sábado, 26 de outubro de 2013

Tradição cívica inventada


Fonseca Neto

Muitos temas interessantes estudados em chave historiográfica por gente de nossas universidades. E a educação é assunto entre os que mais aparecem como objeto de monografias em geral, sobretudo dissertações e teses. Em sua atribuição institucional, a Ufpi tem publicado alguns desses estudos. 
Um deles clama atenção, com especial pertinência, neste momento em que se fala muito sobre educação e ensino públicos e pouco se discute sobre as raízes do impasse multissecular que impede cumpram eles um papel mais decisivo na melhor qualidade da vida social. Refiro-me ao livro “A construção da memória cívica – espetáculos de civilidade no Piauí (1930-1945)”, tese doutoral, de autoria da professora Salânia Maria Barbosa de Melo. Uma obra que examina o mundo da vida escolar nos estabelecimentos públicos estaduais, com foco numa variável que, por agitar as nervuras das “trocas simbólicas”, deixaram as chamadas marcas indeléveis na memória pessoal-coletiva de mais de uma geração. Quem estudou em escola pública, e até nas particulares, no tempo acima indicado e nas duas décadas seguintes, lembra com certa nostalgia as festas cívicas, com muito impacto comunitário.
E quem não lembraria do cotidiano ritualizado das escolas? Da formação diária nos pátios ou átrios do prédio escolar, para cantar hinos, ouvir preleções, rezar? As visitas das “autoridades constituídas” e até a comemoração de seus aniversários? As datas cívicas, propriamente, ou que fossem as datas festivas tipo “dia do trabalho”, aniversário da diretora/diretor, “dia da árvore”?  
Salânia examina como isso se deu no Piauí, emulando as sensações dos signos  ideológicos e políticos alçados ao poder a partir de 1930, particularmente o furor nacional-estadonovista, desde 1937. Educar o povo no sentimento de amor à Pátria se tornara um significante a permear o processo educativo escolar, como condição de colocar o Brasil sob o farol de certa modernidade. Generalizou-se nesse tempo, quanto possível, o uso cerimonial do “pavilhão” nacional, o aprendizado prático do hinário brasileiro: do Nacional, à Bandeira, à Independência, etc. As celebrações do Sete de Setembro incorporaram, de vez, a estética marcial dos desfiles militares.
As pessoas, em geral – e a autora trabalha também com falas-fontes orais –, puxam da memória emocionais referências de apreço a tais espetáculos, como se eles fossem algo inerente à vida escolar em seu processo historicamente dado. Mas ela analisa essas manifestações e ritualizações enquanto “tradições inventadas”, no sentido delineado por Eric Hobsbawm, de “práticas, de natureza ritual ou simbólica, visando inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição [implicando] uma continuidade em relação ao passado”. Aliás, colha-se aqui uma aparente contradição nesse protagonismo do tempo: o Estado era “novo”, mas fabricando tradições e esculpindo o tão ideologicamente acariciado marco-mico-mito fundador dos manés venturosos. Valeu a invenção? Ganhou o getulismo: ficou a impressão de uma escola melhor. Era? 
Configurando o quadro da vida social piauiense do tempo, Salânia examina nele o processo educacional-escolar, identificando celebrações escolares com forte impactação comunitária, tornando-se referências muito especiais da cultura local – aliás, faz questão de acentuar que seu estudo se insere na perspectiva da chamada História Cultural. Com suporte em registros hemerográficos dessas festas de colégio, também muito utilizados na pesquisa, várias delas vêm descritas, em detalhes. E há variado repertório fotográfico de cenas festivas de rua e de inaugurações de prédios escolares, na capital e no interior – alguns tão familiares a quem conhece, por exemplo, Buriti dos Lopes, Floriano, Regeneração.
O esforço de ampliação do ensino e de acabar com o analfabetismo animou os planos da “revolução” de 30, daí a quase federalização do ensino básico. Mas não avançaram as ideias de alguns formuladores sobre a escola necessária ao Brasil. De 64 em diante, ressignificaram as comemorações e restaram diminuídas as festas, por incompatíveis as aglomerações com a tirania silenciadora da ditadura, que feriu o mundo escolar.
Está fixada, pois, uma contribuição valiosa da doutora Salânia (anfíbia de Ufpi, Uespi e Uema), para se compreenda, passes, impasses e permeações que assinalam o percurso acidentado da educação escolar no Brasil. Livro bom de ler; claro, enquanto se degusta a capa, uma emanação artística direta da memória hipocâmpica do genial Antonio Amaral. 

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