do pensamento da “arte pela arte”.
Conforme destacou Bosi (2006, p. 263):
[...] recusavam-se a limitar a arte ao objeto, à técnica de produzi-lo, a seu aspecto
palpável; ambos, enfim, esperam ir além do espírito e tocar, com a sonda da poesia,
um fundo comum que susteria os fenômenos, chama-se Natureza, Absoluto, Deus ou
Nada.
Embora tenha existido, da idealização do Romantismo até o Simbolismo, um período
avesso à imaterialidade poética, que foi o Parnasianismo, notamos, porém, que esta visão
estética, material, da poesia, não era acatada com unanimidade pelos parnasianos. Assim foi
que Machado de Assis, considerado o maior prosador brasileiro, e um dos maiores
representantes do parnasianismo no Brasil, como crítico, em prefácio à obra de Enéas Galvão,
“Miragens”, contrariou a visão parnasianista ao enxergar que a arte poética não se constitui
apenas da pureza estética, como também do elemento de inspiração que dá vida a uma obra de
arte, do qual denominou poesia; para tanto, aconselhava, nas páginas alheias, o autor àquele
poeta, até então aspirante ao parnaso nacional, Machado de Assis (1946, p. 338-9):
[...] no esmero do verso não vá ao ponto sem cercear a inspiração. Esta é a alma da
poesia, e como toda alma precisa de um corpo, força é dar-lh‟o, e quanto mais bello,
melhor; mas nem tudo deve ser corpo. A perfeição, n‟este caso, é harmonia das
partes.
Aprofundando o pensamento machadiano, Bousoño (1966) alerta que a poesia não está
relacionada à comunicação ou percepção do sentimento, “evocación serena de impresiones y
de sensaciones”, mas à sua contemplação, visto que se acaso fosse sentida, todas as sensações
do autor se refletiriam no leitor de igual maneira e intensidade, Bousoño (1966, p. 21):
[...] la poesía no comunica lo que se siente, sino la contemplación de lo que se
siente. Si el poema comunicase lo que se siente, cuando el autor escribiese que le
dolían las muelas, le dolerían las muelas al lector; cuando escribise que estaba
enamorado, el lector se enamoraria.
Ainda não diferindo deste plano imaterial da poesia, o famoso crítico Middleton
Murry enxergava-a como a “expressão natural dos mais violentos modos de emoção pessoal”
(MURRY apud MOISÉS, 2005, p. 77). Todas estas ideias complementam a base de um longo
período que identifica a poesia como elemento incorporado ao campo do abstrato, e de cujas
bases serão revistas, apenas, a partir do Formalismo Russo e do New Criticism. Estas duas
correntes teóricas e críticas da literatura surgiram no limiar das primeiras décadas do século
XX, na Ásia e na América do Norte, respectivamente, e abordavam a poesia de forma
materialista, “A poesia é linguagem em sua função estética” (JAKOBSON apud FRANCO
JÚNIOR. In: BONNICI & ZOLIN, 2005, p. 95), reverenciando, neste caso, as estruturas
auxiliares que compunham os recursos poéticos como transmissão cognitiva, já exploradas, na
segunda metade do século XIX, pelos parnasianos.
Embora se concentrasse na reflexão da estrutura estética, o New Criticism,
diferentemente do Formalismo Russo, compreendia que além de uma carga puramente
racional, a poesia, não apenas em sua essência como, de igual maneira, à sua significação,
compunha, também, um leque de entendimento situado em um patamar de difícil
classificação, mas que poderia ser percebido num campo racional-emotivo, cujas mensagens
transgredidas em símbolos a tornavam peculiar e, por isso, relevante: “A poesia triunfa porque
tudo ou quase tudo que nela se diz ou se encontra implícito é relevante [...]” (WIMSATT &
BEARDSLEY apud FRANCO JÚNIOR. In: BONNICI & ZOLIN, 2005, p. 106).
Já tendo explorado algumas correntes acerca da poesia, retomemos sua origem
etimológica grega (poiesis), que nos remete a uma imagem abstrata, relacionada ao ato de
criar, aqui entendido, pois, em seu sentido imaginativo (MOISÉS, 2003, p. 81). Aristóteles,
primeiro filósofo a tomar nota do fenômeno poético em estudo, por sua vez, sabia que para o
seu perfeito ciclo, ou seja, autor/leitor, “a poesia reclama ânimos bem dotados ou capazes de
se entusiasmarem” (ARISTÓTELES, 2007, p. 64), em outras palavras, sabia o filósofo que
sendo a poesia um estado emocional do qual o artista torna concreto, esta concretização nada mais é que um apanhado de símbolos que auxiliam, ou provocam, no espectador, sensações
individualistas; ao que pressupomos: A codificação do artista dificilmente será a
decodificação do espectador. A partir disto, constrói-se a distinção entre forma e fôrma, em
que consistindo a primeira em abstração, sentimento, ato criativo; a segunda exerce uma
função concreta, como de ferramenta, de “invólucro” (CORTEZ & RODRIGUES, 2005, p.
61) carregado de elementos que conduzem o leitor a pistas que decodifiquem as angústias e
alegrias expressas pelo autor no ato criativo. Há, porém, críticos que inferem a interrelação
entre abstrato e concreto de tal maneira que, sem as estruturas fônicas, morfossintáticas, ou
mesmo semânticas, “a poesia está morta ou rasteja sem vigor e o poeta não é mais que um
prosador tímido” (BOILEAU-DESPRÉAUX, 1979, p. 46). Em síntese, a poesia, no sentido de
criação, é a arte não transformada, e a sua forma expressa, em verso ou prosa literária, é a
própria arte concluída. Assim, retomemos a afirmação construtivista que impunha que a
poesia “está em nós”, não no objeto, onde experiências e/ou conhecimentos prévios é que
mediam, individualmente, o seu grau de intensidade: “a la transmisión verbal de un contenido
psíquico particular que nuestro espírito ha conocido previamente” (BOUSOÑO, 1966, p. 63).
Para Moisés (2003, p. 217):
A poesia é, ao fim de contas, a procura de uma palavra que, intuída nas brumas do
poema a escrever, se torna o ponto de partida de toda a criação poética: o poeta
desdobra em infinitas metáforas a palavra que não conhece ainda, mas que paira
sobre o seu afã de exprimir-se, como um norte ignorado e implícito, ao qual
estivesse imantado sem saber.
Neste sentido, a poesia surge como o sentimento primitivo e próprio do ser humano,
este, por sua vez, a fim de torná-lo codificado, precisa utilizar de convenções para que ela se
torne expressão.
3. Das características da poesia
A poesia possui em sua essência características que a tornam peculiar em sentido de
transformação da realidade concreta. São elas que a configuram num patamar amplo e não
específico, como é o caso das limitações do verso e da prosa.
Antes de tratarmos de sua primeira característica, que é a de modificadora da língua,
necessário se faz a compreensão do que se é, enfim, a língua.
Para Ferdinand Saussure (2006, p. 24), a língua “é um sistema de signos que
exprimem idéias, e é comparável, por isso, à escrita, ao alfabeto dos surdos-mudos, aos ritos
simbólicos, às formas de polidez, aos sinais militares”. Com este pensamento, o mestre
genebriano da linguística sincrônica deixa claro que a língua, em si, pode se caracterizar, tal
qual já nos foi aqui estudado sobre poesia, de duas maneiras, concreta e abstratamente. Assim,
concluímos que a poesia, como elemento modificador da língua, está relacionada aos fatores
que influem, por exemplo, a transformação semântica que as palavras sofrem através das
figuras de linguagem, expressas tanto na escrita quanto na fala. As figuras de linguagem,
como a metáfora, o eufemismo, a metonímia, entre outras, principais ferramentas que
modificam a língua a partir da poesia,
La necesidad de justeza, de propiedad expresiva es, por conseguiente, el origem de
los procedimientos o sustituciones líricas: es la razón de su frecuencia, tanto em la
poesía escrita como em la hablada; tanto em las composiciones literarias, cuanto em
las frases del lenguaje ordinario (BOUSOÑO, 1966, p. 72, grifo do autor).
estão, segundo o crítico espanhol, presentes não apenas em nossa manifestação literária como,
também, em nossa fala cotidiana, sendo, por isso o motivo pelo qual:
[...] hablamos com metáforas o com esqueletos de metáforas, com onomatopeyas o
com esqueletos de onomatopeyas; gran parte de nuestro léxico és, em efecto, o
sincrónica o etimológicamente metafórica (idem, ibidem, loc. cit).
Moisés (2003, p. 89) também acentuou esta mesma visão modificadora da poesia à
realidade, condição que faz com que entendamos que “a obra toda de um poeta é uma
macrometáfora ou uma polimetáfora”. Para Bousoño (1966, p. 63), este caráter modificador é
que dá o real sentido ao ato poético, a condição necessária para a sua existência: “la labor
poética consiste em modificar la lengua: el poeta ha de trastornar la significación de los
signos o las relaciones entre los signos de la lengua porque esa modificación es condición
necesaria de la poesía”.
“O tempo da poesia é o tempo da palavra” (MOISÉS, 2003, p. 149), com isto, o citado
deixa claro que o tempo explorado na poesia não é o mesmo explorado na história, eis o
motivo de ser considerado “a-temporal” ou, antes, “a-histórica”; o tempo na dimensão poética
está mais relacionado ao “carpe diem, a efemeridade da existência, a saudade do passado, as
incertezas do futuro, enfim, tudo quanto constitui, desde sempre, matéria de angústia e
meditação [...]” (idem, ibidem, p.147, grifo do autor) que se refletem através da decodificação
dos signos linguísticos. Usemos, pois, uma citação que, apesar de se relacionar ao gênero do
poema, não declina a visão ampliada à prosa literária, Moisés (2003, p. 149-150):
[...] o tempo da poesia se manifesta na enunciação das palavras que constituem o
poema; a sucessão de vocábulos articula-se num tempo que não é histórico, nem
psicológico, nem mítico – é um tempo imanente, gestado pela enunciação dos signos
verbais e numa seqüência irrepetível, pois cada poema é único.
Conforme veremos no capítulo seguinte, a análise das diferentes formas de
manifestação do eu-poético pode nos levar ao pensamento de que o eu-social, por exemplo,
localizado no campo da poesia épica, por situar o leitor em um plano histór ico-narrativo, não
sustente o caráter “a-histórico”, e por cantar os anseios de uma nação, não o situe em um
estado “a-narrativo”, todavia, valemo-nos da expressão que dita que o “eu-poético” não influi
sobre o tempo em seus sentidos específicos, ou seja, nas três dimensões conhecidas:
Cronológico, psicológico e mítico; o tempo poético é mais amplo, ele está como “substância
da poesia (ou/e do poema), o tempo da poesia (ou/e do poema), o tempo no qual a poesia
transcorre, não o tempo a que se refere, nem o tempo gasto na leitura” (MOISÉS, 2003, p.
147-8), sua análise, portanto, tende, sempre, no campo da poética, para uma quarta e única
dimensão, agregadora das demais dimensões, embora, com elas, não se confunda: “o tempo
da poesia pode conter laivos de cada uma das três dimensões, sem identificar-se com qualquer
uma delas” (idem, ibidem, p. 148). No geral, o tempo da poesia segue uma regra: “principia
no tempo histórico e finaliza no mítico” (idem, ibidem, loc. cit). É como se pudéssemos, ainda
na visão de Moisés (2003), dizer que a poesia se movesse em um tempo, mas esse tempo não
pudesse ser medido pela História, porque está localizado na enunciação das palavras, estas,
por sua vez, estabelecem vínculos à “natureza rítmica, emotiva e conceptual ou semântica”
(MOISÉS, 2003, p. 150), o que nos faz recordar o já dito acima, em que a poesia não é
produto, mas veículo que conduz à expressão do sentimento.
Em resumo, a quarta dimensão, que configura o tempo da poesia, é a da dialética,
razão pela qual se utiliza dos elementos emotivo, rítmico, semântico e, até, gestual.
4. Das diferentes formas de manifestação do eu-poético
Na construção poética, existem dois “eus”. Embora o núcleo da poesia seja o “eu do
poeta”, em outras palavras, o impulso sentimental que conduz a emoção tornar-se explícita,
analisaremos aqui o “eu-poético” (a emoção explicitada), meio este com que o “eu do poeta”
usa para tornar-se expressivo, forma com a qual o artista vê, se enxerga e se expressa no
mundo: “um „eu‟ tornado objeto de um „eu‟ sujeito” (MASSAUD, 2003, p. 140); neste caso,
objeto, o eu-poético, sujeito, o “eu do poeta”. Como este artigo tem por finalidade a expressão
da poesia como ato de criação, eis que necessário se faz analisar o “eu-poético”, por ser ele o
“eu do poeta” manifestado.
Através dele, o autor, de certa forma, “dialoga” com o leitor. Trata-se da representação
interior, a forma com que captamos a nossa realidade e a exprimimos, e que na visão de
Bousoño (1966), constrói-se em três estados interrelacionados: o conceitual, o sensorial e o
sentimental. Estes estados, na linguagem de Moisés (2003), recebem nomes diferentes: “eusocial”, “eu-odioso” e “eu-profundo”; nomenclatura esta que, aqui, utilizaremos. Embora
separados pelos autores, cada um deles, em apuração artística, tendem para uma mesma razão,
“revelar o que há de belo, de hediondo e de trivial o que há no mundo o que é nosso”
(CORTEZ & RODRIGUES, 2005, p. 88), papel este que configura a poesia como um todo
refletido em palavras. Sobre este todo, Moisés entende que “A Poesia não aprisiona o todo,
mas a sua imagem refletida num espelho, a imagem reduzida do todo da realidade, a
condensação do real com todas as suas partes originárias” (2003, p. 220).
Em primeiro caso, o “eu-social”, manifestado na épica, o escritor se coloca em contato
direto com o mundo, não prevalecendo, nele, a essência individualista (intimista), mas os
fatos e as cotidianidades que influem sob sua percepção de existência. Neste sentido,
observam-se as inércias e ascensões que caracterizam os ditames sociais, e o “eu” coloca-se
na dualidade de aceitação ou rejeição, qualidade esta, inclusive, que explica o ser ou, antes, o
“eu”, inserido numa estrutura sociológica ambígua, própria da estrutura psicológica,
diferenciando-se dela, porém, pela transportação desta visão interna para um contexto
histórico e em sintonia com o meio ambiente. Em outras palavras, o escritor reflete a sua
realidade sob realidades congêneres, buscando explicações através da natureza, crenças ou
mitologias, a razão que o esclareça como parte de um todo ou mesmo o entendimento deste
todo; vê-se, pois, com isso, uma preocupação com o externo, com o “não eu”, que, para
Moisés (2005), implica numa “dilatação do „eu‟”, diferente do lírico, focado, completamente,
em seu interior. O “eu” incorpora na sua voz a voz coletiva e passa a cantar e representar os
anseios de um povo, de uma nação. Esta reflexão é o que o diferencia dos demais estados
poéticos, já que “O poeta esteta seria, essencialmente, o lírico, e o poeta filósofo o épico”
(MOISÉS, 2003, p. 172).
Ainda Moisés (2003, p. 238):
[...] todo poeta “superior” tende para o épico. Dispondo em partes o pensamento,
observamos que o poeta épico se caracteriza pela dilatação do “eu” ao infinito de
suas possibilidades, a ponto de romper as próprias barreiras e invadir o plano do
“não-eu”.
Neste “não-eu” “As agruras poéticas deixam de ser aquelas do simples „eu-te-gostovocê-me-gosta‟ do verso drummondiano, para ser as que nascem das universais inquietudes
humanas: ser e não-ser” (idem, ibidem, p. 242). O caráter universalista do “eu-social” ainda é
classificado por Moisés (2003) de duas formas: Universalismo individualista e universalismo
universalista; ou seja, enquanto aquele “resulta do encontro e subsequente expressão das
universais e perenes inquietações humanas” (idem, ibidem, loc. cit), este “o poeta está voltado
integralmente no sentido de captar e expressar os grandes conflitos humanos situados via de
regra fora do seu „eu‟, e por casualidade identificáveis por ele” (idem, ibidem, loc. cit).
O “eu-odioso”, relacionado ao campo da poesia lírica, é, na realidade, o próprio “eu”
“que supomos que somos” (MOISÉS, 2003, p. 85), instável para consigo, muito bem
observado na literatura no período do barroco, onde o “eu” é sempre visto em dualidade, e é
neste campo que o “eu-odioso” de Moisés trava profundo dialogismo com o aspecto sensorial
de Bousoño, já que para o artista barroco “A paisagem e os objetos afetam-no pela
multiplicidade dos seus aspectos mais aparentes, logo cambiantes, com os quais a imaginação
estética vai compondo a obra em função de analogias sensoriais” (BOSI, 2006, p. 30).
No “eu-profundo” o ser visita o próprio interior e faz uma releitura, a partir da
imaginação e da sensibilidade, dos demais “eus”. É, pois, neste “eu” que está centralizada a
poesia, e dele se desenvolve todo o processo da literatura. Como afirma Moisés (2003, p. 85),
é a camada íntima:
[...] onde se depositam as vivências decorrentes do contacto com o mundo exterior, e
transfiguradas pelos outros “eus” e pela imaginação, recalques, complexos, etc.,
reino de caos, anarquia, alogicidade, composto de sensações vagas, difusas, ainda
não verbalizadas, impermeável ao mundo exterior, salvo na medida em que abriga
os arquétipos, analogias profundas entre o inconsciente individual e coletivo.
Como se vê, o “eu-profundo” é uma espécie de subconsciência que absorve,
compreende e transforma profundamente um plano subconsciente em consciente, e através
dos signos, figuras e gêneros o coloca na superfície. Dos “eus”, o mais ampliado. Seu caráter
de busca pela compreensão, a partir da percepção e da anamnese, e expressão
verossimilhante, o faz dialogar com os níveis da materialidade e imaterialidade ao mesmo
tempo.
5. Considerações finais
O estudo da poética é um campo muito vasto e palco milenar de discussões entre
teóricos, filósofos e tratadistas. Isto se deve pela importância que teve, e tem, para a produção
da arte e, em especial, à literatura. Como dito pelo teórico Moisés (2003), “[...] a poesia
remonta aos inícios da cultura ocidental, e presidiu ao nascimento de todas as literaturas. E
não só inaugurou as literaturas ocidentais como nelas predominou durante séculos”
(MASSAUD, 2003, p. 80).
Seus entendimento e implicação confundem-se, por vezes, à análise da própria
essência humana: Uma parte se liga ao sentimento, que dá vida ao objeto; e a outra, ao estudo
deste objeto, como meio de se chegar a mais pura forma do estado lírico de um mundo
transcendental, situado, talvez, paralelo ao que vivemos, e que na filosofia de Platão
denominou-se o “mundo das ideias”.
Uma sentença, porém, pode ser defendida: Há poesia em toda e qualquer manifestação
que gere, em reflexão ao nosso íntimo, uma carga emotiva. Sua existência, se colocada restrita
ao campo literário, independe de signos linguísticos, embora estes auxiliem como espelhos a
sensibilidade humana. A poesia está em tudo quanto se resuma em conotação ou polivalência.
Se houvesse uma regra da qual pudéssemos utilizar para bem defini-la, poderíamos
dizer que a poesia é a própria ferramenta que transforma o sentimento em arte, e que a arte,
sem a poesia, é apenas um objeto, à procura de uma interpretação lírica para, enfim, tornar -se
artístico.
6. Referências
ARISTÓTELES. Arte poética. São Paulo: Martin Claret, 2007.
MACHADO DE ASSIS. Crítica literária. São Paulo: W. M. Jackson, 1946.
BOILEAU-DESPRÉAUX, Nicolas. A arte poética. São Paulo: Perspectiva, 1979.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 45.ª edição, São Paulo: Cultrix,
2006.
BOUSOÑO, Carlos. Teoría de la expresión poética. 4.ª edição, Madri: Gredos, 1966.
CARMO, Manuel do. Consolidação das leis do verso. São Paulo: Casa Duprat, 1919.
CORTEZ, Clarice Zamonaro; RODRIGUES, Milton Hermes. Operadores de leitura da
poesia. In: BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana. Teoria literária: abordagens
históricas e tendências contemporâneas. 2.ª edição, Maringá: Eduem, 2005, p. 57-89.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio: século XXI. 2.ª edição, Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
FRANCO JÚNIOR, Arnaldo. Formalismo russo e new criticism. In: BONNICI, Thomas;
ZOLIN, Lúcia Osana. Teoria literária: abordagens históricas e tendências
contemporâneas. 2.ª edição, Maringá: Eduem, 2005, p. 93-107.
MOISÉS, Massaud. Criação literária: poesia. 18.ª edição, São Paulo: Cultrix, 2003.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. 27.ª edição, São Paulo: Cultrix,
2006.
VIEIRA, Hermes. Humberto de Campos e sua expressão literária. São Paulo: Cultura
Moderna, (19--).
KORYTOWSKI, Ivo. Manual do poeta. Rio de Janeiro: Ciência Moderna, 2008.
Obrigado por prestigiar meu modesto Manual do Poeta!
ResponderExcluir