Renato Castelo Branco |
Discurso em apresentação a
Teodoro Bicanca
Dilson Lages Monteiro (*)
Senhores e senhoras,
Saúdo a todos, lembrando a figura
do notável romancista Orlando Geraldo Rêgo de Carvalho (O. G.); de suas
palavras em memorável palestra para numerosa plateia de estudantes
secundaristas e alguns curiosos, entre os quais me incluía, nos idos de 1990.
No auditório do Liceu Piauiense, ao falar sobre sua formação como
literato, O. G. fez um apanhado dos
traços que definiam a prosa de ficção quando publicou Rio Subterrâneo.
Em dia de iluminação, daqueles em
que as ideias têm asas, de voz firme em sua energia que respirava literatura
quando se pronunciava sobre ela, a sua literatura notadamente, citou, para minha surpresa, eu que já o
ouvira manifestar-se várias vezes sobre como se fez escritor, Teodoro Bicanca,
de Renato Pires Castello Branco.
O nome do autor já me era
conhecido dos compêndios de literatura. Também o mesmo nome sobre quem, em
menino, ouvira minha avó materna falar em algumas ocasiões, aludindo
saudosamente à sua tia – e também do esposo - Antônia Pires Rebello (Tunica),
avô do escritor; a tia acolhedora a quem visitava quando estudante em Parnaíba
e sobre quem se enchia de felicidade ao falar. A obra, porém, somente naquele
dia, percebi tratar-se, segundo revelava O. G. Rego, valiosa, porque precursora
do modernismo na Literatura Piauiense.
Em objetivas palavras, Orlando
Geraldo resumiu o cerne do romance; traçou-lhe apanhado de sua mímese e dos
elementos identitários que a tornavam única. Então, recém-egresso ao curso de
Letras, vasculhei as bibliotecas de Teresina, para sorver de Bicanca a atmosfera
de que o nosso notável prosador havia falado com um entusiasmo sincero de que
se tratava de um livro especial.
Minha curiosidade logo se
arrefeceu. Em nenhuma delas, encontrei o livro. Tive de me contentar com as
referências apropriadas e oportunas de Herculano Moraes em Visão Histórica da
Literatura Piauiense, embora não me desse por satisfeito da frustração de,
naquele momento, não ler livro tão fundamental para nossa história literária.
Muitos jovens interessados em literatura piauiense, creio, vivenciaram a minha
insatisfação e esperam até hoje o momento para conhecer o romance que insere o
Piauí na prosa moderna de ficção.
Em meu caso, particularmente,
quase uma década depois da palestra de O. G., meu desejo materializou-se em presente a mim encaminhado
pelo sociólogo e genealogista Edgardo Pires Ferreira. Ele desfrutara da amizade
com o autor, a quem muito estimava, e me concedera a surpresa de fazer com que
os livros mais valiosos de Renato Pires Castello Branco me chegassem às mãos.
E, assim, surgia a oportunidade de conhecer Teodoro Bicanca e Civilização do
couro, há muito ausentes de nossas bibliotecas.
No caso de outros curiosos e
interessados em nossas letras, a quem não foi concedido ainda o privilégio da
leitura de Renato Castello Branco, o momento chegou: Teodoro Bicanca, agrupada
em edição com o clássico estudo sociológico Civilização do Couro, integra a
centena de obras basilares da história cultural do Estado, reunidas em esforço
histórico, para comemorar, em 2017, os cem anos deste Cenáculo de Letras.
Senhores e senhoras,
Escrevendo sobre o romance de 30,
o crítico literário José Hidelbrando Dacanal reúne alguns elementos comuns aos
romances produzidos em torno do ideário regionalista:
a)”O que é narrado é verossímil,
é semelhante à verdade”;
b)”Em termos de estrutura
narrativa, isto é, a forma como são apresentados os fatos narrados, é
fundamentalmente linear”, em geral;
c)A linguagem “é filtrada pelo
chamado código urbano culto”,
d)”O romance fixa diretamente
estruturas históricas perfeitamente
identificáveis por suas características econômicas e sociais;
e)”As estruturas históricas são
geralmente agrárias (...) As personagens vivem no espaço urbano, mas procedem
do espaço agrário, do que resultam conflitos não poucas vezes centrais no
desenvolvimento do enredo”;
f)”O romance de 30, está
impregnado de um otimismo que poderia ser qualificado de um ingênuo. (...) E,
portanto, reformável, se preciso e quando preciso. Basta a vontade dos
indivíduos e/ou grupo para que a consciência, que domine o real o transforme”;
A par disso, em Teodoro Bicanca,
cuja primeira e única edição é de 1948, Renato Castello Branco narra o drama da divisão de
classes, expressa na exploração dos trabalhadores braçais na fazenda Areia
Branca, nos lugares sociais pré-demarcados na sociedade parnaibana, na
exploração do capital sobre vareiros,
canoeiros e embarcadiços do Parnaíba.
Esta seria na literatura
piauiense a primeira obra a conjugar os traços temático-estilísticos a que se
refere Dacanal, os quais servem como
pano de fundo para denunciar as injustiças sociais, ideário comum a toda essa
literatura produzida com sucesso entre 1928 e 1960, ainda que calcada em grande
preocupação com a ambientação social e humana, herdada do realismo. Ainda que,
como lembra Antônio Cândido, em Iniciação à literatura brasileira, ocorram os
riscos expressos “pela redução da humanidade dos personagens, pelo pitoresco
superficial e pela dificuldade de ajustar a linguagem culta aos torneios
populares” .
A estrutura do romance
regionalista, entretanto, conforme explica Alfredo Bosi, citando Lucien
Goldmann, apresenta um “herói que se opõe e resiste agonicamente às pressões da
natureza e do meio social”:
“Os fatos assumem significação
menos ingênua e servem para revelar as graves lesões que a vida em sociedade
produz no tecido da pessoa humana: logram por isso alcançar uma densidade moral
e uma verdade histórica muito mais profunda. Há menor proliferação de tipos
secundários e pitorescos: as figuras são tratadas em seu nexo dinâmico com a
paisagem e a realidade sócio-econômica. (...) E dessa relação que nasce o
enredo. Passa-se do tipo à expressão; e, embora sem intimismo, talha-se o
caráter do protagonista”.
Nesse sentido, Bicanca, o
primeiro protagonista, é um resistente.
Resiste, ou tenta resistir, à reprodução do ciclo de arbitrariedade que cerca o
destino do pai, explorado na roça, explorado na extração da cera de carnaúba.
Resiste ao aventurar-se na venda de água de porta em porta em Parnaíba. Resiste
no brutal esforço de vareiro valente. Resiste ao abraçar a causa da consciência
do amigo e advogado Abedias – este, talvez alter ego de Renato. Resiste, enfim,
ainda que sem sucesso, a reproduzir silenciosamente as engrenagens da opressão.
Em Teodoro Bicanca, a fusão entre
lirismo e preocupação social consiste em fator que torna a narrativa envolvente,
ressaltando traço a que a crítica é unânime em afirmar: há um alto grau de
associação entre o eu do escritor e a sociedade que o formou, de tal modo que a
memória rompe como elemento vital do processo de escritura até nos efeitos de
sentidos alçançados por termos próprios do falar regional.
Essa fusão é mais determinante, a
nosso ver, em passagens que recuperavam os hábitos da vida na fazenda, ou a
estratificação social na Parnaíba representada. Nesse ponto, marcam a leitura a
lembrança das regras que regem a distribuição do trabalho no mundo rural e o “sereno” na porta da associação festiva
parnaibana. Marcam, principalmente, pela imposição da memória sobre a ficção em
perceptível carga de lirismo.
Em dissertação de mestrado sobre
Teodoro Bicanca, de leitura recomendável, a professora Arlene Soares, em lúcida
e inteligente interpretação discursivo-estilística da obra, diz que
“Renato Castello Branco Jamais
abandonou as reflexões que o despertaram na juventude as questões humanitárias,
mostrando-se sempre atento às injustiças sociais e às transformações do Mundo”.
É nesse ponto que, a nosso ver,
compromissado com o ideário do regionalismo, o escritor alcança seu ponto mais
elevado. Revela-se aqui a incorporação do marxismo como fundamento para a
gênese de seu projeto literário no romance. Ao incorporar postulados marxistas
para a tessitura das ações do romance e do perfil dos personagens de maior
relevo, age em defesa, no fundo, do próprio humanismo, alcançando efeitos
próximos aos alcançados por Graciliano Ramos em São Bernardo.
Neste, Paulo Honório, para manter
sob controle os agregados, utiliza-se dos mais variados meios de controle
social, inclusive do extremo da violência física. A esse propósito, essa
aproximação ideológica é cabível em passagens como:
(...) Uma tarde surpreendi no
oitão da Capela (...) Luís Padilha discursando para Marciano e Casimiro Lopes:
-- Um roubo. O que tem sido
demonstrado categoricamente pelos
filósofos e vem nos livros. Vejam: mais de uma légua de terras, casas, mata
açude, gado, tudo de um homem. Não está certo.
Marciano, mulato esbodegado,
regalou-se, entrochando-se todo e mostrando as gengivas banguelas:
-- O senhor tem razão, seu
Padilha. Eu não entendo, sou bruto, mas perco o sono assuntando nisso. A gente
se mata por causa dos outros. É ou não é, Casimiro?
Casimiro Lopes franziu as ventas,
declarou que as coisas desde o começo do mundo tinham dono.
-- Qual dono! Gritou Padilha. O
que há é que morremos trabalhando para enriquecer os outros.
(São Bernardo, p.44)
Analogamente, em Teodoro Bicanca,
deparamo-nos com passagens como esta:
“Com a convivência de Abedias,
Teodoro ia compreendendo coisas que nunca lhe passara pela cabeça. O mundo
começava a se apresentar a seus olhos de modo diferente.
E os coronéis, também, tinham
outros coronéis ainda maiores acima deles, os que compravam a cera, ou o babaçu,
ou as peles, para mandar para a estranja. E Abedias dizia que também dependiam
de gente ainda mais poderosa.
O mundo de Teodoro tornava-se
cada vez mais complexo, - era o mundo do bicho maior comendo o menor: o coronel
comendo o agregado, o exportador comendo o coronel, a estranja comendo o
exportador.”
(Teodoro Bicanda, p. 135).
Senhores e senhoras,
Resumindo a resistência literária
em Teodoro Bicanca, de Renato Castello Branco, cabe dizer sobre o autor, o que
disse Antônio Cândido ao analisar a obra de Graciliano Ramos:
“A literatura é o seu protesto, o
modo de manifestar a reação contra o mundo das normas contritoras. Como em
quase todo artista, a fuga da situação por meio da criação mental é o seu jeito
peculiar de inserir-se nele, de nele definir um lugar”.
Muito obrigado!
(*) Discurso proferido pelo escritor
e ocupante da cadeira 21 da Academia Piauiense de Letras, Dílson Lages
Monteiro, em apresentação de Teodoro Bicanca, durante lançamento do volume 81
da Coleção Centenário, na Academia Piauiense de Letras, em 25.08.2016.
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