A
moeda pra Nossa Senhora da Graça
Pádua
Marques
Escritor
e jornalista
Da
Academia Parnaibana de Letras
Simplício Dias estava
pedindo pressa naquelas obras da alfândega da Parnaíba, já autorizada pelo rei
dom João VI há dois anos. Ele descia de casa no rumo do cais do Porto Salgado,
acompanhado do escravo Elias. Andava entusiasmado com o movimento no porto e
naquela manhã saía pra ver de perto o serviço na nova repartição. Não era lá de
deixar o sobrado e a companhia de dona Isabel Thomásia, sua mulher, dos filhos
e dos criados.
Não era de gostar e nem
poder mais andar pelo meio da rua na Parnaíba. Já temia pela vida e evitava o
de sempre, alguém pedindo isso ou aquilo, um adjutório pra um filho estudar em
São Luiz ou no Recife, um batizado ou casamento, uma vaga no serviço de sua
casa ou das repartições do governo, essas coisas. Mas naquela manhã achou de
sair depois do café e seguiu pela rua até o cais. Lá estavam os barcos e canoas,
vindos de Tutoia no Maranhão, e de Ilha Grande de Santa Isabel, desembarcando
tudo em quanto era tipo de mercadoria.
E naquele sobe e desce de
gente, de negros e embarcadiços nus da cintura pra cima dando no meio da canela,
aos gritos, o cheiro forte de aguardente, suor, farinha e de sacos úmidos de
maresia, Simplício ia se aproximando do cais e o movimento ia crescendo. Ao
verem aquele homem tão importante e tido como poderoso aquela gente ia abrindo
caminho e os de mais posses e projeção tirando os chapéus naquela reverência
costumeira.
Elias era um negro baixo,
de pouca graça, os caroços dos olhos amarelados, como quem teve dordolhos, com
pouco mais de quarenta anos. Foi presente de um compadre de São Luiz, no
Maranhão. Tinha só um braço e caxingava da perna direita. Contava que aquele
aleijão foi coisa de uma briga com um paraense por causa de serviço no cais. Andava
a pouco menos de dois passos de Simplício sempre que o patrão saía à rua. Por
dentro da calça de algodão ordinário, uma enorme faca. Mas que ninguém lhe
imaginasse sem um braço não ter destreza.
Simplício ia sendo
cumprimentado aqui e ali mais na frente cumprimentando um capitão de navio, um
dono de carga de algodão, oficiais da Marinha e gente mais de feição e bem
vestida, vinda de São Luiz e até da França entre os embarcadiços. Mas no meio
daquele mundo de gente não andavam mulheres. A rua e o cais eram de homens e para
os homens.
Simplício e Elias estavam
quase chegando à esquina do porto, pra direita, em direção à alfândega quando
de longe um negro se abaixou pra pegar alguma coisa no chão. Olhou pra um lado
e pra o outro e foi logo colocando a moeda no bolso. Mal deu tempo da moeda
esquentar na mão calosa. O coronel da vila da Parnaíba viu e apressou o passo.
Antes que o negro se perdesse no meio dos outros estava perguntando quem era e
quem era seu dono.
Sem resposta de imediato
e tomado pelo susto o negro ficou arquejando de medo. Achou ou roubou aquele
dinheiro? Achado não era roubado, calculou responder. Mas se limitou a dizer
que quando era achado por um cativo e esse cativo não tinha dono, o achado era
de Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo. E Deus estava na igreja e a igreja estava
lá no alto e era do senhor Simplício Dias da Silva, por merecimento governador
da Parnaíba!
Disse daquele jeito
submisso de quem pedia amparo. Logo, aquela moeda era do coronel. Tremendo feito
uma vara de pé de sabiá verde, o negro baixou a cabeça e foi logo entregando o
achado pra Simplício Dias, que no tempo de um piscar de olho colocou a moeda no
bolso da calça.
Elias ao ver o rosto de
seu dono coberto de suor foi logo pegando um lenço de algodão meio encardido e
o enxugou. Era sua função além da segurança pessoal ser serviçal de cuidados
extremados. Simplício ainda olhou pra um e pra outro como que mandando que
concordassem com sua medida e foi saindo devagar em direção às obras da
alfândega naquele final de novembro.
O negro estivador, que
até bem pouco tempo estava achando que tinha sorte demais na vida com a moeda,
foi saindo e se perdendo no meio dos outros. Simplício agora estava dando
ordens no meio dos operários na obra da alfândega. Um pouco longe do cheiro de
sacos de algodão, de fumo e carne seca naquele cais cheio de mercadorias
empilhadas pra embarque. Meteu a mão no bolso e se sentiu satisfeito. Olhou pra
Elias e deu um resmungo curto.
Pra que negro com
dinheiro? Pra gastar com mulher da vida e com aguardente, fumo pra mascar e
depois sair caçando confusão até ser preso e levar surra amarrado em tronco?
Deixasse aquela moeda em quem sabia e conhecia valor de dinheiro! Negro não sabia
valor de dinheiro! Negro não sabia nem rezar um Pai e Nosso e queria ficar com
dinheiro? Dinheiro era da santa, Nossa Senhora da Graça. Lá no cofre estava
seguro.
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