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PREFÁCIO AO LIVRO DE POESIAS RESSACAS,
DE CARLOS ALBERTO GRAMOZA VILARINHO
Cunha e Silva Filho *
Um Prefácio não pode ser apenas elogios
a um autor, mas adiantar algumas
observações de natureza crítica que a obra lida possa suscitar numa primeira
leitura, quer dizer, trazer à baila aquilo que o livro
lançado possa oferecer de novo no
tocante a livros anteriores do autor. Só
os livros de estreia podem ser
lidos com uma
boa dose de indulgência a fim de que o julgamento não seja apenas negativo, pois quem prefacia, antes de tudo, merece
tratar um autor novo com alguma
boa vontade, mesmo porque o autor, ao
escolher alguém que lhe faça um
prefácio, já por si só espera uma boa acolhida à obra. De qualquer
forma, o gesto de entregar a uma pessoa a incumbência de um prefácio é um
maneira de reconhecer o valor de quem vai escrevê-lo. Seria uma espécie de
homenagem ao autor do prefácio.
Sendo assim, cumpre a quem escreve esse tipo de paratexto salientar
o que esteticamente seja
válido na obra e o que poderia ser sugerido ao autor a fim de que ele venha a melhorar no gênero ou gêneros em que exerça a atividade criadora. No caso em exame, um livro de poesia.
Carlos Gramoza está distante de sua
estreia no domínio poético há três
décadas. Seu livro de estreia, Tempos
perplexos, é de 1983, com Prefácio de
José Virgílio Madeira Martins Queiroz. Esse
longo período de vida não foi, no entanto, acompanhado de uma boa quantidade
de obras escritas. Ao contrário, a obra ora lançada, Ressacas, vem a ser a
terceira em sua trajetória de poeta.
Circunstâncias várias são, por vezes,
impeditivas a que um autor
produza mais. Não vem ao caso discutir as razões dessa questão que
mais está associada à vida do autor e à
vida literária. Não importa. O que permanece na história literária é uma obra
editada, não a obra completa, uma vez que o conceito de obra completa é por demais vago e fugidio. Quero
significar que o mínimo pode equivaler
ao máximo e, em se tratando de valorização
estética, número de livros nada tem a ver com
bom ou ótimo nível literário.
O fato é que devo assinalar um ponto pacífico na
questão axiológica de um poeta como o Gramoza, ou seja, não há dúvida
quanto ao reconhecimento de seu talento
poético, posto que identifique na leitura de seu segundo livro, Passos oblíquos
(1994), bem como no terceiro, Ressacas,
já mencionado, objeto deste Prefácio, algumas deficiências de ordem gramatical
e bem assim de erros de grafias não bem
revisados pelo editor. Isso não é
bom para uma obra nem para o autor. A
habilidade criativa de Gramoza é bem superior ao seu estrito
domínio de certos aspectos
da disciplina gramatical, porquanto nele a potência do verso está acima
do fato meramente gramatical. Com
um pouco de esforço, essas deficiências podem ser sanadas.
À época da publicação de Passos oblíquos,
em novembro de 1994, com Prefácio de Clóvis Moura e Introdução de M. Paulo
Nunes, não tinha eu conhecimento da existência desse poeta de Amarante. Só naquele
ano vim a saber. O autor me havia remetido um exemplar autografado desse
segundo livro. O livro de estreia, Tempos perplexos, já citado, somente vim a ler há pouco menos de um mês num
exemplar que o autor me remeteu, também
gentilmente autografado com a data do
mês corrente. A publicação, em edição
simples e desataviada, ficou a cargo da
Universidade Federal do Piauí – PREX -
Coordenação de Assuntos Culturais. O
livro não menciona o número de
páginas, frente e verso, que o
constitui. Resolvi contá-las. Soma 28
páginas de frente, ficando, porém, em
branco a numeração das páginas do verso,
num total de 28 poemas.
Entretanto, não resta dúvida de que da obra de estreia até Ressacas, houve avanço considerável tanto na técnica de compor
os poemas quanto em certas
constantes de seu lirismo, as quais se aprofundaram, o que é um bom sinal a um poeta
visceralmente sensível ao sentimento humano e ao sentimento da natureza, tanto quanto a uma atenção
vigilante com problemas sociais, étnicos, políticos a desafiarem um mundo movimentado pela alta
tecnologia.
Continuo apostando na sua capacidade
de fazer boa poesia em
diferentes frentes temáticas: lirismo,
autobiografia, natureza, problemas sociais e artesanato poético,
no sentido de criar metáforas
poderosas que dão aos seus poemas um
sensação de grito contra tudo
aquilo que machuca a dignidade
do ser humano. Todos esses traços
temáticos e expressivos de sua semântica
poética lhe conferem um lugar de realce
entre os poetas de sua geração que
ainda acreditam no papel da
poesia e sua função social como instrumento de
consciência desalienante dos povos.
Na sua obra de estreia, me chamaram a atenção, pela maior qualidade
composicional, entre outros, os
poemas “Lunar,” “Deslumbrado,”
“Pesadelo,” “O pneu,” “Domingo à
noite,” “A palavra” e “Vazio.” Gramoza,
na condição de estreante tem altos e
baixos, algumas hesitações de
elaboração de poemas, de pontuação que
podem ser sanadas em outras edições. No que tange ao fazer poético, ele se
distingue pela inquietação, por um certo
pessimismo e pela marca muito pessoal, muito autobiográfica, enrustida no sujeito lírico. Esse meuismo, se assim
posso definir, não contribui, se exagerado, para atingir um melhor patamar valorativo de seu estro.
A hipertrofia da subjetividade lírica não ajuda nenhum bom
poeta que pratique o verso em moldes
modernos, i.e., desde o surgimento das vanguardas europeias e a sua
assimilação na poesia brasileira, seja oriundo da ruptura do verso tradicional
- rimado e metrificado -, do Modernismo
de 22, seja a partir das gerações e
movimentos poéticos inovadores
do Concretismo de 1956 e de outros
movimentos de transformação da
poesia brasileira contemporânea.
No entanto, em Gramoza podemos identificar nele processos discursivos e expressivos, aliás já mencionados em parte
atrás, e que, agora, reforçamos, os
quais foram se aperfeiçoando desde o livro de sua estreia: a ) a habilidade de descrição da
natureza; b) o forte sentimento de um lirismo à flor da pele; c) a temática
social de viés esquerdista que vai até a uma obsessão por certas figuras mundiais emblemáticas como as de Fidel Castro, Che Guevara, a crítica
contundente ao capitalismo, o grito indignado contra a política econômica
norte-americana ante as nações subdesenvolvida (poema “Cloaca,” p.53); d) a
voz da poesia impotente diante dos problemas sociais e das
subjetividades e a
incompletude das ações e
objetivos na vida de um indivíduo, o
vazio de tudo (Poema “Inconclusa Canção,” p.52); e ) uma cadência rítmica que faz com que a
linha do verso seja interrompida, à semelhança de um enjambement, e conclua o
sentido do verso no verso seguinte:
Elas são as
duas pescadoras
Mais velhas das
margens do Parnaíba. (Poema “Elas” Tempos
perplexos)
É bem evidente, a começar do livro
Passos oblíquos, a constatação dessa
acúmulo de versos entrecortados formando,
no espaço da página, uma espécie
de enfileiramento de versos em
estrofes heterométricas, pequenas, médias e grandes, que se vai
agrupando até constituir o todo do
poema.
Essa estratégia grafemática,
que se vai radicalizar em
movimentos poéticos posteriores à
poesia concretista (Neoconcretismo,
Práxis, Vereda, PTYX,
Poema-Processo) caracterizada pelo
anti-discursivismo, à
frente, o uso até exagerado da desarticulação ou atomização
dos vocábulos, ocorre igualmente
em outros poetas a partir da influência – convém reiterar
- das vanguardas europeias. Na
verdade, essa novidade verbi-voco-visual remonta até a tempos bem remotos da Antiguidade grega e latina. No entanto, Gramoza faz uso - diga-se assim -, mais comedido
dessas hiperrupturas em face do verso tradicional, antes joga mais com o espaço da página em branco e com a heterodoxia das
estrofes semanticamente encadeadas.
Ora, o poeta Gramoza, que já está hoje na casa dos sessenta anos, deve ter
acompanhado todas essas
transformações operadas na poesia
brasileira, de vez que, ao
publicar seu primeiro livro nos anos
1980, ele já se insere visual e expressivamente na modernidade poética.
No que toca aos temas de sua poesia nele persistem alguns leitmotive basilares de sua produção: a
paisagem da cidade natal, Amarante, sua
natureza, seus ventos, suas árvores, seus rios, a recorrência
de versos alusivos ao rio Parnaíba,
o principal da cidade e do Estado do Piauí, o casario, enfim, seus pontos naturais mais conhecidos, sobretudo a principal rua de Amarante, chamada Avenida Amaral.
Um dado curioso do verso de Gramoza: não consegui vinculá-lo a nenhuma
influência de poetas piauienses, nem
mesmos do seu poeta maior, o Da Costa e
Silva (1885-1950). No livro de estreia,
somente uma vez me deparei com dois sintagmas que nos trazem,
intertextualizadas, na linha de um verso gramoziano, partes justapostas de versos do poeta de Sangue (1908): “... aos
ósculos das águas,” do sol de estio (poema “Deslumbrado”) sintagma extraído do poema “Amarante”, do livro
Zodíaco ( 1917)e ”...de um sol de estio,”
sintagma retirado do soneto
“Saudade,” da obra Sangue.
No livro Ressaca Gramoza
progride como poeta, aprofunda mais temas de sua preferência. Não diria
que os 57 desse poemas sejam todos
ótimos ou bons. Ele tem subidas e
caídas, mas as subidas é que o mantêm na
condição de poeta que pode ser lido e estimado pelo leitor de poesia ou pela crítica.
O poeta vai do lirismo dolorido à indignação social, do
sentimento do amor indefinido à
natureza de mãos dadas com a
subjetividade, do telurismo ao urbano,
do sentimento da natureza em fusão com a visão autobiográfica. Como bom poeta, entre outras preocupações, uma se deve assinalar: a de um lírico
que se volta, de quando em vez,
para o próprio ato de criação literária, o qual, de resto, é um interesse constante
de alguns grandes poetas de todos os tempos.
Essa reflexão metapoética lhe permite
sondar os seus próprios recursos
na construção dos poemas. Testar o canal do discurso lírico. Na poesia gramoziana tudo se mistura e tudo, a meu ver, converge
a uma postura poética muito
colada ao sinestésico, aos ritmos diversos, ao gozo
das palavras e, portanto, da
linguagem, da sua sintaxe poética que
parecem desaguar em cascatas em
direção ao mar profundo.
Daí que alguns poemas suscitam em nós, leitores ou críticos, ou
ambos, a vontade de afirmar ”Belíssimo poema. E assim eu fiz,
anotando à margem da cópia de seu Ressacas, as
seguintes conclusões numa segunda leitura do livro: Muito bom ( poema
“Evocação a Zumbi” (p. 43); “Atalhos”
(p. 42); “Ressacas” (que dá título ao
livro (p. 63-64).
Dou aqui por encerrado este Prefácio e com
a certeza de que li um livro de um poeta
de verdade na exploração, com
criatividade, de temas eleitos
e com estilo literário
inconfundível além de enorme carga de
sensibilidade para dar e vender.
Rio de Janeiro, 27 de junho de 2018.
* Pós-Doutor em Literatura Comparada pela UFRJ. Membro efetivo da
Academia Brasileira de Filologia.
NOTA: Livro inédito
a ser editado possivelmente este
ano.
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