DOIS PALHAÇOS
Chico Acoram Araújo
Servidor público, contador, contista e cronista
Festinha de aniversário da minha neta Gabriela, que completara seus dois
primeiros anos de idade. Ela estava muito feliz e radiante; uma linda princesa.
O terraço da casa estava lotado de convidados, a maioria crianças de idades
indefinidas. Uma algazarra alegre reinava no ambiente. Um palhaço, que a
convite de minha nora veio para animar a festa, fazia suas graças e
brincadeiras no meio da criançada, e ganhou de imediato a atenção da galerinha.
Mas os adultos davam também boas gargalhadas em razão dos trejeitos do artista
de circo. O palhaço, de nome Pipaco, era o protagonista do evento, enquanto a
aniversariante, uma alegre espectadora. Expondo-se ao ridículo, aquele artista
divertia a todos com grande maestria. Além da característica bolota vermelha no
nariz, dos sapatos extravagantes, das roupas bufantes e coloridas, e de uma
peruca espalhafatosa, portava um enorme bundão acolchoado por dois grandes
balões de látex. Muito engraçado. Juntamente com as crianças, o artista
cantava, dançava, pulava, além de transformar um tipo de balão comprido em
figuras das mais engraçadas tais como bicicleta, óculos, animais etc. Isso
durou até que foi dada a ordem para entoarmos os parabéns à aniversariante, que
apagou as duas velinhas, antes de começarem a repartir o cobiçado bolo. Momento
apoteótico. Uma bela festa, para uma bela dama.
Assim como as demais crianças, minha
neta transbordava alegria e felicidade; agora ela era a estrela do espetáculo,
e o palhaço um mero coadjuvante. Pouco antes, o artista circense dera como
encerrada a sua apresentação, sumiu de cena, sem se ausentar do ambiente.
Passadas as horas, a criançada acalmou-se um pouco, não mais estava tão
assanhada; a gritaria amenizava, creio que o cansaço abateu-se sobre a maioria
delas; algumas até já se mantinham quietas no colo do pai ou da mãe. Outras,
poucas, continuavam a brincar, mas sem a mesma animação de antes. Os convidados
agora quase tomavam conta da festa, mantendo-se animados e alegres, conversavam
e sorriam. A patuscada continuou, pois o estoque de petiscos e bebidas estava
garantido por mais algum tempo. Eu e minha esposa estávamos sentados a uma mesa
próxima ao portão de entrada da casa, e junto conosco, o meu filho e a minha
nora, os pais da aniversariante, juntamente com um casal de amigos convidados,
que minutos atrás tinha sido convidado a sentar-se conosco. E ao lado daquele
casal, encontrava-se também seu filhote, um menino que aparentava ter cerca de
três anos de idade. Os anfitriões
mantinham uma conversação mais efetiva e divertida com aquele casal,
especialmente com o moço que, assim como meu filho, devia beirar os 28 anos de
idade, não mais do que isso. Brincalhão, o rapaz tinha a cor parda, estatura
mediana, e os cabelos crespos e cortados rente. Já a esposa, possuía altura um
pouco menor do que o marido, era morena, e tinha o rosto redondo, com traços
delicados.
Enquanto eles conversavam, lembrei-me
de perguntar a minha nora pelo palhaço que há pouco tinha agraciado a criançada
e adultos presentes com um belo e divertido espetáculo. Eu tinha certeza que o
artista estava ainda presente na casa, pois não vi ninguém saindo, uma vez que,
como disse, achava-me bem próximo ao portão de entrada. Minha nora, sorrindo
para mim, indicou, com um gesto de cabeça, o mencionado rapaz que nos fazia
companhia naquele instante. Também sorri, acanhado com o meu pouco poder de
percepção. Pois para mim, o rapaz não era o palhaço; o palhaço não era o rapaz:
nada existia que os assemelhasse. Mas, por trás daquele simpático jovem,
existia um palhaço. Um palhaço que sustentava o rapaz e sua família. Um homem
que ganhava a vida fazendo palhaçada, evidentemente, no sentido original da
palavra. Soube, mais tarde, que ele
ajudava a animar um programa de televisão bastante prestigiado pelo público
infantil de Teresina e adjacência. E que trabalhava também como “freelancer” e
“merchandaiser” em lojas comerciais, bem como em shows e eventos familiares.
Após conhecer um pouco mais da vida
daquele ilustre palhaço e chefe de família, meus pensamentos voltaram para
qualquer dia de um ano letivo em meado dos anos 60. Nesse dia, o sol,
resplandecente, estava quase sumindo no horizonte, do outro lado do rio
Parnaíba. A aula acabara de encerrar quando, ao sair pelo portão do Grupo
Escolar João Costa, situado na Rua Jônatas Batista, bem ao lado do Estádio de
Futebol Lindolfo Monteiro, ouvi vozes estridentes que vinham da rua da antiga
Cadeia Pública, hoje transformada em uma feiosa praça que serve como ponto de
venda de veículos usados. Parei, olhei e aguardei um pouco. Instante depois, vi
um grupo de pessoas caminhando em passos rápidos, porém, sem correria. O grupo
era formado por um palhaço e duas dezenas de crianças e adolescentes. E o
palhaço ia na vanguarda, declamando e puxando o coro. Este artista do picadeiro
era uma espécie de pregoeiro de um circo que acabara de erguer suas imponentes
lonas em um terreno baldio, de chão duro e avermelhado, situado no lado sul do
mercado central, hoje Praça da Bandeira. Referido logradouro servia de campo de
futebol, onde acontecia constantes torneios com os times existentes nas
imediações. Quando um circo se instalava no local, as atividades futebolísticas
eram suspensas, temporariamente.
O pregoeiro do circo declamava mais
ou menos assim:
Hoje tem espetáculo?
Tem, sim sinhô.
É às oito da noite?
É, sim sinhô.
Hoje tem marmelada?
Tem, sim sinhô.
Hoje tem goiabada?
Tem, sim sinhô.
É de noite? É de dia?
É, sim sinhô.
Aproveita moçada!
Dez tostões não é nada!
Sentadinho na bancada!
Pra ver a namorada!
E a criança que chora?
É que qué mamá.
E a mulhé que namora?
É que qué casá.
Mas o palhaço, o que é?
É ladrão de mulhé.
E o palhaço, o que é?
É ladrão de mulhé.
E o palhaço, quem foi?
Foi ladrão de boi.
Papai, mamãe, venham ver titia
Tomando banho de água fria.
Papai, mamãe, venham ver vovó
Tomando banho de água só.
Papai, mamãe, venham ver Loló
Tomando vinho com pão-de-ló.
E a moçada na janela?
Tem cara de panela.
E a nêga no portão?
Tem cara de carvão.
Hoje tem forrobodó?
Tem, sim sinhô.
É na casa da vó?
É na sua, é na sua.
Hoje tem arrelia?
Tem, sim sinhô.
É de perna-de-pau?
É de blau-blau-blau.
Oh raio, oh sol, suspende a lua!
Olha o palhaço no meio da rua!
E o palhaço, o que é?
É ladrão de mulhé!
Viva a rapaziada sem ceroulas!
Vivaaaa!!!!!
Como toda criança, fiquei deslumbrado
com aquela divertida procissão. Meu coração acelerou em êxtase. Minha alma se
abateu; meus sentidos se desprenderam naquele momento, absorvendo-me em um
enlevo e contemplação interior. Uma
força invisível me empurrou ao encontro daquela gente. Apressei os passos. Logo
mais, eu já fazia parte daquele hilário cortejo, declamando, em voz alta, os
versos acima transcritos.
Passando o cortejo pelo antigo Asilo
que ficava poucos metros abaixo, uma espécie de hospital psiquiátrico da época
(atualmente funciona a Unidade Escolar Benjamin Batista), o comandante dobrou
na Rua João Cabral, seguindo rumo ao Mercado Central, para o local onde se
instalara o grande e famoso “Circo Garcia”; circo de categoria internacional,
conforme prenunciava o apresentador oficial daquela casa de espetáculo.
Chegando ao circo, o nosso comandante presenteou a cada um dos seus valorosos
seguidores com um bilhete de cortesia para que assistisse ao majestoso
espetáculo do inesquecível e memorável “Circo Garcia”. No domingo seguinte,
sessão da tarde, estava eu lá na plateia, alegre e radiante, vendo os palhaços,
inclusive o nosso comandante (perdão, por não lembrar o seu nome!), acrobatas,
malabaristas, equilibristas, comediantes, domadores, zebras, elefantes, leões,
cavalos, macacos, e o espantoso e emocionante “globo da morte”.
Distinto público, aplausos para os
dois palhaços, pois o espetáculo não pode parar. Eles nos fazem morrer de rir,
e alegram nossas vidas. E em particular, as vidas da pequena aniversariante e
do jovem ajudante de pregoeiro de circo.
Fonte: blog Folhas Avulsas
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