quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Anos 70: por que essa lâmina nas palavras?





Anos 70: por que essa lâmina nas palavras?

Daniel C. B. Ciarlini
Ensaísta, crítico literário e professor

            Do esforço de José Pereira Bezerra em interpretar a complexidade dos anos de 1970 no Piauí, sobretudo as lutas empreendidas e os produtos simbólicos produzidos, surgiu Anos 70: por que essa lâmina nas palavras? (1993). A meu ver, obra fundamental para acessar pormenores da produção cultural que ganhou contornos teóricos sob o signo da “antiestética marginal”. Época de lutas, de experimentações, de desabafos e de muita audácia – pequenas expressões (de grandes significados) que ajudam a compreender o ímpeto dos jovens que fizeram época em resistência ao autoritarismo ditatorial brasileiro, lançando nas lides da literatura o necessário e nunca vencido impulso do engajamento, olhar distanciado da alienação.

Uma resposta já distante no tempo, mas que, como nunca, deve ser remexida, chacoalhada, a fim de inspirar as gerações do século XXI que precisam de um choque, de um símbolo indicativo. Sim, as lições, as resistências ou mesmo as virulências deixadas ali pelas mãos furiosas da geração mimeógrafo devem ser recompostas, devem inspirar, em inescapável auxílio e obstinação a esses duros e obscuros tempos que retomam pouco a pouco, de maneira quase cíclica, a tendenciosa desinformação.

Essencialmente, é com os trabalhos de poetas e contistas que se ocupa o estudo de José Bezerra, concentrando olhares aos dois polos do estado: Teresina e Parnaíba. E desta destaco o providencial nome de Alcenor Candeira Filho, artífice das letras criativas e ensaísticas que nos últimos dez anos me tem inspirado respeito e admiração. Referencio ainda Elmar Carvalho, Paulo Machado, Menezes y Morais, Chico Castro e Rubervam du Nascimento, expoentes do “fenômeno” da poesia marginal, como definira com grande acerto o autor do livro.

Tenho discutido em rodas acadêmicas e entre escritores a importância desse trabalho que, penso eu, devia ser ampliado e reeditado, síntese que é de um olhar dos mais apurados de quem que não só interpretou uma geração, como a vivenciou – daí a singularidade do estudo, daí a profundidade e o testemunho que se desenham nas páginas. O autor, no mais significativo entendimento da poética marginal piauiense, deixa entrever a multiplicidade da década, que não pode ser compreendida sem o imprescindível auxílio da história, da linguística e da análise sociológica, esta que nos permite acessar os meandros da criação e as inter-relações entre produtores, não produtores e seus contextos discursivos.

Mas nada vence o casamento precioso de dois olhares, o dedutivo e o indutivo, responsáveis pela vociferação das fontes consultadas (livros mimeografados autofinanciados e periódicos alternativos – listagem vestigial de pesquisa), em suas mais urgentes especificidades. Acredito ser o momento de a academia ou de instituições de salvaguarda do Piauí buscarem reunir esse material a fim de facilitarem o acesso, a pesquisa e a sua consequente análise, não apenas no campo da história, como se tem feito nos últimos anos com grande propriedade e a duras penas, como também em áreas congêneres, a citar os estudos de literatura, reverberando para o porvir o grito rebelde e verdadeiro dos jovens de 1970, cuja herança nos é não apenas importante, mas um caminho.   

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