HISTÓRIAS
DE ÉVORA
Este romance será publicado neste sítio
internético de forma seriada (semanalmente), à medida que os capítulos forem
sendo escritos.
Capítulo VI
Évora e suas histórias
Elmar Carvalho
Além de escrever poemas e crônicas,
que publicava no jornal mural O Arauto, e esporadicamente no jornal tipográfico
A Batalha, Marcos tinha o projeto literário de escrever três livros. Num deles
iria contar fatos pitorescos, picarescos, jocosos e mesmo escabrosos acontecidos
em sua cidade; teria o título de Histórias de Évora. Os outros dois seriam
intitulados Memórias e Mitologia de Évora.
A idealização deste último fora
inspirada no livro PoeMitos da Parnaíba, do poeta Elmar Carvalho, com quem se correspondia,
através de cartas enviadas pelos Correios. Seria em prosa, mas a exemplo
de PoeMitos, iria falar das figuras populares, folclóricas, engraçadas de
Évora; pessoas que jamais fariam parte da chamada história oficial, mas que integravam
a paisagem humana eborense, com toda a sua pungência, tragicidade, humor e
folclore, cujos episódios, muitos revestidos de uma aura lendária e fantástica,
eram refertos de encanto e magia.
Não bastasse a sua prodigiosa memória
para armazenar estórias, histórias e “causos”, tinha uma caderneta em que fazia
suas anotações. Para concretizar seu projeto literário, fazia entrevistas com
prostitutas, madames de cabaré, pessoas idosas, e principalmente com os
protagonistas dessas histórias, ou, na falta destes, com os seus descendentes,
amigos e familiares. Colhia informações em lápides de igrejas e cemitérios, em
velhos alfarrábios e acervos de sacristia, cartórios e delegacias, além de
arquivos particulares e públicos. Mitologia de Évora foi escrito e publicado
quando Marcos completou 35 anos de idade, já casado e com dois filhos.
Histórias de Évora veio a lume quando ele completou meio século de vida, e foi
o presente de aniversário que ele se deu a si mesmo.
As Memórias foram iniciadas no dia em
que ele completou 60 anos e encerradas exatamente um ano depois. Ao longo de
sua vida ele havia lido e relido o livro homônimo de Humberto de Campos, que
ele considerava um dos melhores do gênero.
Alguns dos trechos antológicos dessa
obra ele já conhecia desde a sua meninice, como o episódio do cajueiro, que o
ilustre memorialista plantara quando ainda era criança e morava em Parnaíba,
perto de onde hoje se ergue a imponente Praça Santo Antônio, com a sua elegante
penumbra proporcionada pelos enormes e frondosos oitizeiros. Também lhe
comoveram as narrativas da morte de seu pai, ocorrida em Miritiba, no Maranhão,
hoje cidade que leva o seu nome, e o episódio do brinquedo roubado, pungente, a
nos ferir a sensibilidade e a alma.
A fim de angariar experiência nesse
filão memorialístico, que foi praticamente um projeto de toda a sua vida, leu e
releu Confesso que vivi, de Pablo Neruda, com as suas fantasias e a sua
torrencial e poética linguagem, pictórica, pluviosa, cheia de imagens, goteiras
e metáforas. Degustou todos os volumes da monumental obra memorialística de
Pedro Nava, considerada paradigmática no gênero.
Com invulgar atenção leu Tomei um
Ita no Norte, do escritor parnaibano Renato Castelo Branco, que num estilo
elegante, conciso e cristalino contou muitos fatos interessantes e pitorescos
da pequenina Parnaíba de sua meninice, além de vários outros que permearam a
sua longa existência de homem das letras e da publicidade. O livro é povoado de
figuras humanas dos mais diferentes caracteres, algumas excêntricas, outras
boêmias, todas notáveis a seu modo. Renato tinha o que contar. E sabia contar.
Por último, com muito encantamento,
leu a colossal (tanto no tamanho como na qualidade) obra memorialística Rua da
Glória, em quatro volumes, de Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro. Escrita
com esmero, com riqueza de detalhes, em linguagem enxuta e torneada, contudo sem
desnecessários floreios, narra fatos que nos atraem a atenção, pelo que têm de
pungente e de inusitado, além de referir pessoas com quem manteve contato,
parentes ou amigos. De tudo isso e também por causa das referências e
transcrições, se depreende que o seu autor, além de erudito, é meticuloso,
exato e apegado, tanto quanto possível, à realidade objetiva dos fatos, e não
apenas à verdade subjetiva, tal como registrada em sua memória.
Com a leitura dessas e de outras
obras, de posse do vasto material armazenado em sua memória e anotado em sua
caderneta, Marcos, em sua maturidade e no dealbar de sua velhice, com o seu
estilo literário já consolidado, se sentiu apto a escrever as obras que havia
planejado, todas precisando de sua boa memória. Não esperou mais, com medo da visita
da “indesejada das gentes” ou do abominável alemão Alzheimer.
E pôde escrever as suas fantásticas,
fantasiosas, corriqueiras, contraditórias e verdadeiras Histórias de Évora.
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