23
de maio Diário Incontínuo
O
LIVRO MAIS TRISTE DE PORTUGAL
Elmar Carvalho
No
final da semana retrasada, ao retornar a Teresina, encontrei um
livro, que algum carteiro deixara na portaria do condomínio onde
moro, cuja chegada já me fora anunciada por minha mulher ao
telefone. Ainda a velha empresa de Correios é usada, ao menos para o
envio de livros e outros objetos. Já pouco se enviam carta e
cartão-postal. Usa-se hoje, quase sempre, o recurso de e-mail, pela
internet, ou de torpedos, pelo telefone celular. O mundo se torna
cada vez mais instantâneo e virtual.
Não
resta dúvida, as mensagens eletrônicas exigem menos trabalho e
despesas. Não se precisa de envelope, cola, selo, papel,
deslocamento para a agência postal, espera em fila e talvez mais
algum inconveniente, que sempre surge. Entretanto, perdemos o
romantismo da espera por uma carta, e de sua manual, singela e
ansiosa abertura do envelope, seja com tesoura ou espátula, bem como
o manuseio do papel onde a mensagem foi escrita. No caso de
apaixonados missivistas, poderia haver vestígios de beijos, lágrimas
ou perfumes, ou mesmo marcas vermelhas de batom ou sangue.
O
livro era o Só, do poeta Antônio Nobre. Tratava-se de um exemplar
da 4ª edição, publicada em 1921 pela tipografia de A Tribuna,
sediada em Porto – Portugal. Em sua folha de rosto consta que
“Deste livro, publicado por Augusto Nobre, tiraram-se três mil
exemplares”. Certamente, a edição fora custeada pelo professor
Augusto Nobre, irmão do poeta. O bardo já era falecido, desde
precisamente 18 de março, domingo de 1900, às dez e meia da manhã.
O próprio autor, referindo-se a esse livro, o único publicado em
sua vida, o considerava o mais triste livro de Portugal.
O
meu primeiro contato com esse grande poeta português data,
aproximadamente, de 1972, quando eu tinha 16 anos de idade e cursava
o terceiro ano do antigo ginásio. Seus poemas estavam na excelente
Antologia Escolar Portuguesa, organizada por Marques Rebelo, e
publicada pela extinta Fename, órgão do Ministério da Educação e
Cultura. Para o meu gosto pessoal, trata-se de uma das melhores
seletas em prosa e verso, tanto pela escolha rigorosa dos autores
como dos textos.
Eu
a adquiri através de uma negociação com minha mãe. Pedi-lhe
dinheiro para comprá-la, alegando que não iria exigir que me fosse
comprado um dos livros didáticos recomendados pelos professores. Um
pouco depois, terminei conseguindo que meus pais me comprassem o
compêndio de que havia dito abrir mão. Li e reli essa antologia
várias vezes, sempre com muito encanto e atenção. Suponho que isso
serviu para firmar o meu estilo. Através desse livro paradidático,
tomei conhecimento dos clássicos e dos modernos escritores
lusitanos, entre os quais Fernando Pessoa e Mário de Sá Carneiro,
posto que outros já conhecia, como Eça de Queiroz, Camilo Castelo
Branco, Antero de Quental, Almeida Garrett, Bulhões Pato, Antônio
Vieira e Camões.
Depois,
voltei a reler o poeta em outras antologias, e sobretudo em exemplar
da coleção Nossos Clássicos, da editora Agir, que relevantes
serviços prestou à literatura, ao publicar textos dos principais
poetas e escritores do Brasil e de Portugal. Essa coletânea era
publicada sob a responsabilidade de Alceu Amoroso Lima, Roberto Alvim
Corrêa e Jorge de Sena. O volume dedicado a Antônio Nobre era o de
número 41, e o seu organizador era Luís da Câmara Cascudo, que lhe
fez uma bela apresentação, erudita, lírica e concisa, vertida em
prosa límpida, rítmica, elegante e castiça.
No
domingo, dia 12, recebi uma ligação telefônica do amigo e poeta
Walter Lima, hoje residente no Estado de São Paulo, perguntando-me
se eu recebera o livro que ele me havia enviado, como presente de meu
aniversário, ocorrido no dia 9 de abril. Walter é um leitor
permanente e antenado. Lê os autores do passado e os atuais, de
forma atenta e crítica, de modo a fazer pertinentes comentários. É
também um poeta criativo e contido, sem explosões emocionais ou
verborrágicas. No meu aniversário do ano passado, homenageou-me com
um poema, em que faz verdadeiro malabarismo e ludismo em torno de meu
nome.
O
vate Walter Lima, na página de rosto, logo abaixo do título Só,
escreveu os seguintes versos: “Nascemos sós. / Um pouco crescemos
pós. / Por um instante, juntos / ficamos, parceiramente. / Mas no
fim / Na chegada da infausta / A “indesejada das gentes” /
Partimos sós. / In.feliz.mente / S.O.S”. Poema melancólico e
verdadeiro, certeiro como um punhal na mão de um circense atirador
de facas. O SOS do verso final parece o uivo de um homem solitário,
abandonado, sem esperança em face da aparente indiferença do
infinito e da vastidão do cosmos, como no poema elegíaco de Rainer
Maria Rilk: “Quem, se eu gritasse, entre as legiões dos Anjos / me
ouviria?”
O
livro que me foi enviado revela a sua idade, que remonta, como disse,
a 1921, através de suas páginas encardidas e manchadas. A capa
azul-escura já não estampa seu título, nem o nome do autor; ou
talvez não seja a original. As folhas iniciais foram cortadas, por
navalha afiada ou estilete. Algumas manchas podem ser de lágrimas ou
de suor, ou apenas de prosaicos dedos sujos.
Isso
me faz lembrar belo poema de Manuel Bandeira, em que ele fala de uma
estatuazinha de gesso, que o tempo envelheceu e manchou de pátina. A
vida nos marca com traumas, rugas e cicatrizes, e nos fere no corpo e
na alma com sofrimentos que tentamos driblar ou suportar. Ou, ao
menos, torná-los invisíveis, por orgulho ou pudor.
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