Um viajante atribulado
José Pedro Araújo
Contista, cronista e romancista
Se para certas pessoas viajar é
algo tremendamente gratificante, para outras só em pensar na possibilidade, já
começam a sentir calafrios, efeitos de uma viagem mal sucedida. Depois,
passados os momentos de intranquilidade, quando já se chegou ao destino, ai a
coisa fica boa demais. Como nesse ponto todos concordam e terminam viajando, as
agruras ficam apenas na memória do viajante sofredor. Afinal, quem não gosta de
mudar de ares de vez em quando? Quem não gosta de conhecer novos lugares, novas
pessoas, cultivar novas amizades?
Mas, que existem pessoas que
acham que viajar é um suplício, continuo afirmando que há.
E o Dr. Jonas Araújo é uma delas.
Dentista dos mais respeitados da cidade de Presidente Dutra, preza muito pela
qualidade do seu trabalho ao ponto de facilmente se encontrar clientes que não
se incomodam de ficarem horas de boca aberta, saliva escorrendo esôfago abaixo,
causando coceira e cansaço na mandíbula. E essas pessoas não se incomodam em
razão do ótimo profissional que o atende. Ficam lá pacientemente ouvindo as
histórias contadas por esse Palmeirense de quatro costados, amigo de todos e
incapaz de agravar quem quer que seja. Eu, que já o acompanho há muitos e
muitos anos, nunca o vi sair do seu jeito calmo para encarar as situações mais
vexatórias. Está sempre ali, tranquilo, procurando encontrar vantagens no que
parece ser somente desacerto. E, no final de tudo, como o trabalho sai bem
feito, e o preço uma verdadeira pechincha, ponto para o cliente!
Esse calmo senhor, foi um menino
meio magricela, cabelos arrepiados, e de um branco que só pode ser comparado a
uma raiz de mandioca descascada. E quando viajava, já ficávamos de sobreaviso,
pois por certo aprontaria alguma coisa.
Em uma das vezes que viajava de
Presidente Dutra para Piracuruca, onde nossos pais residiam naquele momento,
após sofrer muito no péssimo trecho até Teresina, concluiu que suas agruras
haviam terminado ao chegar à capital, Teresina. Era o que se podia depreender
em razão da melhoria da estrada dali para frente. Embarcou na Praça Saraiva em
um ônibus novinho da Marimbá, e foi logo procurando uma janela para se acomodar
perto. Mas, daí a poucos instantes, embarcou também, quando o veículo já estava
de partida, um rapaz cabeludo e com barba bastante longa, que veio justo
reclamar que a poltrona onde o menino estava lhe pertencia. Falou isso na maior
grosseria, acenado o bilhete da passagem. A contragosto, o menino viajante saiu
de onde estava, e verificou chateado que todas as demais poltronas já estavam
ocupadas, inclusive a cadeira que lhe fora destinada. Nesta, logo viu que se
sentava no seu o lugar era uma senhora bastante idosa. Resolveu deixar tudo
como estava.
Para piorar as coisas, o sujeito
que havia reclamado o lugar, continuava resmungando, falando alto contra as
pessoas que ocupavam o lugar dos outros somente para esquentar o assento.
Vendo que o garoto havia ficado sem
lugar para se sentar, meu pai, que o acompanhava na viagem, pediu para ele
acomodar-se em sua perna, próximo à janela, pois sabia que logo ele precisaria
fazer uso dela. Jonas sentou-se, e a viagem continuou. O ônibus tomou a estrada
no rumo norte e tudo parecia ter se aquietado.
Atrás de onde eles se encontravam,
o rapaz barbudo abriu a janela de vidro e começou a falar grosserias contra as
pessoas que se encontravam nas calçadas. E quando o pedestre era do sexo
feminino, assobiava, mandava beijinhos, na maior algazarra. Alguns passageiros
já começavam a reclamar do estúpido sujeito, mas, ele não dava a menor atenção
às reclamações. E a viagem transcorria assim. Ônibus novo, motorista
pé-de-chumbo, ia o veículo comendo estrada, dando a entender que chegariam cedo
ao destino final.
Em certa altura da viagem, Jonas
cochichou para o meu pai que estava ficando enjoado. E ele, mais que depressa o
ajudou a abrir a janela. O garoto lamentou o fato de ter almoçado aquele prato
de arroz com feijão, macarrão e carne, quando o motorista, momentos antes havia
parado em um restaurante de beira de estrada. Mas, o ar fresco, fez com que ele
melhorasse um pouco do enjôo, criando a falsa ilusão de que tudo se ajeitaria.
Que nada! Logo uma náusea bem mais forte o acometeu, e ele assomou a cabeça
para fora do ônibus a tempo apenas de despejar o produto do almoço para fora.
Atrás dele, também com a cabeça
para fora do veículo, estava o inconsequente cabeludo, fazendo uso mais uma vez
de suas brincadeiras sem graça. Quando viu o que viria sobre ele ainda tentou
se recolher, mas já era tarde demais: recebeu o produto do vômito diretamente
na cara. A barba, antes negra, estava ruiva agora, meio enferrujada,
engordurada, com macarrão espalhado até mesmo pela cabeça.
Descontrolado, parecendo um touro
furioso, o sujeito saiu de sua poltrona e veio atrás do garoto para agredi-lo.
Meu pai, prevendo o desfecho, e já chateado com o inoportuno companheiro de
viagem, levantou-se também e despejou sobre ele algumas palavras
intimidatórias. Vendo que seu oponente era um homem alto e musculoso, o pobre
infeliz tratou de retroceder até sua cadeira e passou o restante da viagem
ouvindo brincadeiras dos outros passageiros, satisfeitos por ver que ele agora
estava calado e humilhado.
De outra feita, Dr. Jonas, ai por
volta dos 11 anos, juntamente com o irmão Jônatas, pegaram carona em uma
camioneta que levaria de volta Jean Carvalho e seus irmãos, que retornavam das
férias, para Teresina. Na caçamba do carro conduziam também um chiqueiro, feito
de talos de babaçu, com vários frangos aprisionados. Estavam sendo levados para
consumo próprio. Jonas, preocupado com a sua situação de viajante sempre
mareado, resolveu sentar-se na ponta oposta do chiqueiro enquanto o carro saia
rodando pela estrada. Não andaram muito e o enjôo foi se achegando, a principio de maneira suportável, depois mais
forte, até que ele começou a vomitar fora da caçamba. Mas, logo, as forças
começaram a diminuir e ele passou a soltar suas golfadas sobre o chiqueiro
mesmo. Os frangos começaram a gostar daquilo e logo já estavam esticando os
pescoços, elevando as cabeças para fora da grande gaiola, indo buscar o produto
quase dentro da boca do pobre garoto que teve que ser socorrido pelos
companheiros de viagem de modo a não perder a língua e tudo o mais que possuía
na boca.
Abatido e quase sem forças,
finalmente chegaram a Timon, onde passariam a noite na casa dos colegas. No dia
seguinte, logo cedo, tomaram um ônibus urbano para a Praça Saraiva. Jônatas, um
pouco mais velho, conduzia as sacolas mais pesadas, ficando as
nem-tão-mais–leves-assim para o irmão menor. Carregavam com eles bolos de todos
os tipos, doce de leite e queijo, o que aumentava o peso da bagagem.
Com as duas mãos ocupadas, Jonas,
que não era muito acostumado a andar naquele tipo de condução urbana,
acercou-se da roleta para pagar a passagem, quando motorista arrancou de uma
vez. Só não caiu para trás porque se apoiou no irmão que vinha um pouco atrás.
Mas, antes mesmo que pudesse se recompor, o motorista afundou o pé no freio com
bastante força. Viu alguém gesticulando na parada seguinte de onde se
aproximavam. O pobre Jonas foi arremessado para a frente com suas duas sacolas e passou como um raio pela roleta
fazendo a danada rolar diversas vezes para desespero do cobrador. Com as mãos
ocupadas, o menino saiu tentando se equilibrar no corredor àquele momento sem
passageiros, até espatifar-se na tampa do motor que ficava ao lado do
motorista. Por sorte não foi arremessado para fora do ônibus.
Foi um desespero, junta sacola
daqui, senta ali, com os demais passageiros demonstrando grande camaradagem com
ele. Até estavam com vontade de rir da situação, mas, o aspecto apavorado do
jovem os fazia ficar quietos.
Hoje, Dr. Jonas transita tranquilamente
com a família por essas estradas da vida, sem o incômodo e a vergonha que
sentia quando era criança. É certo que faz isso no seu próprio carro, pois, não
sei se dentro de um desses ônibus enormes de hoje, o homem não tivesse ímpetos
de brotar para fora o que comeu momentos antes. Sorte dos passageiros também.
Especialmente daqueles que gostam de viajar com a janela do seu lado aberta.
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