Colégio Diocesano, antigo Instituto São Luiz Gonzaga |
Antônio Augusto dos Reis Velloso (*)
Aqui estou, nesse momento, para, em meu nome pessoal, dar um testemunho daquilo que foi para mim a convivência maravilhosa com o Professor José Rodrigues e Silva, durante mais de 50 anos. Comecei essa convivência quando tinha 10 a 11 anos de idade, no então Instituto São Luiz Gonzaga, em Parnaíba-Pi. Guardo do Professor a mais encantadora impressão, por tudo aquilo que ele representou diretamente para mim e para toda a minha família.
O Professor, como sempre nos acostumamos a chama-lo, foi uma figura ímpar, realmente singular, tal o conjunto de valores que reunia. Ele era íntegro, pessoa dura e doce, firme, definido, consistente, personalidade rica de conhecimentos e de sabedoria humana. Ele representou para mim e para toda a minha família, a partir dos meus irmãos mais velhos, Francisco de Assis e João Paulo dos Reis Velloso, uma bela e rica experiência. Foi um professor maravilhoso e um grande mestre: no seu caso particular, professor de português, com profundos conhecimentos e excelente didática, transmitiu a todos nós uma visão profunda da língua. E sobretudo ensinou-nos o hábito de ler, ler sistematicamente, diariamente, a vida toda.
Foi ele um pai exemplar, um marido exemplar, um mestre exemplar, um ser humano exemplar. Tudo nele irradiava permanência, permanência nas convicções políticas, nas convicções de cidadão, nas convicções religiosas, permanência no amor, o amor a D. Bernadete, o amor aos filhos, a amizade permanente com os alunos, com os amigos.
A forte e permanente convicção religiosa, isso sempre me impressionou: em Parnaíba, no interior do Piauí, no litoral do Piauí, ele sempre foi aquela figura impressionante de homem religioso e íntegro, religião consciente, pelo amor a Deus que ele transmitia nas suas ações diárias, nos seus atos, na sua vida cotidiana. Esse foi um dado característico de sua personalidade: um homem religioso, crente em Deus, fervoroso, consistente na fé. Aprendi a admirar essa preciosa qualidade do seu caráter; é como se ele estivesse dizendo a todos nós, nos nossos encontros, nas suas aulas, na sua vida particular, em tudo, que havia um valor maior a ser perseguido, ou seja, a fé em Deus, o amor a Deus.
Volto a repetir, a figura humana do Professor nos dava aquela ideia da pessoa sempre voltada para as coisas permanentes, a partir da fé imensa, a partir da sua religiosidade, a partir das suas ações de pai de família, das suas ações de Professor equilibrado e diligente, tudo nele impressionava pela permanência. Aparentemente duro, exigente, determinado, cobrador, rigoroso, principalmente nas coisas de caráter, gostava de tudo certinho, arrumado, tudo nos conformes. Foi realmente na sua vida toda, uma pessoa preocupada com as coisas duradouras. Ensinava a todos nós coisas para ficar, desde a base. Nos estudos, transmitia as condições necessárias do aprendizado em português, em toda a sua complexidade, mesmo naquelas aulas complicadíssimas do português histórico, da origem das palavras, origens da língua. A sua preocupação era dar a todos nós um patrimônio de conhecimento, e sempre foi assim conosco, e ainda hoje tenho essa impressão, guardo essa feliz e agradável impressão. Tudo que recebi dele, durante todo aprendizado de português, no meu curso ginasial no antigo São Luiz Gonzaga, tinha a configuração de um belo patrimônio a ser guardado, acumulado, e que ficou dentro da gente, e que nos ajudou durante toda a nossa vida profissional, na nossa vida futura. Isso era maravilhoso, foi para todos nós realmente maravilhoso.
Outro traço muito importante do Professor José Rodrigues era a sua coerência, a coerência entre o que ele imaginava, o que ele tinha de ideias, as suas concepções, e a sua vida prática, os atos de sua vida. Acentuei muito o caráter religioso da sua personalidade. Registro também o caráter prático de suas ações, sempre preocupado em ajudar as pessoas , não só em ajudar as pessoas, mas em fazer refletir, por atos e ações, as suas convicções pessoais e religiosas. Cultivava as amizades , pelo menos essa é a recordação que tenho dele. Fizemos uma amizade desde os bancos escolares até hoje, de uma forma interessante. Não precisávamos estar juntos, não precisávamos estar um ao lado do outro. Saí de Parnaíba com 20 anos de idade e, mesmo em São Paulo, no Rio, em Brasília, onde eu estivesse, a minha ligação com ele se dava de uma forma intensa e duradoura. Quando nos encontrávamos, era como se tivéssemos nos visto no dia anterior, retomávamos o papo, retornávamos as conversas, ele se atualizava, ele estava permanentemente atualizado nos problemas locais, nos problemas do País, e isso tornava agradável o convívio com ele, qualquer que fosse a faixa de idade do seu interlocutor, porque ele tinha uma capacidade enorme de se aproximar das pessoas, do jeito que elas eram. Ele vinha com o seu jeito suave, inteligente, culto e transmitia devagarinho toda a consciência das suas ideias, e ele tinha uma ideia própria sobre cada tema. Era impressionante: mesmo quando se desligou de todas as atividades escolares, mesmo quando deu por encerrada a sua tarefa de mestre e de professor, mesmo depois disso ele cultivou o conhecimento das coisas; é claro que não era mais com todo aquele cabedal de conhecimentos captados nos livros, mas já agora sob a forma de uma experiência realmente ímpar , uma experiência que ele utilizava em favor das outras pessoas, em favor de todos que mantinham contato com ele. Ele passava toda essa experiência de vida, instalado lá no litoral do Piauí, mas ainda com muita coisa a transmitir a quem viesse do Rio, de São Paulo, ou de Brasília. Era gostoso esse contato, era, de fato, gostoso conviver com ele, mesmo que só de tempos em tempos.
Pois bem, eu estava comentando que a distância não mudava nada, que a gente se comunicava por cartas, por telefonemas ou por qualquer via. Uma via certa, absolutamente certa, era o cartão de Natal no final do ano, comemorando a vinda de Deus, a vinda do Filho de Deus.
Eu falei que ele se apresentava para mim, como uma pessoa firme e doce, ele se apresentava assim eu acho que para todos, para a família, para os amigos, para todos. No curso da vida, a gente ia observando progressivamente, na medida em que um de nós, eu por exemplo, caminhava em idade, caminhava em aprendizado, caminhava em conhecimento, caminhava em maturidade, toda aquela visão dura e firme, cobradora, ia desaparecendo, ia se transformando em doçura, a doçura do Professor que via em cada pessoa a realização dos seus sonhos, a realização dos seus objetivos. E cada vez mais, nesse contato que era mantido com ele, passávamos a perceber somente à distância aqueles sinais de dureza, para entrarmos numa faixa de convivência com a sua placidez crescente, aumentada a cada dia, aquela doçura paciente de mestre, de Professor, de amigo, ensinando, ensinando, ensinando.
Guardo com muita alegria a forte impressão de todos os encontros e reencontros mantidos com o Professor José Rodrigues, em Parnaíba, em Fortaleza, no Rio de Janeiro e em Brasília. Foram momentos encantadores. Era agradável manter aqueles contatos pessoais com ele, depois de longos períodos de ausência, em que se desfrutava de uma conversa amena, produtiva, positiva e propiciadora de um grande enriquecimento intelectual e humano. Era muito curioso observar nele aquela capacidade especial de estar sempre em dia com as coisas do País e do mundo. Como eu disse, não se tratava de um conhecimento específico, apenas apoiado em livros, mas um conhecimento muito maior, fortalecido com a exuberância da riqueza humana de sua personalidade, no amadurecimento feito com toda a consciência e sabedoria. Por mais que estivéssemos atualizados nos conhecimentos da vida no sul do país, da vida de cidade grande, da vida acostumada com os melhores meios de comunicação, era curioso ver como ele sempre tinha algo a nos propiciar, principalmente algo relacionado com a capacidade humana de ver as coisas, com maturidade de uma pessoa tão rica, em sentimentos e valores humanos. Dava gosto sentir nessas conversas e nesses reencontros todo o seu pique, toda a sua curiosidade, todo o seu desejo de avaliar com os seus ex-alunos, com seus amigos permanentes as coisas da vida, os problemas do País, os problemas do sul, os problemas da humanidade.
Relembrando esses momentos, revejo as transformações que se operavam nele, ao retomar contato com pessoas que eram os seus garotos de estudo, seus garotos de colégio e que agora se apresentavam de igual para igual, como adultos, e sempre revelando no íntimo um grande orgulho por tudo isso. Eu senti muitas vezes, nesses reencontros, que o Professor José Rodrigues refletia silenciosamente, delicadamente, um extremo orgulho pelo nosso sucesso, pelo nosso eventual sucesso.
Gostaria de lembrar alguns fatos singelos da minha vida, que estão intimamente ligados à convivência com o Professor José Rodrigues. São fatos muitos e muitos anos atrás, de modo que seria difícil relembrar de todos os detalhes, mas o que importa é a natureza desses fatos. Eu era um dos primeiros alunos da classe; aliás, nessa época de ginásio, ser o primeiro aluno era quase uma obrigação para mim, uma vez que, no Instituto São Luiz Gonzaga, isso fazia com que eu estudasse de graça, o que ajudava muito a minha família. Embora não fosse muito estudioso, eu estava sempre atento às aulas, muito cuidadoso nas aulas, dedicado mesmo às aulas, justamente para dispor de mais tempo, lá fora, para as brincadeiras, cinemas e lazer. Pois bem, o Professor José Rodrigues já reconhecia em mim um aluno razoável, um dos primeiros alunos, o primeiro aluno no cômputo geral das matérias. Mesmo assim, o senso de justiça dele, a preocupação com o educar e instruir para toda a vida, me colocou diante da seguinte situação, numa dada oportunidade: aparentemente, ele estava fazendo uma exposição muito difícil, exigindo da turma toda a atenção, e ele cobrava essa atenção da turma. Por alguma razão, que não era muito frequente, ele viu em mim um pouco de desatenção e me cobrou isso na hora, de forma impiedosa e direta, ou seja, dirigiu-se diretamente a mim e fez a colocação crucial: ‘Antônio Augusto, sobre o que eu estava falando? Por favor, reproduza todas as minhas explicações’. Aquele foi um importante teste para um garoto de 11, 12 anos de idade, pois me colocou numa situação embaraçosa de perceber que, mesmo na condição especial de bom aluno, eu não poderia me atribuir o direito de desviar a atenção da aula. Para sorte minha, como eu já estava acostumado a, inconscientemente, me voltar intensamente para o conteúdo das suas aulas, consegui me sair bem, relatando com alguma precisão aquilo que o nosso querido Professor havia explicado. Suei frio, mas me safei, e a grande alegria foi, mais adiante, saber que o Professor havia contado em casa o episódio, de certa forma enaltecendo a minha argúcia de, mesmo embaraçado, me desvencilhar daquela situação. Como se vê, homem justo e bom.
Outra situação de que me recordo dá um sinal de toda a singeleza do seu caráter. Esse fato se refere a 1 ou 2 anos depois do primeiro episódi0o.Eu estava concluindo o curso ginasial, a 4ª série, e a título de desafio pessoal havia me proposto a obter notas máximas em todas as provas finais, justamente as provas mais difíceis, aquelas que obrigavam o aluno naquela época a rever a matéria do 1° e 2° semestres. Tarefa difícil, mesmo isoladamente para cada matéria, e muito mais difícil pelo compromisso pessoal, não revelando a ninguém, de obter nota máxima em todo o conjunto. O que me apavorava era justamente a prova de português, pois eu bem sabia o que seria exigido nela, seja em termos de redação, seja em termos de gramática, seja em termos de conhecimentos finais requeridos. Além disso, eu nunca havia conseguido nota máxima em português, em qualquer das provas semestrais de todos os anos anteriores. O certo é que, ao final, cheguei lá: 10 na prova final de português, na conclusão do curso ginasial. Uma alegria indescritível! No fundo, no fundo, eu estava vivendo uma gratidão enorme, pois tinha consciência de que era um bom aluno, tinha feito uma boa prova, mas a nota 10 havia sido dada como um prêmio pelo meu querido Professor José Rodrigues, refletindo a sabedoria, a justeza do seu caráter de Mestre e Professor.
O terceiro fato que me ocorre está ligado a mim e ao João Paulo. Estávamos em São Paulo, já depois do vestibular para o curso de economia, isso por volta de 1957, fazendo o 1° ano daquele curso. Tratava-se da primeira experiência de prova semestral, num ambiente novo, completamente diferente daquele a que estávamos acostumados no Piauí, com toda a agressividade de um centro maior, e com todo o espírito de competitividade existente na turma. A nossa grande curiosidade girava em torno do resultado dessa primeira experiência de provas no curso superior. Havia um professor que tinha por hábito devolver as provas para que cada aluno confirmasse ou contestasse a respectiva nota. Antes de fazer a distribuição, o professor fez um alerta em tom sério: ‘existem dois alunos na turma que representam grande perigo para os demais. As duas notas máximas que lhes atribuí guardam uma enorme distância para a segunda nota, a nota 9, e a razão é muito simples: eles têm uma qualidade singular, eles sabem escrever, escrever bem, transmitindo claramente e com precisão as suas ideias’. Após isso, fez questão de saber onde e com quem tínhamos aprendido português. Foi uma alegria enorme, e particular orgulho para nós revelar para todos o nome do nosso Querido Professor José Rodrigues e Silva.
Acredito ainda que esteja faltando neste meu relato uma palavra de realce para aquele ponto que considero talvez o mais relevante de toda a personalidade do nosso querido Professor. Refiro-me ao seu extremado sentido de família. Ele cultivava a família. Ele cultivava a família, ele tinha um grande amor pela família, ele vivia em torno da família, a partir de D. Bernadete e junto com todos os seus filhos. Era bonito vê-lo como o líder do grupo, em torno do qual giravam todos os acontecimentos. Era uma bela unidade, uma bela unidade familiar, mostrando a importância da família como valor definitivo e permanente. Fico feliz por isso, porque associo esse fato com uma preocupação semelhante do meu pai, que fez também da família o seu centro de interesse.
Caríssimo Professor José Rodrigues: a nossa gratidão por tudo, o nosso abraço saudoso, as nossas orações fervorosas.
Brasília, 27 de dezembro de 1996.
(*) O Dr. Antônio Augusto dos Reis Velloso é Economista, Superintendente da Confederação Nacional das Indústrias Financeiras-CNF, em Brasília(DF). É irmão do Ex-Ministro João Paulo dos Reis Velloso, ex-alunos do Professor.
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