quarta-feira, 4 de março de 2020

BEM-TE-VIS E URUBUS

Fonte: Google
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BEM-TE-VIS E URUBUS

Elmar Carvalho

Em Parnaíba, de manhã bem cedo, do apartamento, ouvi as flautas alegres dos bem-te-vis, em que as aves parecem conversar musicalmente ente si. Embora não estejam entre os mais prestigiados pássaros canoros, contudo, gosto do canto deles, pela alegria moleca que parecem transmitir. Com suas plumas de vivo colorido, parecem estar vestidos a caráter.

Sua cantiga tem timbre, ritmo e arranjos diferentes, embora sutis e quase imperceptíveis a quem os ouve desatentamente. Conta a lenda que a onomatopeia da cantiga dessas aves nos serve de advertência para que tenhamos cuidado com as nossas ações e omissões, pois alguém ou Deus, em sua onisciência, sempre nos poderá dizer: bem te vi!... A algazarra esfuziante dos bem-te-vis me fez lembrar que ontem, ao entardecer, da janela do banheiro, contemplei a coreografia majestosa dos urubus, em sua planação circular.

A dança ficava exatamente no meu campo de visão da lua em quarto-crescente. Por vezes, em seus volteios, algum deles ficava em conjunção entre mim e a lua, o que mais tornava encantadora a revoada das aves negras se recortando contra o céu. Lembrei-me de minha mãe, porque foi ela quem primeiro me chamou a atenção para a beleza do voo solene, soberbo, dos urubus.

Também me ensinou a admirar a beleza das flores e das árvores e o encantamento das nuvens, explicando, em minha infância, que elas formavam diferentes desenhos, como um rebanho de ovelhas de imaculadas lãs brancas, ou uma rocha gigantesca, ou enormes paquidermes, embalados ao sabor da brisa, que depois tomavam novas formas, através dos cinzéis do vento. Minha mãe, ao cantarolar as belas letras de lindas melodias, também me ensinou, desde criança, a apreciar a boa música.

Talvez por isso tenha surgido a minha repulsa pelo barulho ensurdecedor das músicas e pelas apelativas e de muito mau-gosto letras dos tristes dias de hoje. Um dia, quando degustava uma cerveja com o meu falecido cunhado Zé Henrique, no bar do Zé Lira, no céu límpido e azulado de Campo Maior, mostrei-lhe a beleza da dança planada e circulatória dos urubus, e lhe falei desses garis alados, que não sujam o mundo; que, ao contrário, limpam o mundo da sujeira dos outros, da sujeira que os outros fazem.

Falei-lhe do seu caminhar gingado, malandro, como diz a letra da música popular; da saúde deles, pois, comendo o que comem, nunca se ouviu falar de que sofressem de alguma infecção ou indigestão. O meu cunhado passou a admirar essas aves de rapina, e certo dia, na casa de meus pais, talvez na premonição de sua morte precoce, e acredito que por um blefe brincalhão, disse que gostaria de voltar como um urubu.

Minha mãe retrucou-lhe, e disse que gostaria de ser um bem-te-vi, bela e alegre ave. O saudoso Zé Henrique preferiu a beleza das acrobacias e coreografias aéreas dos urubus e a utilidade instintiva de suas faxinas. Minha mãe, que, em suas poucas letras, ensinou-me a ver a beleza das coisas e da música, preferiu a magia das cores e o canto dos pândegos bem-te-vis.

24 de abril de 2010   

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