Rute Barros - Um amor incondicional à arte
José Pedro Araújo
Historiador, cronista, contista e romancista
Tínhamos praticamente a mesma
idade. Por uma questão de dias, ou mesmo por pressa minha, não escolhemos o
mesmo dia para comemorar o nosso aniversário. Segundo contam, foi uma esperteza
da minha parte, pois utilizei a sua rede novinha em folha primeiro que ela.
Minha mãe não tivera tempo de concluir a minha, e por isso fiz uso da sua.
Seguimos com nossas vidas muito próximas até que o Criador resolveu interromper
isso ao convidá-la para pintar paisagens celestiais.
Rute nasceu uma garotinha
diferente, não com aspecto de sertanejo como nós outros. Enquanto seus irmãos
(quase todos) possuíam tez amorenada, ela nasceu loira e com profundos e
cintilantes olhos azuis. Enquanto os demais membros da família iam se
estabelecendo no entorno da casa paterna e materna, ela escolheu, ainda muito
jovem, a distante São Paulo para fixar sua morada. E enquanto todos os manos e
manas escolhiam profissões conhecidas e praticáveis no meio em que viviam, ela
buscou o difícil caminho das artes plásticas, dificuldade para ninguém botar
defeito. Enfim, havia nascido com a têmpera dos que dão preferência aos
desafios da vida.
Sem ter frequentado uma só aula
de pintura – na minúscula cidade não havia nenhum adepto da arte do pincel e da
paleta de cores – desde cedo já fazia as suas experiência na arte abraçada por
Von Gogh. O primeiro quadro pintado por ela de que me lembro, passou anos
dependurado na parede da nossa copa: uma paisagem que ilustrava um esplendoroso
lago no qual nadavam alguns patinhos. Um detalhe: ela havia se apropriado de um
espelho retangular com moldura, pintou-lhe as bordas para parecer a terra,
desenhou árvores no seu entorno, e depois colocou os patinhos a nadar dentro
dele. Estava formado um belo e luminoso lago de águas cristalinas.
Depois não acompanhei mais a sua
evolução no metiê. Desgarramo-nos um do outro. Ela foi para São Paulo, e eu
tomei outro rumo, passei a perambular por lugares sempre diferentes, até fixar
raízes em Teresina. Certa vez, encontrei-a em São Paulo. Já morava por lá há
muitos anos, e depois de trabalhar em diversas funções, montara o seu próprio
estúdio de beleza na sua residência. Viva confortavelmente sem precisar
enfrentar a correria dos demais residentes da Pauliceia desvairada.
Pude ver, naqueles dias que
passei como seu hóspede, que não havia desistido da ideia de pintar. Nas
paredes da sua casa era possível ver inúmeras telas de sua autoria, algumas delas retratando o seu torrão natal.
Certo dia, tomei conhecimento de
que havia passado o seu estúdio para uma parente que já trabalhava com ela
havia alguns anos. E que resolvera viver exclusivamente da arte da pintura.
Àquela altura da vida, confesso que fiquei surpreso com a sua decisão, posto
saber que ela possuía clientela fiel e auferia bons dividendos com o seu
trabalho.
Tempos mais tarde, tomei
conhecimento de que, com calma e persistência, as coisas estavam indo muito
bem. Rute já participava de Vernissage em São Paulo, e em muitas outras cidades
do sudeste. Vivia agora exclusivamente da sua arte, da venda de suas telas. E
foi assim até que uma doença tolheu-lhe os passos e a empurrou de volta para a
terra natal onde viveria seus últimos instantes, fazendo o que mais gostava:
pintar obras de arte.
Artista intuitiva, sempre
disposta a experimentar novas técnicas de pintura, era de uma generosidade e
honestidade a toda a prova. Generosidade que a fazia presentear algumas pessoas
com suas obras - acredito que por notar que o admirador não possuía recursos
para fazer face aquela despesa. Honestidade por nunca procurar passar adiante
uma obra da qual ela mesma não gostasse. Como aconteceu comigo certa vez.
Estava eu escolhendo um de seus quadros para comprar, quando me deparei com uma
tela que retratava uma paisagem rural. Inebriado com a sua beleza, disse-lhe
que queria aquela pintura.
Ao que ela me respondeu: essa é
uma experiência que acho que não deu certo.
Insisti que havia gostado muito.
Ela retrucou mais uma vez dizendo que, além disso, quando da sua viagem de
volta, alguns quadros haviam se rasgado. Aquele era um deles. Continuei
insistindo, e lhe pedi que desse um jeito nele.
Vou abreviar a história e dizer
que ela ficou um pouco contrariada comigo. Não gostaria de vender algo de que
não gostava, e que ainda por cima estava com problemas. Dias depois,
entregou-me a pintura recuperada. Havia consertado o local do rasgão, e sobre
ele pintara uma minúscula carroça com seu condutor. Mal dava para notar o
conserto, ou mesmo visualizar o intruso no cenário. Rute Barros foi a
introdutora de uma profissão nova no velho Curador.
Fonte das ilustrações e do texto: Blog Folhas Avulsas
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