LEMBRANÇAS DE RUI BARBOSA
Cunha e Silva Filho
Não sou especialista das obras jurídicas e literárias legadas por Rui Barbosa nem tampouco da sua
biografia. Sou apenas um admirador do
seu talento. O que exponho neste artigo são comentários alusivos
a esse brasileiro afamado sobretudo pela sua grande inteligência, saber jurídico,
sua erudição espantosa, seu
conhecimento humanístico, sua
vocação para as línguas clássicas e modernas, alguns lances de
sua vida pessoal que vim a saber, um dos quais através
do meu pai, ou que eu mesmo colhi
da pouca leitura que fiz da sua
extensa e variada obra. Nem mesmo
cheguei a ler por inteiro a
importante biografia de Rui escrita por Luís Viana Filho, membro da Academia
Brasileira de Letras. Um velho exemplar tinha desse livro na biblioteca de meu pai
que, por lapso de memória, não
mencionei em livro que vou lançar
brevemente.
Tanto no período de adolescência em Teresina quanto
no meu tempo de residência
no Rio de Janeiro, a figura de Rui esteve de alguma forma presente no horizonte de minhas leituras.
Primeiro, através de textos dele incluídos em livros didáticos e aqui me recordo de que, num livro do
professor Enéias Martins de Barros para
os anos do ginásio, havia uma epígrafe utilizada numa das primeiras páginas de um
volume, que dizia (e de que jamais
esqueci):”Uma raça, cujo espírito
não respeita seu solo e seu
idioma, entrega a alma ao estrangeiro antes de ser por ele
absorvida” Não me dei ao trabalho de
localizar a obra em que essa frase se encontra nem é meu propósito nestas linhas.
Ora, ao reler ou relembrar aquela citação de
Rui, sempre a associei à condição dos
cidadãos, no caso, brasileiros, que
preferem falar melhor e
escrever uma, duas, três ou mais línguas
estrangeiras sem se aprofundar, primeiro e principalmente, no seu próprio idioma. Não é exagero o que lhe falo,
leitor, sobre esse tipo de pessoa.Delas há e muitas. Não
dominam o vernáculo e já saem por
aí vendendo a alma ao estrangeiro.
Entretanto, me parece procedente a crítica de Rui dirigida a uma
espécie de gosto
e de submissão eurocêntrica
ou americanófila não só de hoje mas no passado. Sendo um
vernaculista extremoso, um fascinado
pela língua portuguesa, um
prosador clássico, que bebeu nas
fontes de Vieira, de Camilo e de
Castilho, ou como didaticamente, Enéas
Martins de Barros definiu suas qualidades
de estilo de linguagem, ao dizer que de Vieira aproveitou a correção, de Camilo, o vocabulário de Castilho, a harmonia. Alfredo Bosi ( na sua
História concisa da literatura
brasileira) refere também, na aquisição de seu
estilo, as contribuições da cultura clássica de Cícero, Quintiliano,
Isócrates e, em língua portuguesa, ainda
inclui a influência do potencial
léxico de Herculano, a sintaxe de Bernardes
Diante de tais atributos
estilísticos, Rui tinha condições
de censurar aqueles
que relevavam a sua língua-mãe a um plano secundário com relação
à outras línguas modernas. Com o
seu espantoso conhecimento da língua portuguesa, podia-se dar ao luxo de dominar outras línguas, como o
inglês, o espanhol, o francês, o alemão.
Me contou meu pai – admirador de Rui a ponto de, em Amarante, PI, fundar uma
escola a que deu o nome de Ateneu Rui Barbosa -
que, certa feita, no tempo em que
morava no Rio como estudante salesiano,
tendo ido a um colégio em Petrópolis, lhe disseram que há uma
semana ali havia
passado Rui Barbosa em visita
ao colégio. Um estudante, vendo
Rui Barbosa caminhando por um corredor à sua frente, lhe dirigiu
essas palavras: "Viva o
reverendo (sic!) Rui Barbosa!” Rui,
voltou-se para ele e lhe deu um sorriso. Houve uma gargalhada geral dos coleguinhas do
pequeno estudante.
Na Academia Brasileira de Letras, da qual
Rui foi fundador junto com Joaquim Nabuco, Machado de Assis e Lúcio de Mendonça, meu
pai dizia que só por um
acadêmico Rui revelava especial
respeito do ângulo filológico e
de polemista, o exímio latinista Carlos de Laet.
Na voz do povo, Rui era o máximo, o mais inteligente brasileiro de então. Nascera
em Salvador, em 1845. Morreu em Petrópolis em 1923.
Ainda me relatou meu pai, em
costumeiras conversas comigo em
Teresina, que, uma vez, indo para
Petrópolis, Rui começou a
conversar com um companheiro de viagem
sobre assuntos gerais, os quais,
depois, se voltaram para
temas de medicina. A uma certa
altura do diálogo, o companheiro
de Rui lhe perguntou: “O Sr. é médico?” “Não, sou advogado.” “Pois, senhor, eu tinha quase a certeza de que o senhor era
médico pelo conheci mento que revelou
ter dessa área de estudos.”
Perseguido por sua ideias políticas
contrárias ao governo de Floriano Peixoto,
Rui viu-se obrigado a se exilar na Inglaterra.Logo que pisou
em solo britânico, Rui mandou
afixar um cartaz - creio - no lugar em que foi morar,
com os seguintes dizeres:
“Ensina-se inglês aos ingleses.” Esse período de residência em Londres,
redeu-lhe uma obra Cartas da Inglaterra(1896).
Jurista de fama internacional, Rui Barbosa teve o grande
privilégio de ser convidado para
representar o Brasil na Segunda
Conferência de Paz em Haia (Deuxième Conférence de la Paix. Actes et Discours,
La Haye,1907), na qual brilhantemente
defendeu a situação das “pequenas
nações.” De sua atuação formidável como
orador e intelectual
de assombroso conhecimento jurídico, sendo aplaudido entusiasticamente
por diplomatas e estadistas presentes,
veio-lhe a conhecida antonomásia de “O águia de Haia.”
Outra participação de alta relevância do
grande estudioso, político, escritor,
tradutor e orador brasileiro
foi a polêmica filológica que travou com um seu ex-professor de
língua portuguesa de Salvador, Dr. Ernesto Carneiro Ribeiro a propósito da “Redação do
Código Civil Brasileiro.” Dela
resultou uma obra de alta
profundidade filológica, Réplica (1903).
Essa
famosíssima polêmica entre Rui e
seu ex-professor de língua portuguesa merece uma síntese de seus
fundamentos. A raiz da
polêmica foi a
redação do Código Civil a ser elaborado pelo
jurista Clóvis Beviláquia a
pedido do então Ministro da Justiça,
Epitácio Pessoa, no governo do
presidente Campos Sales. A redação de Clóvis
Beviláquia valeu-lhe várias censuras por parte de Rui Barbosa. Para contornar esse impasse,
foi incumbido de fazer a revisão
do Código Civil o respeitado professor,
Dr. Ernesto Carneiro Ribeiro.
Rui Barbosa, a despeito disso, não concordou
com a revisão feita pelo ex-mestre,
sobretudo no terreno da gramática e por
isso apresentou, na condição de presidente da Comissão do Senado,
várias folhas de
apontamentos mostrando suas discordâncias gramaticais
em relação à revisão de Ernesto
Carneiro Ribeiro, que, por suja vez,
rebatendo as críticas de Rui, redigiu o texto “Ligeiras observações sobre as emendas do Dr. Rui
Barbosa” e o fez publicar no Diário do
Congresso.
O Código
Civil foi aprovado, mas a polêmica entre Rui e seu ex-professor continuou até que Rui,
organizou seus apontamentos e suas
divergências numa das obras
mais respeitadas no
domínio da filologia portuguesa,
considerada pelos estudiosos como um
“monumento” de estilo e de profundidade de
conhecimentos do vernáculo.
Foi a mencionada Réplica. Seu ex-mestre, por seu turno, não se deu
por vencido e resolveu dar uma
outra resposta às censuras de Rui,
fazendo vir a lume a obra
Tréplica, a versão em livro criticando
as emendas que Rui Barbosa lhe fizera à
revisão do Código Civil de Beviláqua.
Assim que cheguei ao Rio, em 1964, adquirira um livrinho das Edições de Ouro que constituíam um apanhado de cartas de Rui Barbosa
dirigidas à noiva, Maria Augusta. Não recordo mais do título. Contudo, ficava admirado do estilo
epistolar de Rui à sua amada, com comoventes
declarações de amor e de afetividade, escritas em estilo menos
arcaizante, menos clássico, e
apenas refletindo o gênero
mais leve da comunicação familiar
e amorosa. Li aquelas cartas de Rui no intervalo de viagens de trem
do subúrbio da Central para o
centro do Rio nos meus primeiros meses
de vida nessa cidade.
Me lembro de que eram
cartas cativantes onde o
grande escritor e homem
publico mostrava seu lado
mais íntimo de manifestar seus sentimentos com traços
até românticos. Me vem à
mente outro livro que, à época,
li de Rui Barbosa. Era um ensaio biográfico
sobre José Bonifácio, um livro
digno do melhor estilo
ruibarbosiano. Esse ensaio
mencionei no meu livro As ideias
no tempo (2010). E uma frase dele me ficou marcada na memória: “A morte nos cerca de todos os
lados.” – sentenciava Rui. Outro
texto fundamental que li de Rui é
o conhecido “Oração aos Moços” - um
belíssimo texto atualizado, na sua
abrangência ética, até para os dias de
hoje.
Por outro lado, outra carta
de Rui que, salvo erro, li na obra
de Luís Viana Filho era uma carta
em inglês de Rui a alguém no
Brasil, não sei se endereçada a uma amigo ou a um familiar. Só relembro que a
reprodução da carta escrita à mão, em fac-símile, tinha uma letra miúda, com
rasuras no corpo da missiva e, por incrível que parece, foi nessa carta
que aprendi o que em inglês queria dizer a linda
palavra "orvalho" (em inglês,“dew”), assim aprendida naquele
contexto epistolar e não num texto
de uma obra de ficção ou poesia. A memória tem dessas
coisas que nos surpreendem na aprendizagem de uma língua. Minha memória é
visual, léxica, fisionômica, em geral sinestésica.
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