Misticismo e Raça na Poesia de Marciano Gualberto
Em tudo que fizerem, trabalhem de bom
ânimo, como se fosse para o Senhor, e não para os homens. Colossenses 3:23.
Elmar Carvalho
No contato inicial que tive com o escritor e poeta Marciano Gualberto
para a elaboração deste prefácio e da leitura de suas palavras na Nota
preambular, tive um insight sobre o conteúdo deste texto, um espécie de
intuição ou estalo à Vieira. Poderia tê-lo escrito de imediato. Mas preferi
cumprir o dever de ler todos os poemas do livro para constatar se a minha
premonição seria confirmada. Devo confessar que, em matéria de apresentação,
que sempre requer estudo e pesquisa, foi a primeira vez que isso me ocorreu.
Constatei que o autor canta o seu misticismo de forma clara,
sem nenhum hermetismo, como ocorre em muitos dos versos de William Blake. A sua
religiosidade parece conter um sincretismo de várias manifestações ritualísticas,
um certo ecumenismo de quem não cultiva preconceito religioso. E nesse seu
misticismo, de forma viril, faz a afirmação de sua raça, com orgulho e ênfase.
Os seus anjos não são os anjos brancos, intocáveis, diáfanos, quase inefáveis
em sua evanescência, de Rainer Maria Rilke, quando este solta seu brado sublime
de angústia e solidão:
“Quem, se eu gritasse, entre as
legiões dos Anjos
me ouviria? E mesmo que um deles me
tomasse
inesperadamente em meu coração,
aniquilar-me-ia
sua existência demasiado forte (...)”
Os seus anjos não são angelicais, alfenins/querubins de
doçura e beatitude. Podem ser justiceiros de asas negras:
“Samael, anjo demiurgo, que de tanto
ouvir a si
Próprio, criou seu próprio mundo
Gloria a ti, Samael, nas alturas,
pelo apoio
Que me deu, no escombro de mim mesmo
Acompanhado sou de vós, e de toda a
legião
Dos 200 caídos que lhe seguem”
Nos seus versos, além do simbolismo maçônico, da cabala e do
cristianismo, ressoa de forma muito forte os tambores dos terreiros, dos
candomblés, da umbanda, das encruzilhadas, dos salões de macumba, como retumbaram
em os Tambores de São Luís, de Josué Montello, ou como percutiram na noite da
Bahia os atabaques, em vários romances de Jorge Amado.
A sua poética repudia os preconceitos, sobretudo os
religiosos, o racismo e as idiotices dos supremacistas brancos. Portanto, nos
seus versos não perpassam as brancuras liriais, as carnes brancas das monjas
ardentes e ciliciadas do imenso poeta negro Cruz e Sousa. Ele faz a afirmação e
mesmo a exaltação de sua raça, mas sem condenar nenhuma raça. Vejamos esse
cotejo, para comprovação do que digo:
“Maravilhoso como sou:
Preto, guerreiro, sonhador
E acima de tudo: AFRONTA.”
Em vários de seus haicais, que não têm o rigor excessivo ou
os espartilhos dos orientais, condena o colonialismo político e cultural. Em
versos simples, sem desnecessárias firulas e malabarismos, enaltece os
ancestrais e pede que os elogios e reconhecimentos não sejam póstumos, como sói
acontecer. Nesse aspecto está em boa companhia, ao seguir as pegadas de Nelson
Cavaquinho:
“Me dê as flores em vida
O carinho, a mão amiga,
Para aliviar meus ais.
Depois que eu me chamar saudade
Não preciso de vaidade
Quero preces e nada mais”
e as do poeta Manuel Bandeira, que consultado sobre se achava
correto lhe erigem uma estátua em vida, respondeu que não só a desejava, como
até se recusava a morrer enquanto o monumento não lhe fosse erguido. O nosso
poeta Gualberto, não sendo um fariseu, um hipócrita, disse em seu versejar:
“Não diga que me ama!
Não elogiem meus livros
Depois de minha morte...”
Nos seus versos, bem elaborados em sua exemplar concisão, por
vezes destila ironias e até mesmo constrói verdadeiros epigramas, como estes:
“Enfim, tu chegou cabelo
Grisalho, prova, que
Estou mas sábio e morrendo.”
Ironias sutis, às vezes, bem-humoradas, um tanto fesceninas
(em raros casos), quiçá, autobiográficas:
“Quando criança, não
Tive aqueles balões, mas
Meus pensamentos voavam.”
................................
“Somos bem mais
Muito, muito mais
Que uma greta ingrata.”
Em sua caminhada poética vislumbra anjos de asas pretas,
devassa portais secretos, desvenda enigmas e segredos, como os do livro da capa
preta de Cipriano e os da necromancia, além de outros mistérios templários e
egípcios. Seja como for, o certo é que os seus anjos não são alvinitentes como
os de Rilke e nem como as monjas do “cisne negro”, de carnes brancas, lindas,
tentadoras. Mais se assemelham, creio, a essas figuras caricatas e emblemáticas
de Rimbaud: “Mercador, tu és negro; magistrado, tu és negro; general, tu és
negro; imperador, velho prurido, tu és negro; tu bebeste um licor não selado,
da fábrica de Satã.”
Este livro, com as sacadas do poeta, com os seus insights,
com o borbulhar de sua inspiração, merece ser lido e refletido com atenção. E
ser relido. Dizem que poucos livros merecem uma releitura. E dizem que, se não
merecem uma releitura, sequer merecem ser lidos.
Leiamos e releiamos, pois, esta exuberante flor de lótus do jardim poético gualbertiano.
Belo prefácio e belos versos do poeta Marciano! Inteligente e simples! Parabéns!
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