quinta-feira, 25 de setembro de 2014

EXORTAÇÃO À JUSTIÇA E À BONDADE


EXORTAÇÃO À JUSTIÇA E À BONDADE

                                 Elmar Carvalho

No livro “O Jardim das Rosas”, de Saadi, encontra-se a emblemática passagem em que um pastor teria pedido ao pai lhe ensinasse a bondade, ao que este lhe teria respondido: “Sê bom, mas que a tua mansidão não faça o lobo tornar-se audacioso.” De igual modo, diria que nós, os juízes, devemos também ser bons, mas com as devidas cautelas, ainda mais agora em que os ogros e elfos, desconformes e canhestros, andam, afoitamente,  com os dedos tortuosos e sujos, apontando pretensas mazelas da Justiça, para depois, a exemplo do que já faziam dantes, incorrerem em maiores e mais danosos pecados.
Devemos sempre ter em mente que aqueles que nos procuram para solução de conflitos, via de regra, já tentaram por vários outros meios, mais rápidos e econômicos, a sua resolução, e que, quando batem à porta da Justiça, batem como sendo a última porta da esperança, e que por isso mesmo não os podemos decepcionar, porquanto só aqueles que se defrontam com o limbo do inferno dantesco são despojados de toda esperança.
A balança da Justiça há de restar sempre soerguida, limpa e altaneira, e devidamente ajustada pelo prumo e pelo esquadro, para que os pratos se mantenham no equilíbrio da imparcialidade.
Quando tomei posse de meu cargo de juiz junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Piauí, em solenidade singela, contudo para mim memorável, disse que uma dúvida me assaltava naquela ocasião: sobre o que seria mais importante, se a justiça, se a bondade. Mas eu próprio resolvi o aparente paradoxo da equação, ao dizer que quem era bom era justo, e quem era justo necessariamente teria que ser bom.
Todavia, hoje me assalta novamente a mesma dúvida, ao lembrar-me da história de Judas, que fustigado pela sua consciência implacável, talvez o último resquício da centelha divina que ainda lhe restasse, ao tentar ser justo, sendo juiz e algoz de si próprio, expiando sua culpa com o enforcamento, deixou de ser bom para consigo, perdoando-se a si mesmo e buscando o perdão do Mestre traído, mediante uma vida de bondade e de arrependimento.
Porém, no desespero e no orgulho, preferiu optar por uma justiça inexorável, sem bondade e sem perdão para consigo mesmo, o que me faz novamente enxergar que a justiça e a bondade não se excluem, mas, ao contrário, se completam e se sublimam. E isto até o nosso ordenamento jurídico, a jurisprudência e a doutrina entendem, quando assinalam o princípio da bagatela e o estado de necessidade, que atenuam e de certa forma justificam alguns pequenos delitos, cometidos em certas circunstâncias.
A consciência que está em todos nós, e que estava em Judas, no momento do salto e do laço fatal, é um semáforo divino, que nos alerta sobre os perigos e armadilhas do pecado, mas que, semelhante a um sinal de trânsito, não nos impede de avançarmos indevidamente e entrarmos na delinqüência e na prática de ações reprováveis. Aliás, dizem que, quando a consciência é freqüentemente desrespeitada e violada, termina por se tornar insensível, e leva o homem a sua degradação total e sem retorno, em que ele mergulha nas profundezas abissais dos pecados hediondos, progressivos e sem freios, numa espiral ascendente e em expansão.
Dizia o mestre Alceu Amoroso Lima, o Tristão de Athayde, que os pecados são virtudes enlouquecidas. Isto porque o que se chama pecado, quando sentido e praticado de forma sutil e diminuta, é virtude, tanto que a soberba, a gula, a luxúria, a inveja são extrapolações do amor próprio, do apetite, do sexo e da admiração. Há quem diga que o anjo decaído amava tanto e tanto admirava o Onipotente que ousou desejar ser um seu igual. Assim, devemos estar em perpétua vigilância para que as nossas virtudes não se transformem em vícios, pela incúria e pelo superdimensionamento.
O grande estadista do Império, Nabuco de Araújo, pai do não menos ilustre Joaquim Nabuco, dizia que preferia um juiz desonesto a um juiz destituído de inteligência, porque, na sua avaliação, um magistrado corrupto só errava nas causas em que tivesse interesse, ao passo que o honesto, mas desprovido de inteligência, cometeria muitos erros, em face do seu despreparo. Por outro lado, em sentido oposto, conta-se que Anatole France, ao proferir notável conferência sobre as qualidades que deveriam ornar um julgador, não se referiu à honestidade. Indagado sobre a aparente omissão, respondeu que não falava ali senão a magistrados honestos, porque um juiz corrupto não era efetivamente um juiz, mas alguém que deveria ser tratado em matéria penal.
Compartilho desta última opinião, porquanto entendo que um julgador corrupto terminará, como uma metástase ou como uma infecção generalizada, por macular o próprio conceito de Justiça, e por levá-lo a ter cada vez mais interesses escusos nos processos, por força da ganância e da elasticidade degenerativa de sua degradação, ao passo que um juiz probo, embora não quinhoado com os fulgores de uma inteligência portentosa, através de seu esforço e zelo na persecução do justo e da verdade real, alcançará dar soluções corretas aos litígios, uma vez que não faz parte de sua índole tirar a razão de quem tem para dar a quem não a tem. De qualquer modo, tenho plena convicção de que os juízes iníquos são uma pequena minoria, que jamais há de empanar o brilho e a glória do Poder Judiciário.
Sou um otimista. Acredito que no filme da luta entre o bem e o mal, os mocinhos vencerão os bandidos, porque as trevas não podem prevalecer sobre a luz. Onde a luz chega, as trevas, em fuga, desaparecem. O bem sempre dominará o mal, pois a marcha da humanidade é para a frente e para o alto, e o seu desiderato maior é o bom, o bem e o belo. Por isso existe o amor, o mais nobre e sublime dos sentimentos.
Onde existe o amor, existem a bondade, a caridade e a justiça, e essas virtudes interagem entre si e se retroalimentam, e fazem surgir o resplendor e a glória de um círculo virtuoso. Inclusive, o culto e inteligentíssimo São Paulo dizia que, ainda que tivesse os mais importantes dons e falasse a língua dos anjos, sem o amor nada seria. Embora haja controvérsia a este respeito, tenho para mim que o amor deve ser colocado acima da caridade, pois quem tem realmente amor tem disposição para a prática das virtudes, inclusive a caridade, ao passo que esta, desprovida do excelso sentimento, pode ser apenas hipocrisia e demagogia, ou até mesmo vão comércio, na esperança de uma futura e improvável recompensa divina.
Exorto os colegas juízes para que prossigamos com fé, esperança e coragem em nossa luta para que a Justiça humana seja realmente justa, porque um dia, talvez no dia do Juízo Final, haveremos de nos defrontar com a balança do Supremo Julgador, ao qual nos teremos de submeter. E que, nessa ocasião, a palavra tequel, entrevista pelo rei Baltazar, em seu opíparo banquete, inserta na frase “mene, mene, tequel, ufarsim” (Daniel, 5:25-27), cujo enigma foi revelado pelo profeta Daniel, em sua tradução para “Pesado foste na balança, e foste achado em falta”, não seja por nós avistada.

Sim, porque ao invés desta palavra, embebida de profunda iniqüidade, queremos que, ao passarmos pela balança incorruptível e exata do Criador, não sejamos achados em falta, e que a sua espada flamejante e gloriosa não caia sobre a nossa cabeça.    

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