Foto meramente ilustrativa |
HISTÓRIAS
DE ÉVORA
Este romance será publicado neste sítio
internético de forma seriada (semanalmente), à medida que os capítulos forem
sendo escritos.
Capítulo XV
Évora
Elmar Carvalho
“Tenho vagas recordações da Évora de minha infância mais remota. Suponho
que algumas se confundem com outras posteriores, de modo que eu não saberia
precisar o ano exato de sua origem. Talvez, literariamente, seja melhor assim,
sem essa rigidez de relatório burocrático, bem demarcado no tempo.
Muito vivo ainda sinto o cheiro das ceras de carnaúba, amontoadas num
grande depósito da Casa Machado e outros armazéns. Havia as pardas, escuras, de
menor valor comercial, e a cera flor, mais clara, amarelada, de bem mais alta cotação.
Recordo o cheiro acre das amêndoas de babaçu e tucum, que eram revendidas para
Fortaleza, Recife e outros centros exportadores.
As calçadas desses armazéns eram lisas, impregnadas pelo pó que ia aos
poucos se desprendendo dessas ceras, e eram alisadas pelo pisotear constante
dos transeuntes, que vinham fazer suas compras ou exercer suas atividades
laborais no centro comercial. Eram figuras emblemáticas os carregadores, de
forte compleição, que carregavam grandes sacas desses produtos sobre a cabeça,
protegida apenas por uma rodilha de pano, e os porcos d’água, que atuavam no
porto improvisado do Paraguaçu, com os seus pequenos trapiches, toscos
depósitos e acanhado guindaste.
Évora, nessa época, no início de sua decadência comercial, devia ter em
torno de 45 mil habitantes. Na Rua Grande, cujo nome foi mudado para Presidente
Juscelino Kubitschek, havia os sobrados mais antigos e os luxuosos chalés e
palacetes de seu apogeu comercial, da época áurea do extrativismo, da industrialização
do pó da carnaúba, da maniçoba, do jaborandi, da oiticica, do algodão e do óleo
babaçu, além de outros produtos. Eram expostas, em algumas firmas, peles
bovinas, ovinas e caprinas, assim como as de gato maracajá e de outros animais
silvestres, enroladas ou espichadas por varas.
No centro histórico, no entorno do qual ficavam as principais casas
comerciais, viam-se a igreja matriz, sob a invocação de São Gonçalo, santo
português e, segundo se dizia, tocador de viola, alegre e festeiro, e a grande
Praça Lucas Mendes Furtado, português, considerado o fundador da cidade, por
haver ali instalado a Fazenda Évora e sua casa-grande, em cuja proximidade ergueu
a igreja de São Gonçalo, ainda conservada quase sem alterações. Ao redor desses
dois prédios, nasceu e floresceu a cidade.
O templo, segundo a lápide em seu frontispício, foi concluído em 1717. Sua
frente era voltada para a praça, que até dez anos atrás fora um grande largo em
terra nua, com pedras jacaré traçando passeios, alamedas, caramanchões e
vielas, circundando árvores e contornando jardins geométricos, retangulares,
quadrados ou formando círculos. Mesmo em sua simplicidade rústica, era um belo
largo, talvez o mais belo do estado.
Em volta da praça da matriz, como também era conhecida a Praça Lucas
Mendes Furtado, erguiam-se velhas casas solarengas, vetustos sobrados, antigos
casarões em estilo colonial. Alguns desses prédios eram muito simples, quase
rústicos, outros ostentavam certo luxo, como assoalhos de mosaico, paredes
externas revestidas de azulejo, beirais, e portas e janelas em madeira de lei,
lavradas com certa arte e requinte, que os adornava. Apesar da incúria
administrava, a maioria era bem conservada.
Acerca de 70 metros da igreja ficava o Évora Clube, instalado em secular
casarão colonial. Nele eram realizadas as festas da elite eborense. Ali bebiam
e dançavam os poderosos empresários, políticos, os gerentes de grandes firmas e
os servidores públicos graduados. Os jovens realizavam tertúlias dançantes nas
melancólicas tardes de domingo, ao som de possante vitrola. Eram empolgados
pelo iê-iê-iê e pelos embalos da jovem guarda, com suas estridentes guitarras,
que irritavam os ouvidos e o gosto musical dos mais velhos.
A menos de 150 metros da matriz, localizava-se a Zona Planetária. Segundo
a lenda, esse nome fora posto pelo seu proprietário, Lulu Freitas, que fora
coronel da Guarda Nacional e poeta bissexto. No final da década de 1940 ele
alugara suas casas, agrupadas em um grande quarteirão, para várias madames de
cabarés, o que provocou o afastamento de locatários familiares. Exigira que
cada lupanar ostentasse o nome e a pintura de um dos planetas, sob a
denominação geral de Zona Planetária.
Ele mesmo pagou o melhor pintor de paredes da cidade, que também fazia
belas pinturas a óleo, para fazer os letreiros e pintar cada um dos planetas
com as suas cores e características principais. Portanto, ali eram vistos
Saturno e os seus belos anéis, que pareciam coloridos discos de vinil com os
seus sulcos espiralados; Marte e a sua cor sangrenta, que lembrava o mênstruo
das mulheres ou a violência homicida dos ciúmes; Vênus e os seus vapores
azulados de aconchegantes e penumbrosas alcovas, e a Terra a rodopiar com a Lua
pelos espaços infindos... Ali estavam o nome e a pintura de cada um dos nove
planetas, já que na época Plutão ainda não fora destronado.
Por causa disso, o coronel Lulu Freitas, fazendeiro, flautista e poeta,
ganhou a infundada fama de apreciador das raparigas. Infundada sim, porque ele
podia ter sido (e fora) protetor delas, mas na verdade era quase casto,
enclausurado em seu claustro, efetivamente um vetusto sobrado, de linhas
austeras, franciscanas, sem nenhum adorno e muito menos luxo. Sexo mesmo ele só
o fazia, seguindo a sua dieta ou escassa ração, com a sua rotunda mulher, a
matrona Donana, de muitos anéis de ouro e virtudes. Mas isso não os impediu de
terem uma dúzia de filhos, dois deles falecidos em tenra idade.
Em Évora, num percurso de menos de 250 metros, em pleno centro histórico,
podiam ser encontrados a igreja matriz, o clube dançante, a praça dos namoros,
senão castos, ao menos cautos, outros nem tanto, e os principais cabarés da
cidade, aglutinados na Zona Planetária.
Por essa razão, Cazuza, o laureado boêmio da cidade, o maior orador
popular e declamador melodramático, sobretudo quando de porre, certo dia
proclamou:
– Na amada Évora, de muita história, fumaça e tradição, cidade onde tive
o berço natal e onde espero ter a campa final, num raio de apenas 250 metros, existem
o clube para a gente dançar, a praça para o namoro nos excitar, o cabaré para
nos apaziguar e a nossa fome matar, e a igreja para nos perdoar! E vade retro,
com tantas rimas em a.”
Meu caro Poeta,
ResponderExcluirapesar de bem ambientada a sua Évora, não me atrevo a declinar o seu nome verdadeiro, uma vez que meus conhecimentos sobre as históricas cidades piauienses me impede de tentar. Mas que eu desconfio de uma, ah!, isso eu afirmo!
Caro JP Araújo,
ResponderExcluirVou desfazer o enigma: na verdade a minha Évora fictícia é uma mistura de algumas cidades piauienses, especialmente duas ou três, nas quais adicionei e adicionarei umas pitadas de pura fantasia.
Caro poeta, Elmar
ResponderExcluirEsplêndido! Só assim posso classificar seu enxuto e primoroso texto, cuja urdidura reúne num só nicho, a vida das pessoas, com suas virtudes e defeitos; a vida da cidade, com seus costumes, suas ruas e suas histórias lendárias. Enfim, numa linguagem escorreita e humorada, tu sabes,com a magia da pena, transportar o tempo, desenhar personagens...depois nos imerge nas vivências e sonhos do passado. Parabéns, poeta e escritor Elmar.
Um abraço do conterrâneo e poeta Evaldo Lopes
Caro amigo e conterrâneo Evaldo Lopes,
ResponderExcluirPalavras como as suas, de sincero estímulo, me sensibilizam e me fazem perseverar em continuar a escrever esse projeto de romance, que vem sendo construído semanalmente, capítulo por capítulo.
Você captou muito bem o espírito dessa narrativa romanesca em construção.
Muito obrigado.
Abraço,
Elmar Carvalho