Dílson Lages Monteiro
Senhores e senhoras,
Referindo-se a Francisco da Cunha
e Silva Filho, o professor e ficcionista Godofredo de Oliveira Neto, da
Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, definiu-o como
um “sempre estudante”. De fato, foi a busca contínua e apaixonada do e pelo
conhecimento o elemento central da trajetória que vem percorrendo com um
entusiasmo, cuja chama se renova e renova na mentalidade de que a aprendizagem
é matéria infindável.
Cunha e Silva Filho, piauiense da
fantasmagórica, misteriosa e poética Amarante, chega aos 70 anos
apresentando-nos, como escritor, uma das facetas de sua escritura para a qual
sempre manifestou uma inclinação natural, o memorialismo. Sua produção mais
conhecida entre os piauienses consiste em estudo pioneiro sobre a Obra de Da Costa
e Silva, pesquisa que, por si só, já o situaria entre os grandes nomes da
crítica acadêmica em nossas letras. Mas, nessa diretriz, ele não parou por aí.
Ao longo de sua trajetória de escritor-pesquisador, debruçou-se sobre os mais
valorosos autores da literatura piauiense, de antigos e consagrados nomes a
escritores de obra ainda em construção, e construiu, em dezenas de ensaios
inquietantes, um panorama do que de melhor se produziu no Piauí, em esforço
cujas análises, a maioria, ainda inédita em livro.
Morando no Rio de Janeiro desde
1964, fez-se Pós-Doutor em Literatura pela UFRJ e exerceu por décadas o
magistério, lecionando Inglês e Literatura Brasileira no Colégio Militar do Rio
de Janeiro e na Universidade Castelo Branco. Colaborando, de longa data, com a
imprensa escrita de Teresina, São Paulo e Rio de Janeiro, escreveu – e escreve
- regularmente sobre temas do campo das letras e questões contemporâneas mais polêmicas. De
sua produção, cabe mencionar Além de Da Costa e Silva: uma leitura da saudade,
de 1966, Breve Introdução ao Curso de Letras: uma orientação (2009) e As ideias
no tempo (2010). Agora, em 2016, apresenta-nos Apenas Memórias. Apresenta-nos o
percurso lírico-afetivo e didático de descobertas e lutas que empreendeu entre
Amarante, Teresina e Rio de Janeiro, em viagem sentimental da qual ganhará o
leitor mais do que a percepção de olhares sobre o Piauí e o tempo entre as
décadas de 1940 e 1960, mais do que a percepção de olhares do Rio de Janeiro,
do eu emergido na busca por mobilidade social e formação, a partir de meados de
1964. Ganhará o leitor de Apenas Memória
a oportunidade de situar-se entre experiências que são, acima de tudo, lições
de persistência, sonho, idealismo e dedicação.
Senhores e senhoras,
Para que servem livros de
memórias? O que justificaria o interesse crescente pela produção e pela leitura
desse gênero entre nós? O memorialismo tem se anunciado como espaço para a
avaliação da vida, como documento ou interpretação da vida privada e da vida
político-social, ultrapassando os limites dos gêneros e situando-se para além
do narcisismo que dá origem a essa matiz de escritura. Trata-se de oportunidade
para avaliar acontecimentos e figuras, representando-os, com o distanciamento
e/ou o comprometimento necessário (s), a fim de que a isenção e/ou o
compromisso afetivo, antagonicamente, construa(m) um olhar particular da
existência, atirando o leitor para o fundo de situações em que a imaginação
vale tal qual a representação da realidade.
Nas memórias, reminiscências funcionam
como pano de fundo para outras intenções. Lembrando, o memorialista relê-se:
revive, denuncia, desculpa, silencia, documenta etc. e, enfim, emociona-se;
emociona. Reminiscências deixam de ser apenas lembranças, para que aflorem as
camadas mais subjacentes da linguagem, as quais dão ao gênero a tonalidade, a
partir dos traços mais característicos da personalidade do narrador e da
identidade dos tempos e dos espaços que relata, (re)cria ou revive. Compõe-se,
assim, o gênero memorialístico de confissões e testemunhos, para condensar uma
forma particular de enxergar o mundo e as relações sociais e humanas nele
construídas.
Em Apenas memórias, Cunha e Silva
Filho elabora escritura que ultrapassa o simples relato de situações e o
retrato de pessoas com quem convive ou com quem conviveu; vai adiante das
simples reminiscências e, por isso, a obra atinge dimensão estética. A dimensão
estética de suas memórias se fundamenta em dois princípios subjacentes a cada
fragmento do pensar e na tessitura circular que remete à própria elaboração do
pensamento. Situando as lembranças entre
os acontecimentos vividos no Piauí e no Rio de Janeiro, a tônica da escritura
foca-se ora no lirismo, ora na intenção didática subliminar, tônica com duas
funções evidentes, respectivamente: recordar, para sentir saudades, ou para
orientar e avaliar a formação humana, a partir de seu percurso pessoal
nas relações sociais. Esta segunda vertente, linha central de todo o livro.
Ao Evocar a saudade, vê-se o
hedonismo escapista do olhar romântico confundir-se com o idealismo não menos
romântico, presentes em todo o texto: o prazer em simplesmente sentir saudades
(a saudade da mãe, do pai, do quarto-biblioteca, da rua Arlindo Nogueira, da
adolescência, da universidade, dos amigos, do subúrbio carioca, ou
simplesmente, dos flertes e do amor em forma de contemplação); o idealismo
expresso no domínio da língua estrangeira, na ampliação da cultura geral e na
conquista da cidade grande em meio às incertezas (a busca por moradia, por
trabalho, por novos amigos, pela cultura acadêmica, enfim, pela afirmação de
uma nova identidade, alicerçada nos encantos
do saber e da paisagem carioca, nos desafios do magistério e nas novas e
frutíferas amizade que conquistou).
Assim, figuram na obra as
lembranças da família, das escolas onde estudou, de Amarante de meados de 1940,
da Teresina da infância e da adolescência e do Rio de Janeiro a partir de 1964.
A mãe Ivone aparece em seus traços físicos (“uma jovem senhora de cabelos
escuros meio ondulados, pele morena clara e bela naquele sempre lembrado
sinalzinho por sobre os lábios”); o pai Cunha e Silva, proprietário do Ateneu
Rui Barbosa em Amarante, figura como
diligente professor e combativo jornalista (“sempre que possível me via
atento ao que meu pai fazia: preparando aulas, lendo e, logo depois, falando em
voz alta sobre o assunto da aula, ou lendo continuamente livros, jornais, ou ainda escrevendo febrilmente artigos para
jornais locais”); Teresina é principalmente a biblioteca do pai, onde descobriu
o gosto pela leitura (“fazia intensas e contínuas leituras, quase diárias, de
antologias que me chegaram às mãos ou mesmo aproveitando tudo de textos de
livros didáticos de língua portuguesa do ginásio e científico ou clássico, para
deles fluir, ora o sabor do lirismo poético, ora o enredo das narrativas, ora
ainda procurando dinamizar a capacidade de conhecer palavras novas, de
saber-lhes os sentidos e, quando possível, internalizá-los ao máximo de minhas
possibilidades); Teresina é os Colégios Domício de Magalhães e, sobretudo, o
Liceu Piauiense, onde se intensificou o estímulo para estudar a linguagem e
conheceu grandes mestres (No Liceu Piauiense, conheci professores de grandes
méritos. A. Tito Filho (1924-1992), mestre inigualável. Pontual, dedicado às suas
aulas tipo conferência, nas quais, além, da disciplina específica, despertava
os jovens à reflexão crítica dos grandes temas de natureza histórica, política
e social”); Teresina é a lembrança da janela da rua Arlindo Nogueira e a imagem
pitoresca dos transeuntes (“essa janela se confunde com a minha passagem da
infância para a adolescência. (...) nada me agradava mais ficar olhando para a
rua e ver a passagem das pessoas no vai e vem dos transeuntes, dos carros,
carroças, vendedores de rua, sobretudo das cuscuzeiras. Ó famosas cuscuzeiras!
(...) Da janela, aprendi a ver as meninas mais lindas de Teresina e não me
intimidava a lançar-lhes um olhar mais ousado” ); Teresina é os carnavais de
antigamente, o último carnaval antes de rumar para o Rio de Janeiro (“Era
fevereiro de 1964. (...) Naqueles carnavais de minha terra, em se tratando de
cenas de ruas, a grande expectativa do povão
era permanecer dos dois lados da avenida Frei Serafim, ou de outras ruas
para esse fim escolhidas, aguardando a passagem dos carros com gente
fantasiada, à semelhança do que aquele povão fazia, mas em ocasião solene, no
dia da ‘parada’ de sete de setembro.”)
Assim, figura o Rio de Janeiro
dos espaços conquistados pela força do trabalho, dos livros e do estudo,
alimentado pela grandeza do idealismo e da saudade. O idealismo e a saudade do
que aprendeu na temporada de quatro anos como funcionário de banco, no estágio
no Diário de Notícias, no bico no Diretório Acadêmico de Engenharia da PUC-Rio,
na convivência no restaurante Calabouço e na universidade, na amizade de
Ribamar Garcia, no casamento com sua amada Euza, na leituras de sua formação
docente, nos subúrbios cariocas etc. Paro de enumerar, por que creio já os
cansei o suficiente e a leitura do livro já dispensa qualquer apresentação,
ainda que apresentações tenham a função de situar a obra, ou instigar o leitor
e fornecer-lhes rumos para a leitura. Não poderia, entretanto, finalizar sem me
remeter a uma das principais estratégias de que se vale o escritor Cunha e
Silva Filho para fisgar o leitor.
Anota Perelmam e Obrecht-Tyteca,
no clássico Tratado da Argumentação, que toda analogia transforma-se
espontaneamente em metáfora. Em Apenas memórias, o narrador, ao eleger os
referentes de sua memória afetiva, intercala-os com digressões que funcionam
como passagens para julgamentos ou avaliações nem sempre explicitados, mas que,
ao modo da construção de uma metáfora, estabelecem novos sentidos ao tópico
sobre o qual se detém. Funcionam as digressões como termos comparantes, tal
qual ocorre na metáfora mais convencional, e assim se transferem noções de
sentido que dão mais dinamismo ao ato de recordar, estimulando o conhecimento
prévio do leitor e seu maior envolvimento na formulação das hipóteses tão
peculiares ao ato de ler. Ao utilizar essa estratégia, o narrador funde o
memorialismo à crônica e subverte o relato, aspecto que se amplia na natureza
alinear que perpassa todo o livro e que, paradoxalmente, dá-lhe unidade.
Passado e presente se confundem e se transformam em tempo único, fortalecendo o
memorialismo em um de seus traços temáticos valiosos, o não esquecimento.
Senhores e senhoras,
Que controle temos sobre nossas
memórias? Elas costumam ser como um barco à deriva, que navega ao sabor de
nossas percepções, ou um trem descarrilhado que não se sabe onde vai parar. Ao
fluxo das lembranças, somos tomados de múltiplas sensações a tal ponto que a
razão, não raro, é encontrada nos caminhos do afeto e da emoção.
Em Apenas Memórias, de Cunha e
Silva Filho, para além do fundo moral, que comporta estudo detalhado, a
lembrança tem sua feição primeira na satisfação de amar o passado, de querer
fixar nas dobraduras do tempo o horizonte do olhar, referendando o que disse
sobre a lírica Salvatore D’ Onófrio: “Operando na linha da similaridade, por
meio de processo psíquico de associação, a lírica encontra relações
surpreendentes entre o sentimento do presente, as recordações do passado e o
pressentimento do futuro, entre os fenômenos da natureza cósmica e os atributos
do ser humano”.
Boa leitura! Muito obrigado!
Discurso proferido na solenidade
de lançamento de Apenas Memórias, de Cunha e Silva Filho, na Livraria
Entrelivros, em Teresina, na noite de 24.09.2016.
Escritor Cunha e Silva, andamos nos mesmos caminhos escolares em tempos diferentes:
ResponderExcluircheguei ao Des. "Antonio Costa" em 1963 e ao Liceu Piauiense em 1967, entretanto tivemos os mesmos professores, todos dignos de respeito e admiração. Parabéns por lembrar de todos eles sem exceção.
Um abraço Itamar
Obrigado, meu caro amigo pela sua afetuosas palavras de quase contemporâneo meu. Quando da homenagem que V. pretende prestar aos professores seus e meus do Domício e/ou do liceu, me avise com antecedência para que ele lhe envie uma mensagem minha que poderia ser lida por V. no dia solene.
ResponderExcluirAbraços do Cunha e Silva Filho