segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

PRISÃO DE PARNAIBANOS NO RIO DE JANEIRO


PRISÃO DE PARNAIBANOS NO RIO DE JANEIRO

Alcenor Candeira Filho

     Há tempos alguns amigos  me cobram um texto sobre episódio acontecido no Rio de Janeiro, no sombrio ano de 1970, que resultou na prisão de vários parnaibanos efetuada em apartamento da rua Senador Vergueiro, Flamengo, em final de tarde de um sábado.
     Os parnaibanos fomos levados em  três viaturas  policiais (fuscas)  com sirenes ligadas e barulhentas à delegacia da rua Bambina, em Botafogo.
     Após enfadonhos depoimentos, todos fomos liberados sem necessidade de habeas corpus, com direito a imediata comemoração em bar próximo da delegacia.
     Nunca nos envergonhamos nem nos vangloriamos da ocorrência: afinal de contas não éramos heróis e fomos detidos por pouco tempo – no máximo sete horas - , não pela prática de ato delituoso mas pelo simples fato de havermos “entrado de gaiatos no navio” ou de estarmos “no lugar certo  em hora errada”.
     O lugar era “certo” porque se tratava do apartamento do 11º andar em que moravam os parnaibanos Weber Mualem de Moraes, Antônio Dutra (Cambel) e os irmãos Benedito, Paulo e João Paulino Soares. O pequeno apartamento era um dos lugares de reunião de nossa turma nos finais de semana e por isso eu, Gervásio Pires de Castro Neto, Raimundo Furtado de Mendonça Neto (Raimundinho Arraia) e Arnaldo Prado lá nos encontrávamos como visitantes.
     Nessas visitas  costumávamos tomar os primeiros copos de cerveja para, em seguida, com a chegada da noite, vagar de bar em bar até o amanhecer, porque gostávamos de ver o sol nascer no vazio da cidade maravilhosa.
     Se o lugar era “certo”, o momento foi “errado”, porque ninguém esperava a chegada repentina de Antônio  Dutra, o Cambel, inteiramente fora de si, furioso, desafiador, provocador, insultando o tempo todo os irmãos Soares. Lembro-me  de uma panela com ovos no fogão e de Cambel ameaçando jogar nos desafetos a água que nela fervia. Ele bradava: “Aqui, só respeito o Noba, porque joguei botão na casa dele várias vezes e sempre perdia”. Nunca se soube se Cambel estava drogado. Mas sem dúvida  estava transtornado. Chegou a agredir fisicamente os irmãos Soares , que reagiram moderamente, na medida suficiente para dominar ou domar o  agressor. Em verdade, todos tínhamos as mesmas parnaibanas raízes e éramos amigos.
     Mas Cambel estava possesso. Mesmo depois da surra que levou, começou a jogar da janela do apartamento garrafas vazias de cerveja no pátio do edifício. Os vizinhos ligaram, e logo viaturas da polícia estacionaram em frente do prédio. Os  policiais entraram  no pequeno apartamento, com armas na mão e gritando: “Todos com as mãos na parede”. E visitantes, moradores e apartamento foram minuciosamente revistados. Nenhuma droga foi encontrada. Em seguida, todos fomos algemados: eu junto com Gervásio, Raimundinho com Arnaldo, Benedito com Paulo, enquanto Cambel e João Paulino foram algemados sozinhos.
     Weber havia saído do apartamento minutos antes da chegada da polícia. Saíra para  buscar socorro. Um oficial da aeronáutica, morador do prédio e amigo de Weber, explicou aos policiais quem eram os envolvidos. Nenhum bandido. A preocupação maior era com Maninho Medeiros, que morava no Flamengo e visitava sempre os conterrâneos naquele endereço.
     Maninho saiu de Parnaíba nos anos 60 para morar no Rio de Janeiro, deixando na cidade natal e no curriculum a fama de comunista. Envolvido em inquérito policial militar instaurado em Parnaíba em 1964, foi preso e impedido de tomar posse como funcionário do Banco do Brasil após aprovação em concurso, sob a acusação de ser subversivo. Anos depois, conseguiu assumir o tão sonhado emprego .  Os órgãos repressores chegaram â conclusão de que Maninho era apenas um cidadão decente que defendia a dignidade humana. Mas no momento dos acontecimentos narrados, a eventual prisão de Maninho, que felizmente não aconteceu (ele fora avisado pelo Weber do que estava ocorrendo lá em cima), poderia ressuscitar encrencas do passado em razão de registros em sua ficha no DOPS.
     Na delegacia da rua Bambina, prestamos depoimentos até de madrugada. Do momento de meu depoimento, lembro a indumentária quase carnavalesca do delegado: camisa manga comprida amarela/corrupião, gravata verde/pavão e calça preta/urubu. Não fitei os sapatos ou meias, mas os cabelos compridos com rabo de cavalo jamais me sairão das retinas.
     Ao saber que eu  fazia o quarto ano de direito, disse: - Você está começando muito bem a vida de advogado.  Cuidado. Pare  com essa cachaça e vá estudar.
     Gostei da atitude educada e simpática do delegado, que passou a inquirir Gervásio Neto.
     Naquele fim de semana Gervásio se  despedia dos amigos. Iria na  semana seguinte para Curitibanos para assumir emprego no Banco do Brasil. Naquele momento, portanto, ele não estudava nem trabalhava. E o delegado:
     - O que você faz na vida?
     - Já compro feito.
     - E seu  dinheiro cai do céu?
     Tudo esclarecido, Gervásio foi liberado, o que aconteceria com os demais.
     Informações sobre as personagens deste texto:
     - Raimundinho: em 1970 era estudante de arquitetura no Rio de Janeiro. Rebelde, contestador do regime ditatorial, algumas detenções, alimentava o sonho de morar em Londres. Realizou o desejo e tomou gosto por viagens internacionais, que realiza até hoje.
     Casado com  Fátima,  voltou a fixar residência em Parnaíba, com temporadas constantes no Rio , onde mora sua única filha, e Brasília, onde residem os pais e irmãs.

     - Gervásio: naquele tempo produziu os primeiros desenhos: charges e caricaturas, que já prenunciavam o grande artista que é hoje, com trabalhos conhecidos e admirados por muita gente.
Criador de capas de diversos livros, inclusive de dois de minha autoria.
     Aposentado, é casado com Ana Maria, com quem tem duas filhas. Mora no Rio de Janeiro e anualmente vem a Parnaíba.
     - Weber: era o músico da turma. Até hoje curte violão. No auge da mocidade integrou a banda de música “Os Bárbaros”, que tocava principalmente em festas realizadas nos clubes chiques da Parnaíba. com a presença maciça de jovens.  Bancário aposentado e casado há mais de quarenta anos com Lúcia Beré, com quem tem duas filhas e três netos.
     - Vicente, Benedito e João Paulino Soares: trabalhavam no Rio de Janeiro nas áreas financeira e comercial.  Voltaram a residir em Parnaíba, onde se casaram e tiveram filhos.
     - Cambel: em 1970 estudava e trabalhava no Rio de Janeiro. Formou-se em engenharia. Faleceu há pouco tempo em Brasília,
onde exercia o cargo de auditor fiscal da receita federal.
     - Arnaldo: Saiu muito jovem de Parnaíba com a fama de bonitão, que lhe valeu o apelido de “Pão”. Muito disputado pelas mulheres, Arnaldo morreu com menos de quarenta anos de idade, no Rio de Janeiro.
     - Maninho: já falamos de sua trajetória de vida. Faleceu no Rio de Janeiro com cerca de 70 anos de idade, deixando esposa e filhos.
     - Alcenor: morou no Rio de Janeiro enquanto fez o cursinho pré-vestibular e o curso de direito (1966-1971). Vive em Parnaíba. Casado com Ana Lúcia. Tem três  filhos.
  
     Informações sobre as personagens deste texto:
     - Raimundinho

Um comentário:

  1. Alcenor Candeira Filho:

    Bem a propósito me vêm ao conhecimento este texto de memórias do tempo de estudante universitário. As referências aos bairros da Zona Sul do Rio dão bem a medida do que lhe ficou guardado da situação em que se viram envolvidos os estudantes citados, incluindo a sua pessoa.
    O ano de 1966 me é também caro, pois foi nesse ano que entrei para a Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (hoje UFRJ0.
    O curioso é que, sendo eu piauiense e também V, nos separavam as cidades de onde vínhamos: V. da bela cidade de Parnaíba; eu, da não menos bela Teresina, embora seja de Amarante.
    V. se enfronhava bem com a amizade dos conterrâneos, um pequeno mas seleto grupo de amigos; eu fiquei mais isolado. Passei pelos reveses no subúrbio de Oswaldo Cruz.Só, um ano depois, encontrei, de portas abertas, a CESB (Casa do Estudante Secundário do Brasil), no centro do Rio, pertinho da Central do Brasil, do Palácio do Itamaraty e do Palácio Duque de Caxias.
    Nós nunca nos vimos no Rio.
    A vida dá muitas voltas. Só vim a conhecê-lo de nome mais tarde dada a sua participação como intelectual conhecido tanto em Teresina quanto principalmente em Parnaíba.
    As passagens e o incidente narrados tão bem por V. indiretamente me despertaram para aqueles anos duros para mim e seguramente para muitos estudantes vindos do Nordeste.
    Os relatos que beiram o tragicômico, na época da ditadura militar, sobre o destino dos seus amigos tornam-se, assim, parte da sua história pessoal e da sua experiência de estudante do pré-vestibular e do curso de Direito, se não me engano, em Niterói, Universidade Federal Fluminense.
    Não sei se V, chegou a almoçar no Calabouço, reduto de estudantes do Norte e Nordeste brasileiros.
    As memórias têm esse condão: o de trazerem à nossa retina retalhos de nossas vivências que nos vêm tão fortes e vivas que acreditamos terem ocorrido ontem.
    As memórias são também uma forma de conhecimento revisitado que, como catarse, nos livra de bons e maus fantasmas dos tempos idos e vividos.
    Gostei de ler seu texto, sobretudo porque, em alguns ângulos, ele mantém um diálogo indireto com as minhas memórias daqueles tempos, de outros tempos ulteriores (situação de vida do grupo de amigos seus no presente) ou mesmo anteriores ao recorte do seu passado no Rio de Janeiro enquanto estudante universitário.

    Um abraço do
    Cunha e Silva Filho

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