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DESPEDIDA DE CADA DIA
CUNHA E SILVA FILHO
A vida é um romance machadiano, e,
fosse citar um dos títulos, não hesitaria em citar Dom Casmurro (1899). Nesta
crônica, direi por quê. Quero me prevenir de conceitos livrescos ou solenemente
eruditos ou highbrow à Aldous Huxley (1894-1963) que tantas vezes nos
atrapalham e nos desviam para a ausência de pensamento próprio ou de natureza
antropofágica.
Está o mundo muito livresco e a
acumulação é gigantesca. Há teorias para tudo até para baboseiras aplaudidas
aqui e alhures e, se falo em alhures, falo do exterior, dos outros países desse
planeta ruidoso e com traços apocalípticos, de vez que, numa palavra, o que
muda é só a língua, traço, de resto, que não se modificou por causa da
conhecida Torre de Babel sobre a qual até linguistas, como Mario Pei (All about
language London: The Bodley Head, 1956, p. 9) não deixam de fazer uma alusão
ainda que não seja para corroborar a existência ou não do fato.
A alma humana (William Shakespeare,
1564-1616, e o próprio Machado de Assis ( 1839-1908), mutatis mutandis - que
não me deixem mentir - é tão igual quanto todos nós que nos chamamos, amiúde e
com alguma arrogância mal disfarçada, de humanos. Que humanos podemos denominar
uma pessoa que, por querer disputar ficar com uma cadeira num local e não o
conseguindo, mata estupidamente uma outra que desejava também a mesma cadeira?
Quanto de humano temos em nós em
ações brutais e selvagens como estas? Quanto de verdadeiramente humano somos
todos nós? Não sei. Talvez ninguém o saiba. Há uma descida de esgotamentos e
exaurimento de traços solidários na natureza humana que há tempos está nos
igualando a monstros sociais, tanto em indivíduos ditos escolarizados quanto em
pessoas sem instrução.
Vejam as duas imagens emblemáticas
do que estou tentando passar-lhe aqui, caro leitor. Uma é a conversa dos
coveiros da tragédia Hamlet (c. c,1598-1604, ou "provavelmente",
segundo Otis & Needleman, in An
outline - history of English
literature, 4 th edition. Vol. 1: To Dryden. New York: Barnes & Noble, 1965, p. 204), obra que, sem peias na língua, nos dá a justa
medida do que somos e fazemos jus ao pulvis sumus. A outra é da daquela fieira
de notícias de falecimentos, ao longo dos capítulos do romance Dom Casmurro, já
mencionado.
Ora, tanto numa imagem quanto
noutra o ponto comum, desponta uma luz sem argumentos contraditórios. Somos
aparentemente alguma coisa apenas enquanto vivemos. E entre a vida e a morte, o
fio é muito tênue, inesperado, repentino, provocador da surpresa, do
inacreditável, de um abrir e fechar dos olhos, do que não imaginávamos que
seria assim ou assado, alegre ou triste, barulhento ou silencioso.
Tanto quanto a imagem introspectiva
de que, em idade provecta, por dentro nos achamos ainda moços e prontos até
para amar uma ou mais vezes, temos a sensação de que, na vivência do presente,
do que por mais de uma vez chamei de primado do presente (embora dando a esse
sintagma um sentido diferente, o de privilegiarmos só o instante vivido em
detrimento dos dois outros tempos, o passado e o futuro, que também são
realidades ponderáveis e latentes ), temos a forte sensação de que não
morreremos.
Não há ninguém que não tenha
experimentado essa sensação de eternidade, sensação que localizo mais nos
momentos de nossas vidas mais felizes e mais inebriantes. Essa sensação de
eternidade nós é muito cara em algumas fases de nossas vidas dado que ela tem o
seu tanto de fuga momentânea ao sentimento da finitude da nossa curta e
imprevisível travessia do começo ao fim.
Contudo, a quem leu uma obra e
outra, é o próprio narrador machadiano e os coveiros de Hamlet que, volta e
meia, nos vêm à lembranças e que mostram que a vanitas vanitatis e o pulvis
sumus, ao final e ao cabo, ali estão nos alertando que a vida é breve e que os
humanos e os desumanos hão de, uma vez ou outra, ser forçados a engolir a
efemeridade de nossos vícios, oportunismos, indiferenças, preconceitos,
mesquinharias, hipocrisias, atos vis e abomináveis.
No mundo em que vivemos, sob o
signo do imediatismo, do hic et nunc, somos um tanto meio iludidos pelo
dinâmica da multiplicidade de incidentes e acidentes que nos tomam de assalto a
mente já por si mesma atolada pelos apelos ao presente utilitarista e dionisíaco.
O homem se mostra sem tempo e azo de
pensar em si mesmo, muito menos deixando o hedonismo escapar para um reflexão
metafísica em direção a um mergulho denso, profundo, visceral, voltado para
questões como a transitoriedade dos homens, dos objetos e das coisas que nos
cercam e, ao contrário, nos fazem ver, diante de nós, não mais pessoas, porém
interesses imediatos e inconfessáveis.
Vida material, amizades datadas ou
descartáveis, prazeres, nos quais campeiam as futilidades, a superficialidade,
as “mentiras convencionais de nossa civilização”, momentâneas de bons dias
insossos, beijos e abraços virtuais, muitas vezes vazios de sentidos, mero
ritualismo de protocolos sociais e handshakes do mundo do business,
gestualidades mecânicas, verdadeiras as sensaborias pós –modernas.
Não é de causar espécie quem mesmo no
último dia de despedida o ritual, sobretudo no mundo da high society, se
revista da suntuosidade nas vestimentas e nos gestos sombrios exigidos pelas
convenções sociais com indefectíveis óculos escuros de grife a prantear quem
também na vida passou ou agiu da mesma forma e com os mesmos privilégios.
Assim caminha a humanidade, deixando
atrás de si o diálogo final dos coveiros shakespearianos sobre o destino dos
homens e os capítulos machadianos assinalando fleugmaticamente a nota fúnebre
de seus personagens - perdedores ou vencedores -, tragados pelo voracidade do
tempo.
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