Fonseca
Neto
Muitos
temas interessantes estudados em chave historiográfica por gente de
nossas universidades. E a educação é assunto entre os que mais
aparecem como objeto de monografias em geral, sobretudo dissertações
e teses. Em sua atribuição institucional, a Ufpi tem publicado
alguns desses estudos.
Um deles
clama atenção, com especial pertinência, neste momento em que se
fala muito sobre educação e ensino públicos e pouco se discute
sobre as raízes do impasse multissecular que impede cumpram eles um
papel mais decisivo na melhor qualidade da vida social. Refiro-me ao
livro “A construção da memória cívica – espetáculos de
civilidade no Piauí (1930-1945)”, tese doutoral, de autoria da
professora Salânia Maria Barbosa de Melo. Uma obra que examina o
mundo da vida escolar nos estabelecimentos públicos estaduais, com
foco numa variável que, por agitar as nervuras das “trocas
simbólicas”, deixaram as chamadas marcas indeléveis na memória
pessoal-coletiva de mais de uma geração. Quem estudou em escola
pública, e até nas particulares, no tempo acima indicado e nas duas
décadas seguintes, lembra com certa nostalgia as festas cívicas,
com muito impacto comunitário.
E quem não
lembraria do cotidiano ritualizado das escolas? Da formação diária
nos pátios ou átrios do prédio escolar, para cantar hinos, ouvir
preleções, rezar? As visitas das “autoridades constituídas” e
até a comemoração de seus aniversários? As datas cívicas,
propriamente, ou que fossem as datas festivas tipo “dia do
trabalho”, aniversário da diretora/diretor, “dia da árvore”?
Salânia
examina como isso se deu no Piauí, emulando as sensações dos
signos ideológicos e políticos alçados ao poder a partir de
1930, particularmente o furor nacional-estadonovista, desde 1937.
Educar o povo no sentimento de amor à Pátria se tornara um
significante a permear o processo educativo escolar, como condição
de colocar o Brasil sob o farol de certa modernidade. Generalizou-se
nesse tempo, quanto possível, o uso cerimonial do “pavilhão”
nacional, o aprendizado prático do hinário brasileiro: do Nacional,
à Bandeira, à Independência, etc. As celebrações do Sete de
Setembro incorporaram, de vez, a estética marcial dos desfiles
militares.
As
pessoas, em geral – e a autora trabalha também com falas-fontes
orais –, puxam da memória emocionais referências de apreço a
tais espetáculos, como se eles fossem algo inerente à vida escolar
em seu processo historicamente dado. Mas ela analisa essas
manifestações e ritualizações enquanto “tradições
inventadas”, no sentido delineado por Eric Hobsbawm, de “práticas,
de natureza ritual ou simbólica, visando inculcar certos valores e
normas de comportamento através da repetição [implicando] uma
continuidade em relação ao passado”. Aliás, colha-se aqui uma
aparente contradição nesse protagonismo do tempo: o Estado era
“novo”, mas fabricando tradições e esculpindo o tão
ideologicamente acariciado marco-mico-mito fundador dos manés
venturosos. Valeu a invenção? Ganhou o getulismo: ficou a impressão
de uma escola melhor. Era?
Configurando
o quadro da vida social piauiense do tempo, Salânia examina nele o
processo educacional-escolar, identificando celebrações escolares
com forte impactação comunitária, tornando-se referências muito
especiais da cultura local – aliás, faz questão de acentuar que
seu estudo se insere na perspectiva da chamada História Cultural.
Com suporte em registros hemerográficos dessas festas de colégio,
também muito utilizados na pesquisa, várias delas vêm descritas,
em detalhes. E há variado repertório fotográfico de cenas festivas
de rua e de inaugurações de prédios escolares, na capital e no
interior – alguns tão familiares a quem conhece, por exemplo,
Buriti dos Lopes, Floriano, Regeneração.
O esforço
de ampliação do ensino e de acabar com o analfabetismo animou os
planos da “revolução” de 30, daí a quase federalização do
ensino básico. Mas não avançaram as ideias de alguns formuladores
sobre a escola necessária ao Brasil. De 64 em diante,
ressignificaram as comemorações e restaram diminuídas as festas,
por incompatíveis as aglomerações com a tirania silenciadora da
ditadura, que feriu o mundo escolar.
Está
fixada, pois, uma contribuição valiosa da doutora Salânia (anfíbia
de Ufpi, Uespi e Uema), para se compreenda, passes, impasses e
permeações que assinalam o percurso acidentado da educação
escolar no Brasil. Livro bom de ler; claro, enquanto se degusta a
capa, uma emanação artística direta da memória hipocâmpica do
genial Antonio Amaral.
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