sábado, 25 de julho de 2020

Ruas de Campo Maior

Fonte: blog Bitorocara/Google


Ruas de Campo Maior

Celson Chaves
Professor e historiador

                             Fonte do texto e das fotos: Portal de Olho

As ruas de Campo Maior no século XIX eram poucas. Elas interligavam-se a becos e vielas, que partiam em direção à “baixa” do Cariri e Califórnia (1876), principais subúrbios da vila. Lá residia parte dos escravos. A sede da vila também possuía a rua e a igreja dos Negros. A taberna da prostituta Quitéria ficava na via mais afastada. As famílias abastadas moravam no Largo da Matriz, onde fluía parte das pessoas.


Beco do “Paixão”, um dos quatro becos interligados à Avenida Vicente Pacheco. Mesmo vago, o Beco do “Paixão” é citado na literatura de memória por alguns autores. O historiador Marcus Paixão (2016) defende a tese de que o beco recebeu esta denominação popular em virtude de um parente seu, um cearense caixeiro viajante de sobrenome “Alves Paixão” que se hospedara numa das casas do referido beco, nos tempos em que os cearenses vinham à cavalos (tropas de mulas) negociar nas vilas do Piauí e do Maranhão. Campo Maior, era um dos entrepostos comerciais entre o Ceará e Maranhão, parada obrigatória para muitos comerciantes ambulantes. Apesar do nome ser antigo e reconhecido pela força da tradição, o Beco do “Paixão” nunca foi reconhecido em Lei pela Câmara e continua no mapa da cidade como uma das muitas ruas sem nome em Campo Maior.



As vias da vila eram um encanto, mesmo desprovida de qualquer saneamento. Os escravos circulavam livremente, os comboios das mulas dos tropeiros, carros de boi, jumentos e cavalos tumultuavam o trânsito durante o dia. À noite, as ruas ficavam desertas. A escuridão reinava. Os poucos lampiões ficavam acesos até o horário estabelecido. Eles iluminavam apenas o Largo ou Praça da Matriz. A Cadeia Velha tinha seus próprios lampiões. Extrapolava-se o horário do funcionamento dos lampiões nos dias de festas cívicas e nos festejos de Santo Antônio. “Em noites de lua” apagavam-se para economizar o azeite.


A vida fluía lentamente na vila. O primeiro Mercado Público situava-se no Largo da Palma. A Câmara e o Tribunal do Júri na rua do Nincho, instalados no charmoso sobradinho, cedido gratuitamente pelo coronel e vereador Jacob Manoel de Almendra, o homem mais rico da povoação. As vias surgiam espontaneamente. Muitas tinham nomes sugestivos e não eram reconhecidas em lei pelo poder público. Não havia essa preocupação.

A rua das Flores cruzava com a rua do Sol. A rua do Norte atravessava a rua das Quintas. As linhas sinuosas da rua Bandolim desaguavam na rua da Lagoa (rua dos Negros). A travessa do Curral da Câmara, do Rosário… Na rua da Botica, residia um dos curandeiros da vila: João Joaquim Mendes da Rocha ou João Antônio Pacheco, avô do senador Sigefredo Pacheco, nosso maior expoente na política até hoje. Mesmo a vila sendo pequena havia segregação urbana, como a rua dos Artistas, onde residiam os sapateiros, pedreiros, alfaiates, marceneiros…

Rua da Lagoa (rua dos Negros), atual Maranhão. O escritor Marcos Vasconcelos fez um amplo roteiro histórico-sentimental da rua da Lagoa no livro Raízes de Pedra (2006).

Os antigos nomes das ruas de Campo Maior do período Imperial, batizadas pelos populares, começavam a serem oficializadas pela Câmara com outros nomes, de personalidade e acontecimentos que marcaram o Brasil no século XIX: a Independência, Guerra do Paraguai e Proclamação da República. Assim trocam-se os nomes da rua do Sol, do Norte, das Flores, do Negros, da Botica, …. por José Bonifácio, General Câmara, Riachuelo, Benjamim Constante, Quintino Bocaiuva, 15 de Novembro…

O sentimento bairrista também florescia no coração e na ideologia política da época. Com isso, surgem as primeiras ruas batizadas com nomes de campo-maiorenses: rua coronel Antônio Maria Eulálio, major Honório Bona, padre Fábio Costa…


 
Rua Santo Antônio: famosa Rua dos Cabarés no século XX.

 A rua Santo Antônio poderia ter sido mais uma simples via pública de uma cidadezinha qualquer do Nordeste, de pessoas pacatas e  ordeiras, caso não sofresse a função urbana de logradouro residencial para a maior zona de prostituição do Piauí no século XX, instada em casario imperial. Centralizada e bem localizada, a rua desenvolveu o comércio do sexo entre o velho e o novo centro comercial da cidade. A prostituição na rua Santo Antônio, imortalizada no poema épico de Elmar Carvalho, prosperou graças ao bom momento econômico de Campo Maior, oriundo da cera de carnaúba.



A rua Senador José Eusébio era a rua “rua dos fotógrafos” ao concentrar, entre o trecho da praça Rui Barbosa à rua Siqueira Campos, os ateliês dos fotógrafos Agenor Azevedo, Joaquim Gomes e o Braga Primo (para destacar os fotógrafos mais famosos).

Rua coronel Antônio Maria Eulálio (1913) [antiga Barão de Uruçuí (1898)]. A foto registra a carreta em comemoração ao Dia do Motorista (1962). Fotógrafo Raimundo Holanda.

A literatura tem mantido um diálogo com a cidade através de obras que revelam aspectos de algumas ruas em Campo Maior. Um roteiro histórico-sentimental-literário. O poeta Elmar Carvalho imortalizou a rua Santo Antônio, mesclando a mitologia greco-romana, a astronomia e a sociologia dos cabarés. Por sua vez, o escritor Marcos Vasconcelos em seu livro Raízes de Pedra fala sobre a degradação ambiental da Lagoa que deu nome a rua.

As ruas da periferia, tão decantadas em versos e prosas pelos escritores, quanto a assediada praça Bona Primo, local de discursos e narrativas, é um exemplo da formidável criatividade entre autores e suas origens. O cordelista altoense, Zé da Prata de visita na casa do amigo Odilon, saiu à noite para fazer necessidades fisiológicas, quando retornou viu que os calçados estavam cagados. E assim emendou uma quadrinha:

“Vesti o meu terno branco,

Calcei sapato marrom

Vim cantar na Rua da Merda

Na casa do Odilon”

(Carlos Dias, 2008)

Existe outra versão do poeta altoense, exposto na pesquisa de Carlos Dias, sobre esse episódio:

“Terno de brim H.J

Sapato de cor marrom.

Estou indo a uma festa             

E uma samba muito bom,

Ali no Canto da Bosta

Na casa do Odilon”

(Carlos Dias, 2008)

 Cada escritor traça algum aspecto da cidade. Joaquim Oliveira releva sua primeira impressão assim que chegou a Campo Maior, quando menino matuto do interior: “a cidade era uma rua de terra com lama e poças d´agua ladeada por casas e mais coladas umas às outras, até finar-se em tabuleiros e carnaubais sem fim. Minha primeira impressão de cidade era apenas uma ponta de rua de Campo Maior, naqueles longe tempos de não sei quando (Joaquim Pereira de Oliveira,1997)”.

O campo-maiorense desconhece o nome que homenageia sua rua. Poucos sabem sobre a origem do bairro em que nasceram e cresceram. Aquela pracinha da infância abandonada há anos pela prefeitura… O nosso percurso diário são marcados por significados, subjetividades e afetividades. Porém, muitos não conseguem enxergar por está imersos na rotina sufocante, que nos consome, naturaliza gestos e estreita a percepção. A relação com a cidade pode revelar muito sobre nós. As ruas são locais de memória e sociabilidade e não são apenas concreto, pedras, traçados e trajetos.

Referências Bibliográficas

Elmar Carvalho. Rosa dos ventos Gerais. Teresina-PI: SEGRAJUS- Serviços Gráficos do Tribunal de Justiça do Piauí, 2002.

OLIVEIRA, Joaquim Pereira de. Estrela no Chão: Memórias. Brasília-DF: André Quicé Editor, 1997.

DIAS, Carlos Alberto. Prata da Lei. Altos-PI: edição do autor.

VASCONCELOS, Marcos. Raízes de Pedra. Fortaleza – CE: Premius, 2006.

CELSON, Chaves. A Urbanização em Campo Maior (1930-1970). Campo Maior: edição do autor, 2007.

CELSON, Chaves. Rua Santo Antônio: a prostituição feminina em Campo Maior (1940-1975). Campo Maior: edição do autor, 2007.

PAIXÃO, Marcus. Ensaios do Norte. Campo Maior: edição do autor, 2016.

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