sábado, 28 de junho de 2014

Quem são os meus amigos?


Cunha e Silva Filho
         
                           À medida em que vou envelhecendo,  sinto a solidão dos amigos, e aqui  aludo até  mesmo  aos amigos mais  íntimos,  não aos colegas fortuitos, aos amigos de conveniências, aos de um dia, de uma semana, de um mês, de um ano,  de horas,  da infância (já quase apagados, tudo é penumbra,  que mais está para o fog inglês), aos amigos formais. Parece que a tecnologia,  o louco mundo contemporâneo,  das amizades virtuais,  dos facebooks, do telefone,  dos tablets e outros gadgests está  substituindo, parcamente,  é claro,  as grandes amizades. Considero que o verdadeiro amigo  é aquele com  quem se pode   desabafar,   dizer verdades  e até mesmo   soltar uns palavrões. Amigos que se encobrem de formalidades não são  verdadeiros amigos.
                            Eu sei que estou  sendo  duro  com  o desenvolvimento do tema  desta crônica, mas não me conformo em absoluto com  a falta do sentimento mais puro  e  incondicional. Na vida social, todos são “amigos,” até os estranhos  muitas vezes chamamos  de “amigos.” O sentido genuíno, nobre,   solidário,  preciso,  afetuoso, a amizade livre  que não tem receio de errar diante de um grande amigo, é esta que me  faz falta no mundo  atual. Estou cansado de expressões  meramente  corteses: “meu amigo”, querido amigo”,  ”um abraço do amigo etc.”   Elas só valem  pelo significante, é incompleta na inteireza semântica, na verdade íntima, não vai ao  “eu profundo” dos simbolistas.
                        Da infância para adolescência, desta para a vida adulta e da vida adulta para a velhice  vamos  acumulando um monte  de perdas de amigos, que se afastam, somem nas multidões. Sei que a vida presente é um frenesi,  um açodamento, uma correria,  um pensar em si mesmo,  e, então,  os outros, vão sendo deixados para trás,  até serem  definitivamente   esquecidos pelo  animal social.
                           A corrida para o sucesso,  para a sobrevivência,  para o que dá mais  lucro e conforto são fatores  agravantes da  fragmentação  do indivíduo.  E é nessa  corrida que as promessas  se vão  esfacelando. A passagem  da existência terrena é  mesmo  escassa de grandes amizades. O tempo urge. Os compromissos inadiáveis na agenda do  individualismo  estão acima  do sentimento  lídimo da amizade. Para  o nosso  pequeno mundo,  passageiro  e curto,  temos todo o tempo do mundo. E isso vale para pai, filhos,  netos,   parentes em geral.  Háquem me diga: “Mas você não me procura, não me telefona, não me  escreve, anda sempre sumido...”  Não,  não sou eu que não escrevo, não sou eu que estou sumido,  é a amizade que está fenecendo. E este fenômeno  social abarca não só os que não são parentes, segundo falei atrás,  mas todos socialmente   considerados.
                 Há quem  fale de uma amizade  que me decepciona    em especial:  a amizade  que chamo de “interessada.” Não é uma amizade  de verdade,  ela vive das aparências  e da hipocrisia; é plena de    carinhos,  atenções,  bajulações. Não se sustenta na verdade dos sentimentos,  conserva-se sob o escudo  das exterioridades, das superfícies, do faz de conta. O seu motor  propulsor, o seu dínamo se alimenta  da fachada, do postiço, do irreal. Seria como uma amizade “comprada.”   Ela dura enquanto dura o interesse maior  interpessoal  mediado pelo fetiche do dinheiro  e  do poder  econômico-financeiro.Seu passaporte é o prestígio financeiro de um dos lados, o lado mais forte, que é o capital, a conta corrente gorda e verdadeira fábrica  de amizades  de fancaria.
Talvez,  uma  única saída para  essa carência é cultivar a solidão  da arte, do artista,  do nosso mundo  íntimo e profundo.Que me seja  consolo  a seguinte admirável  passagem de um texto do crítico  Álvaro Lins (1912-1970),  autor que tenho  ultimamente tanto lido por injunções  de pesquisa e pelo prazer de seus  textos: “Porque é um solitário  é que o artista constrói um universo de imagem onde possa introduzir as raízes mesmas do seu ser.Porque é um artista é que um homem tem  que ser solitário, porque somente na solidão a arte existe.” (LINS, Álvaro. Teoria literária. Rio de Janeiro: Edições de Ouro,  1970, p. 109).
         A pergunta do título desta crônica não é um mero  jogo   retórico, mas a constatação da experiência de quem  viveu mais do que  tantos que já se foram, alguns ainda tão cedo. A sociedade,  capitalista, ou não capitalista,  dos nossos tempos  é que nos empurra  para a solidão e perda das amizades feitas ao longo  da vida.Todos, ou quase todos,  estão  pensando mais no seu próprio umbigo,  na sua aventura  pessoal e no seu  hedonismo  intransferível. Só as aparências valem, combinadas  harmoniosamente – quão lamentável! - com o dinheiro e a conquista  pessoal, o culto  à beleza  da juventude e  a obsessão  pelo aqui e agora. Amizade, família   pais  ficam  para trás. Que fosso tão profundo existe entre novos e velhos, entre a alegria  do primado do presente eterno e efêmero e a solidão  dolorida  da experiência a caminho da eternidade, vista esta em todas as suas formas  de  expressão  e busca pelo  sentido  do tempo e da existência. Volto à pergunta inicial: Quem são os meus amigos? Quereis, leitor,  a minha  resposta? Não vou  dizê-la. Deixo-a em aberto. Muitas vezes,  prefiro a ambiguidade à clareza sob o manto opaco da  hipocrisia: uma  realidade digna da ficção  machadiana.   

Nenhum comentário:

Postar um comentário