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A ARTE
DE TRADUZIR
Alcenor Candeira Filho
A arte de traduzir não consiste
simplesmente na substituição de palavras de um idioma por palavras de outro, mas no trabalho consciente da passagem
de um texto para outra língua, exprimindo um cunho artístico.
A tradução de um texto poético, principalmente,
requer grande habilidade artística,
exigindo do tradutor a assimilação do espírito do texto original e profundo
conhecimento dos segredos do seu do seu
aspecto formal, a fim de que possa alcançar não somente a equivalência
semântico-expressiva, mas sobretudo o equilíbrio nos efeitos sonoros.
Tratando das dificuldades que surgem no
ato/arte de traduzir obra literária, Kurt Clason -
citado em FENOMENOLOGIA DA OBRA LITERÁRIA por Maria Luíza Ramos -
exemplificou a questão com uma passagem de GRANDE SERTÃO: VEREDAS, em
que está dito que os cavaleiros passavam “feito faca, feito flexa, feito fogo”. A tradução literal
destruiria a imagem acústica presente na frase, pois desapareceria a aliteração
fricativa que, seis vezes repetida, traz conotação de velocidade. Preferiu
então o tradutor substituir as palavras do original, de modo a “criar” nova
imagem acústica dentro de mesmo campo semântico estabelecido por Guimarães
Rosa. E a frase transformou-se em “Wie die Welle, Wie der Wind, Wie der Wille”,
ou seja, “como a vaga, como o vento, como a vontade”.
A transformação efetuada no texto alemão
através da alteração de palavras do original não configura exemplo do aforismo
italiano - “traduttori, traditori” -,
significando em verdade que o tradutor penetrou com intensidade no
espírito do romancista, captando-lhe o pensamento tal como vivido
interiormente.
Reconhecendo o mérito das traduções feitas
pelo poeta parnasiano Raimundo Correia, diz Ledo Ivo: “A tradução de um poema
não é a mesma coisa que a tradução de um compêndio científico, , cujos
conceitos podem ser facilmente transportados para outro idioma. Trata-se, em
verdade, de um operação que embora parecendo transplantar o sentido fiel do
texto, só pode ser praticada com a utilização de um verdadeiro arsenal criador;
é o domínio das equivalências sonoras, de ritmo que se muda em encantação, da
imagem que que se funde simultaneamente em melodia e conceito”.
Guilherme de Almeida, numa de suas “notas”
às FLORES DAS FLORES “FLORES DO MAL” DE BAUDELAIRE, em que traduziu, ou melhor,
recriou, recompôs, restaurou em Português vinte e um poemas do poeta
francês, - reportando-se ao segundo verso (Tu fais
l’effet d’um beau vaisseau qui prend le large) da segunda estrofe do poema “Le
Beau Navire”, que reputa um dos mais belos da poesia francesa, , declara que
esse alexandrino pode ser lido, livremente,
como dois versos de seis sílabas, três de quatro ou seis de duas,
considerando que, assim sendo, “não seria honesta uma re-criação legítima desse
verso, senão conservando rigorosamente todos esses mesmos caprichosos efeitos”.
E confessa que para conseguir um trabalho satisfatório na tradução desse verso,
levou meses para atingir os mesmos efeitos rítmicos, morfológicos e rimáticos
constantes do alexandrino original. Eis o primor da re-criação de Guilherme de
Almeida: “És tal e qual a nau quando ao mar-alto larga”, que, como o original,
pode ser sentido em três formas rítmicas, que podem ser configuradas assim:
1º) - - - - - / - - - - - /
2º) - - - / - - - / - - - /
3º) - / - / -/- / - / - /
correspondendo, respectivamente,
em termos estrófico-métricos a:
1º) um dístico de versos hexassilábicos:
“És tal e qual a nau
quando ao mar-alto larga.”
2º) um terceto de versos tetrassilábicos:
“És tal e qual
a nau quando ao
mar-alto larga.”
3º) uma sextina de versos dissilábicos:
“És tal
e qual
a nau
quando ao
mar-al-
to larga.”
Vamos ver agora como uma tradução qualquer
de texto poético, alicerçada na lei do menor esforço, perde a grandeza de obra
de arte. Pra tanto, confrontemos o seguinte texto de IRACEMA, de José de
Alencar, com a respectiva tradução feita por Maria Torres Frias:
“Verdes mares que
brilhais como líquida
esmeralda aos raios do sol
nascente, perlogando
as alvas praias ensombradas
de coqueiros.”
Na tradução:
“ Verdes mares que
brillan como líquida
esmeralda a los rayos
del sol nasciente, prolongando
as alvas praias
ensombrecidas por los cocoterros.”(1)
A ideia do original foi efetivamente
mantida na tradução. Mas traduzir obra literária exige mais que a simples
assimilação da mensagem do original. O leitor do período traduzido jamais
sentirá a sublimidade, a melodia, a beleza poética da produção do escritor
cearense. Poesia é a sublime forma de beleza, é o conjunto de palavras
exprimindo musicalidade. O ritmo melódico, no texto de José de Alencar, constitui-lhe toda a grandeza. E
esse ritmo não foi atingido no texto-tradução. No texto alencarino estão
implícitos cinco heptassílabos, em perfeita harmonia, com apoio rítmico
obedecendo ao esquema
- - / - - - /
enquanto no texto em espanhol se
encontram, respectivamente, um hexassílabo, um heptassílabo, dois octossílabos
e um decassílabo, numa combinação tão desarmoniosa que nos faz lembrar as
palavras de Voltaire: “Infelizes os que fazem traduções literais, que
traduzindo cada palavra enervam o sentido! É nessa hora que se pode dizer que a
letra mata e o espírito vivifica.”
(1) Vi o pararelo, mas sem os comentários que
farei em frente, em TEORIA LITERÁRIA, de
Hênio Tavares, Belo Horizonte, Editora
Itatiaia Ltda. 5ª edição, 1974, p. 22.
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