terça-feira, 28 de março de 2017

UM FUNERAL NO CARNAVAL

Foto meramente ilustrativa. Fonte: Google

UM FUNERAL NO CARNAVAL

Vivaldo Lemos Fernandes

            Acho que a sua pederastia era inata, congênita. Ele já nasceu guei. O seu verdadeiro nome ninguém sabia. Uns diziam que era Amadeus e outros que era Florisbelo. Mas, isso agora não importava. O que efetivamente vem ao caso é o que aconteceu naquele carnaval, nos idos de cinquenta e dois.

            Lixaba, como era conhecido desde a Palha de Arroz, São José, Paissandu, até o Mercado Velho, apareceu por ali ainda rapazola, no viço, vindo não se sabe também de onde, se do Maranhão, do Ceará ou da Bahia. Era moreno, baixo, grosso, de nádegas roliças e arrebitadas, e tinha uma entorse do lado direito da coluna, que o deixava meio corcunda. Andava sempre de calção apertado, feito de pano colorido e camiseta de mangas cavadas, banhado e perfumado. Tinha os cabelos compridos, ondulados, e, à noite, exercendo a profissão, até os lábios pintava e se travestia de mulher. Era o recadista das prostitutas do pedaço e também o seu mais fiel confidente. Fazia as compras para de mercado para a Maria Aguiar e outras cafetinas, donas de cabarés. Era pau para toda obra. E também bom cozinheiro, diziam.

            O dinheiro que ganhava tinha dois investimentos certos: sustentar os seus homens e depositar o restante na Caixa Econômica Estadual para custear suas fantasias e orgias do carnaval. Todos os anos tinha indumentárias novas e diferentes: ora de colombina, odalisca, boneca... e outras mais. Porém a que ele gostava mesmo e se esmerava no seu preparo era a de baiana, com saia rodada, colorida, com anáguas engomadas e cesta de frutas na cabeça, braceletes de contas nos braços, pendentes doirados das orelhas, tamancos de salto alto e enfeitados, tudo ao estilo Carmem Miranda. Aliás, vestido assim, a caráter, até que a imitava. Quando ele, desfilando, chegava à Rio Branco e a Pedro II, o povão ululava, ria, batia palmas, dava vivas, chamava seu nome e ele delirava; redobrava-se em requebros e meneios; jogava confetes, serpentinas, na plateia e jatos de lança-perfume. Ele se sentia o máximo, um fausto, um ditoso e alcançava, pela excitação e deslumbramento, um orgasmo mental. Eram três ou quatro dias de delírio, de contentamento, de alegres folguedos. Porém, na quarta-feira, se recolhia solitário ao seu quarto e lá permanecia como anacoreta, em total recolhimento e abstinência, até sábado, quando voltava às suas atividades normais.

            Também, às vezes, ficava em profunda prostração, abatido, deprimido, não se alimentava e não aparecia durante a noite. Quando era acometido por essas crises, não queria saber de ninguém, nem mesmo dos seus homens. Diziam os mais íntimos que aquilo era produto de uma grande paixão recolhida, não retribuída, guardada e sete chaves... um segredo inconfessável. Especulações havia de toda ordem. Uns diziam que era por causa de um filho de um alto funcionário do governo, o que, aliás, promoveu até uma disfarçada investigação. Outros juravam que era por causa do seu procedimento amoral – um pederasta vulgar, disforme e pobre, que só vivia de fato, verdadeiramente, durante os dias de carnaval, existência efêmera como a de uma colorida borboleta. Mas, tudo não passava de meras conjecturas até o momento em que o verdadeiro motivo veio à tona. Foi uma revelação bombástica! Toda a bicharada do pedaço e até mais além, para as bandas dos sobrados e bangalôs, se assanhou, com suspiros, desmaios, faniquitos... foi uma loucura, pô!

            O caso era antigo. Remontava há mais de cinco anos. Aconteceu num domingo, quando ele fazia compras no Mercado Velho. De repente, deparou-se com um crioulo de quase dois metros de altura, bem apessoado, dentes alvos, riso franco e aberto, maneiroso e voz argentina de locutor de rádio. O negrão, também, estava de bermuda e camisa de malha, mostrando o físico de atleta. Lixaba parou extasiado. Olhou-o, discretamente, de cima para baixo, prestando atenção em todos os detalhes, porém, onde se demorou, onde redobrou a sua perspicácia de profissional, foi no meio das pernas do rapagão. Fez um cálculo mental do tamanho do troço que estaria a dormitar ali por baixo da roupa e soltou um ai suspirado. O crioulo não deu muita atenção ao fortuito encontro e foi embora, entretanto, ele ficou ali parado a mirá-lo com o olhar lânguido... sonhador...apaixonado. Amor de primeira vista!

            Nunca tinha visto aquela criatura antes e procurou informar-se, sem alarde, de quem se tratava, até que conseguiu e passou a levar roupas à lavanderia onde ele trabalhava, com o intento de vê-lo mais à miúde, mais de perto, ouvir aquela voz argentina e, acidentalmente, roçar a sua manzorra. Tudo naquele homem era grande, exagerado, imagine “aquilo”, quando inchado, zangado, pensava ele nos seus longos e sonhadores cismares. O negrão, a princípio, de nada desconfiara. Achava até bom a vinda daquele novo freguês que lhe levava muitas roupas, pois isso aumentava o faturamento que, à época, estava em baixa. Mas, num outro domingo, no mesmo mercado, encontraram-se novamente. Agora, já eram conhecidos e tinham até uma certa intimidade. Depois de cumprimentá-lo, Lixaba fingiu que tropeçara e ia cair e, tentando amparar-se, passou a mão nas coisas íntimas do crioulo. Com faniquitos e espantado disse... Meu Deus! ... meu Deus! O negrão pulou para trás e ficou sério. Deu um empurrão no veado e foi embora resmungando e xingando. Os presentes riram a valer e ele ficou ali parado com a mão espalmada, como se quisesse conservar a medida correta das coisas do crioulo, das quais sentiu o volume, mesmo em estado de repouso, e repetia... meu Deus, que loucura! Daí em diante a comédia ficou com o seu enredo muito claro, transparente. Era o crioulo mesmo o bem-querer de sua vida.

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            O carnaval prometia ser o melhor dos últimos anos. A prefeitura havia dado contribuição em dinheiro para as agremiações, como forma de incentivo a melhorar a apresentação e desempenho dos blocos carnavalescos, e outras entidades privadas também participavam para que os folguedos de Momo fossem o melhor. Na Paissandu e na São José o clima era de grande euforia e rivalidade, pois, dali sairiam os dois carros alegóricos vencedores do corso. Porém, para Lixaba, isso não era de todo relevante. O que para ele era importante, verdadeiramente, era o seu desfile durante os três dias de entrudo. Três fantasias diferentes, cada uma feita com mais esmero e riqueza. No primeiro dia, desfilaria com a fantasia Deusa do Maracatu, acompanhada dos seus pajens. Seria um sucesso garantido, comentava. No segundo, Ave do Paraíso. Essa com mais de mil penas de pavão, além de outras tantas de diversos pássaros. E para o terceiro dia estava guardada a melhor surpresa. “O que é que a baiana tem?”, era o nome da fantasia. Na confecção desse costume, ele havia se esmerado em requinte, originalidade e gastos. Estava “um lixo de bonita! ”, dizia. E não foi sem um propósito definido a sua viagem a Salvador, no meio do ano anterior. Fora ver de perto o samba das autênticas baianas, o seu remexido, o seu rebolado e, também, adquirir adereços característicos.

            Os dois primeiros dias, um sucesso absoluto. Como em anos anteriores, o povão não poupou aplausos e vivas para a sua apresentação. Ele era todo alegria, contentamento e alvo de comentários. Até O DIA, do Mundo o Mão de Paca, elogiou a sua exibição e as outras bichas se mordiam de inveja e apontavam falhas imaginárias, no sentido de desvalorizar e menosprezar o desfile da concorrente, porém, secretamente, reconheciam o seu valor. O Totó bateu um seu número de fotos e o Muller, também. O Lauro, como não poderia deixar de ser, pois pertencia à mesma confraria, obteve foto privilegiadas. Muitas delas iriam fazer parte da sua galeria particular de fotografias.

            Ele soube, então, que o crioulo dos seus sonhos iria desfilar também num grupo denominado Enterro de Momo. Sairia fantasiado de “O Príncipe das Trevas”, caracterização que, aliás, lhe cairia muito bem, fechando o cortejo. Lixaba desfilaria logo atrás dele. Sabia por convicção que logo seria notado pelo seu príncipe, que não era nada das trevas, mas, sim, ali da Riachuelo mesmo. Seria o máximo desfilar, quase que exclusivamente, para o seu adorado. O sonho estava prestes a se realizar.

            A terça-feira amanheceu com uma chuva fina, molhada, mas, tudo indicava, não comprometedora das festividades de logo mais à tarde. No baixo meretrício a azáfama era total. Todo mundo ajudando todo mundo nas mais diversas tarefas. Os mínimos detalhes eram lembrados e ajustados. Não poderia haver falhas, pois, naquele dia, é que seria escolhido o melhor bloco, o melhor carro alegórico, o melhor grupo e, principalmente, o melhor folião, incluindo fantasia, criatividade, originalidade e desempenho. Era nesse último item que ele se incluía e havia se redobrado em ensaios e posturas. Ao meio-dia, todos ou quase todos os preparativos estavam concluídos. Sairiam, em corso, às três da tarde. Ele iria no carro da Raimundinha Leite até próximo à farmácia da Dona Lili. Ali esperaria a passagem do Enterro de Momo e seguiria, logo atrás, como havia de há muito planejado.

            Ninguém, a princípio, reparou na ausência de Lixaba que, naquelas ocasiões, sempre aparecia para dar palpites e fazer sugestões. Foi Mariinha de Sinimbu quem notou. Vendo a porta do quarto fechada por toda a manhã, foi verificar o que ocorria. Qual não foi o seu espanto, o grito de horror e de medo que soltou. Ele estava morto na cama, de barriga pra cima, a boca aberta escorrendo baba e os olhos esbugalhados, fixos em um ponto do teto. A cabeça pendida no colchão, na mão direita um lencinho branco e na outra uma ampola de lança-perfume, vazia. Havia morrido, por certo, de uma super inalação de éter. No cabide, a fantasia que usaria no desfile de logo mais, gomada e perfumada. Houve muita confusão, histerismo e choro. Foi chamada a polícia. Veio, também, o legista, bêbado que nem gambá, que constatou a morte por inalação excessiva de lança-perfume. Não houve autópsia e o médico nem mesmo tocou o corpo para verificar se Lixaba estava realmente morto. Foi um diagnóstico visual e circunstancial, apenas. A notícia logo se espalhou. Até a Rádio Difusora noticiou o fato, com muito respeito e pesar.

            Houve, então, um generalizado desalento. O que fazer agora com o já programado desfile?, era a pergunta comum. As sugestões vinham de toda parte e de toda sorte. O impasse teria que ser dirimido pelas organizadoras do evento. Reuniram-se as cafitinas mais importantes e resolveram, por unanimidade, não cancelar as manifestações antes programadas, mas, sim, acrescentar a elas um funeral, um funeral diferente, inusitado, sem luto, sem tristezas, sem choro ou lamentação. Um funeral sem marcha fúnebre, mas a toque de samba, marcha-frevo e muita cachaça e lança-perfume. Os participantes aplaudiram a magistral solução. Ninguém queria deixar de festejar naquele dia. Que se danasse a igreja, lá com seus padres e a sociedade com a sua hipocrisia! O importante era a homenagem póstuma que prestariam ao maior pederasta do pedaço.

            E assim foi feito. Às duas da tarde, maquiado a caráter, Lixaba estava comodamente deitado no melhor ataúde que a funerária do Benedito Caixão tinha disponível e vestido com a sua fantasia de baiana, completa, com turbante, tabuleiro e tudo mais de adereços. Parecia estar vivo, apenas adormecido, esperando a hora de entrar na folia. O singular e rápido velório foi no salão do cabaré da Jeruza, por comportar mais gente. De toda a cidade acorreram amigos e curiosos. O salão regurgitava, não cabia mais ninguém. A veadagem assumida, comandada por Napu, compareceu sem nenhuma reserva. Afinal, tratava-se de um ato de solidariedade humana, que não excluía credo, ou cor, fresco ou machão. Dizem até que o crioulo, discretamente, compareceu.

            Às três, o cortejo fúnebre-carnavalesco estava formado. Com o pipocar dos foguetes, sinal convencional, partiu. Na frente, capitaneando, o carro funerário, todo engalanado de coroas de papel crepom e flores das mais diversas. Era um jardim ambulante. Em seguida, os automóveis com as madames, os caminhões alegorizados com as meninas na carroceria e, por último, o povão a pé, tocado a pinga e sambando com a bateria e charanga do bloco dos Artísticos e de outros mais, avulsos, que se juntaram ao funeral. Todo o acompanhamento trazia uma laçada no braço direito de fita roxa, em sinal de respeito, não de luto. Nunca o Bazar das Novidades e a Casa A Fé venderam tanta fita em um só dia. As filas dobraram a esquina do Arquivo Público e da Papelaria do Antônio Lopes. Todo mundo queria participar da homenagem.

            O trajeto seria quase o mesmo programado para o desfile. Pela Paissandu até a Riachuelo, daí até a Estrela, à direita até a Praça do Liceu e, à esquerda, pela Simplício Mendes até o cemitério São José. Pararam em frente à igreja do Amparo em busca de um padre. Não havia. Estavam em retiro na casa paroquial, um pouco mais adiante. Seguiram. De lá, vinha saindo um, era o Cônego de Castelo, que, sorrateiramente, escapulia para tomar um alentado gole no boteco do Otávio Panelada, logo do outro lado da rua, quebrando a abstinência de três demorados e tediosos dias, passados a duras penas, somente com um golezinho pela manhã e outro à noite do vinho da missa. O cortejo parou. Uma das cafitinas desceu e conversou com ele explicando o acontecido. Queria que fosse junto para encomendar a alma do falecido, lá no cemitério. O cônego relutou, mas, vendo aquele mundaréu de gente, aquiesceu e entrou no automóvel do 71, junto com Raimundinha Leite, de quem, já tinha ouvido muito falar dos seus predicados, adjetivos não muito recomendados pela igreja, contudo, muito apreciados pelos mundanos pecadores.

            A madame, com acanhamento, ofereceu um trago de conhaque cinco estrelas, por sinal, o preferido do cônego. Afinal, era carnaval!... quando tudo ou quase tudo era tolerado e permitido. Ele, também, com fingido acanho, derramou de goela abaixo uma generosa dose, que desceu redonda, fazendo trinado aos seus ouvidos, já há algum tempo emudecidos. Até o cemitério, foi meio litro. Agora, já flutuava como um anjo e encomendaria a alma até mesmo do satanás, se fosse preciso.

            O povão tomou conta do cemitério. Era um empurra-empurra dos diabos. Todos queriam ver o sepultamento. Rodeando o caixão estavam as madames, os mais íntimos e o cônego. O esquife foi aberto para a última contemplação e uma chuva de flores caiu sobre ele, lançada pelos presentes. O padre fez as orações e recomendações, mas, na hora de aspergir água benta sobre o cadáver, não tinha. Então, disse baixinho para os mais próximos que qualquer líquido servia. Mourinha, que estava ali fantasiado de anjo, tirou de dentro de uma de suas asas uma garrafa de pinga e passou para o padre. Ele cheirou o conteúdo, comprovando que era das boas, salpicou algumas gotas sobre o defunto, dizendo em latim “que desperdício! ”... “que desperdício! ”. O restante da garrafa escamoteou, como profissional, para dentro da batina, visando o futuro.

            O caixão ia ser baixado à última morada. O bloco dos Artísticos começou a cantar “o que é que a baiana tem?”, como a sua última homenagem. O foguetório troou e o povo todo passou a participar da cantoria. Era uma festa de carnaval, em pleno cemitério. Foi um espetáculo pagão, mas bonito de ver todo mundo dançando, pulando e cantando naquele terreiro dos filhos do além. Entretanto, o inesperado estava por acontecer. Quando o esquife ia ser baixado à sepultura, talvez em razão da algazarra e dos estampidos dos rojões, o defunto se mexeu, acordou, abriu os olhos, olhos esbugalhados como os de quem acorda de um grande pesadelo, e sentou-se no fundo do caixão, atônito. Não atinava o que havia acontecido. Olhou em volta e levantou-se, atordoado. Foi uma debandada geral. Somente o cônego ficou ali, perplexo, boquiaberto, parado, porque não tinha ânimo para correr. Instintivamente, escamoteou de dentro da batina a garrafa de pinga e, de um só sorvo, acabou com ela. Agora, estava mais do que pronto para enfrentar alma do outro mundo, fosse fresca ou não.

            O falso defunto começou a acenar para o povo que corria aos tropeções e a gritar que estava vivo, fora só um desmaio. Aos poucos, e ainda com receio, voltaram. Então a charanga do bloco do Artísticos voltou a tocar e cantar a música interrompida e o povão fez coro. Lixaba, já refeito do susto, não perdeu tempo. Pulou do caixão e saiu na frente dos acompanhantes, se desfazendo em meneios e requebros, a dançar e cantar “ o que é que a baiana tem? ” E o povão, em delírio, respondia em coro:

Tem saia rodada, tem...
Tem brinco de ouro, tem...
Anágua engomada, tem...
Só vai ao Bonfim que tem...

Quando você requebrar,
Caia por cima de mim...
Caia por cima de mim...
Caia por cima de mim!
O que é que a baiana tem?

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