EXORTAÇÃO À JUSTIÇA E À BONDADE
Elmar Carvalho
No livro “O Jardim das Rosas”, de Saadi,
encontra-se a emblemática passagem em que um pastor teria pedido ao pai lhe
ensinasse a bondade, ao que este lhe teria respondido: “Sê bom, mas que a tua
mansidão não faça o lobo tornar-se audacioso.” De igual modo, diria que nós, os
juízes, devemos também ser bons, mas com as devidas cautelas, ainda mais agora
em que os ogros e elfos, desconformes e canhestros, andam, afoitamente, com os dedos tortuosos e sujos, apontando
pretensas mazelas da Justiça, para depois, a exemplo do que já faziam dantes,
incorrerem em maiores e mais danosos pecados.
Devemos sempre
ter em mente que aqueles que nos procuram para solução de conflitos, via de
regra, já tentaram por vários outros meios, mais rápidos e econômicos, a sua
resolução, e que, quando batem à porta da Justiça, batem como sendo a última
porta da esperança, e que por isso mesmo não os podemos decepcionar, porquanto
só aqueles que se defrontam com o limbo do inferno dantesco são despojados de
toda esperança.
A balança da
Justiça há de restar sempre soerguida, limpa e altaneira, e devidamente
ajustada pelo prumo e pelo esquadro, para que os pratos se mantenham no
equilíbrio da imparcialidade.
Quando tomei
posse de meu cargo de juiz junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do
Piauí, em solenidade singela, contudo para mim memorável, disse que uma dúvida
me assaltava naquela ocasião: sobre o que seria mais importante, se a justiça,
se a bondade. Mas eu próprio resolvi o aparente paradoxo da equação, ao dizer
que quem era bom era justo, e quem era justo necessariamente teria que ser bom.
Todavia, hoje
me assalta novamente a mesma dúvida, ao lembrar-me da história de Judas, que
fustigado pela sua consciência implacável, talvez o último resquício da
centelha divina que ainda lhe restasse, ao tentar ser justo, sendo juiz e algoz
de si próprio, expiando sua culpa com o enforcamento, deixou de ser bom para
consigo, perdoando-se a si mesmo e buscando o perdão do Mestre traído, mediante
uma vida de bondade e de arrependimento.
Porém, no
desespero e no orgulho, preferiu optar por uma justiça inexorável, sem bondade
e sem perdão para consigo mesmo, o que me faz novamente enxergar que a justiça
e a bondade não se excluem, mas, ao contrário, se completam e se sublimam. E
isto até o nosso ordenamento jurídico, a jurisprudência e a doutrina entendem,
quando assinalam o princípio da bagatela e o estado de necessidade, que atenuam
e de certa forma justificam alguns pequenos delitos, cometidos em certas
circunstâncias.
A consciência
que está em todos nós, e que estava em Judas, no momento do salto e do laço
fatal, é um semáforo divino, que nos alerta sobre os perigos e armadilhas do
pecado, mas que, semelhante a um sinal de trânsito, não nos impede de
avançarmos indevidamente e entrarmos na delinqüência e na prática de ações
reprováveis. Aliás, dizem que, quando a consciência é freqüentemente
desrespeitada e violada, termina por se tornar insensível, e leva o homem a sua
degradação total e sem retorno, em que ele mergulha nas profundezas abissais
dos pecados hediondos, progressivos e sem freios, numa espiral ascendente e em
expansão.
Dizia o mestre
Alceu Amoroso Lima, o Tristão de Athayde, que os pecados são virtudes
enlouquecidas. Isto porque o que se chama pecado, quando sentido e praticado de
forma sutil e diminuta, é virtude, tanto que a soberba, a gula, a luxúria, a
inveja são extrapolações do amor próprio, do apetite, do sexo e da admiração.
Há quem diga que o anjo decaído amava tanto e tanto admirava o Onipotente que
ousou desejar ser um seu igual. Assim, devemos estar em perpétua vigilância para
que as nossas virtudes não se transformem em vícios, pela incúria e pelo
superdimensionamento.
O grande
estadista do Império, Nabuco de Araújo, pai do não menos ilustre Joaquim
Nabuco, dizia que preferia um juiz desonesto a um juiz destituído de inteligência,
porque, na sua avaliação, um magistrado corrupto só errava nas causas em que
tivesse interesse, ao passo que o honesto, mas desprovido de inteligência,
cometeria muitos erros, em face do seu despreparo. Por outro lado, em sentido
oposto, conta-se que Anatole France, ao proferir notável conferência sobre as
qualidades que deveriam ornar um julgador, não se referiu à honestidade.
Indagado sobre a aparente omissão, respondeu que não falava ali senão a
magistrados honestos, porque um juiz corrupto não era efetivamente um juiz, mas
alguém que deveria ser tratado em matéria penal.
Compartilho
desta última opinião, porquanto entendo que um julgador corrupto terminará,
como uma metástase ou como uma infecção generalizada, por macular o próprio
conceito de Justiça, e por levá-lo a ter cada vez mais interesses escusos nos
processos, por força da ganância e da elasticidade degenerativa de sua
degradação, ao passo que um juiz probo, embora não quinhoado com os fulgores de
uma inteligência portentosa, através de seu esforço e zelo na persecução do
justo e da verdade real, alcançará dar soluções corretas aos litígios, uma vez
que não faz parte de sua índole tirar a razão de quem tem para dar a quem não a
tem. De qualquer modo, tenho plena convicção de que os juízes iníquos são uma
pequena minoria, que jamais há de empanar o brilho e a glória do Poder
Judiciário.
Sou um
otimista. Acredito que no filme da luta entre o bem e o mal, os mocinhos
vencerão os bandidos, porque as trevas não podem prevalecer sobre a luz. Onde a
luz chega, as trevas, em fuga, desaparecem. O bem sempre dominará o mal, pois a
marcha da humanidade é para a frente e para o alto, e o seu desiderato maior é
o bom, o bem e o belo. Por isso existe o amor, o mais nobre e sublime dos
sentimentos.
Onde existe o
amor, existem a bondade, a caridade e a justiça, e essas virtudes interagem
entre si e se retroalimentam, e fazem surgir o resplendor e a glória de um
círculo virtuoso. Inclusive, o culto e inteligentíssimo São Paulo dizia que,
ainda que tivesse os mais importantes dons e falasse a língua dos anjos, sem o
amor nada seria. Embora haja controvérsia a este respeito, tenho para mim que o
amor deve ser colocado acima da caridade, pois quem tem realmente amor tem
disposição para a prática das virtudes, inclusive a caridade, ao passo que
esta, desprovida do excelso sentimento, pode ser apenas hipocrisia e demagogia,
ou até mesmo vão comércio, na esperança de uma futura e improvável recompensa
divina.
Exorto os
colegas juízes para que prossigamos com fé, esperança e coragem em nossa luta
para que a Justiça humana seja realmente justa, porque um dia, talvez no dia do
Juízo Final, haveremos de nos defrontar com a balança do Supremo Julgador, ao
qual nos teremos de submeter. E que, nessa ocasião, a palavra tequel,
entrevista pelo rei Baltazar, em seu opíparo banquete, inserta na frase “mene,
mene, tequel, ufarsim” (Daniel, 5:25-27), cujo enigma foi revelado pelo
profeta Daniel, em sua tradução para “Pesado foste na balança, e foste achado
em falta”, não seja por nós avistada.
Sim, porque ao
invés desta palavra, embebida de profunda iniqüidade, queremos que, ao
passarmos pela balança incorruptível e exata do Criador, não sejamos achados em
falta, e que a sua espada flamejante e gloriosa não caia sobre a nossa cabeça.
Nenhum comentário:
Postar um comentário