terça-feira, 18 de maio de 2021

Misticismo e Raça na Poesia de Marciano Gualberto

Caros leitores, reverbero através das luzes e sombras de minhas humildes palavras, uma prévia de meu segundo livro prefaciado pelo meu querido amigo e irmão Dr. Elmar Carvalho. Marciano Gualberto


Misticismo e Raça na Poesia de Marciano Gualberto
 

Em tudo que fizerem, trabalhem de bom ânimo, como se fosse para o Senhor, e não para os homens. Colossenses 3:23.

 

Elmar Carvalho

 

No contato inicial que tive com o escritor e poeta Marciano Gualberto para a elaboração deste prefácio e da leitura de suas palavras na Nota preambular, tive um insight sobre o conteúdo deste texto, um espécie de intuição ou estalo à Vieira. Poderia tê-lo escrito de imediato. Mas preferi cumprir o dever de ler todos os poemas do livro para constatar se a minha premonição seria confirmada. Devo confessar que, em matéria de apresentação, que sempre requer estudo e pesquisa, foi a primeira vez que isso me ocorreu.

Constatei que o autor canta o seu misticismo de forma clara, sem nenhum hermetismo, como ocorre em muitos dos versos de William Blake. A sua religiosidade parece conter um sincretismo de várias manifestações ritualísticas, um certo ecumenismo de quem não cultiva preconceito religioso. E nesse seu misticismo, de forma viril, faz a afirmação de sua raça, com orgulho e ênfase. Os seus anjos não são os anjos brancos, intocáveis, diáfanos, quase inefáveis em sua evanescência, de Rainer Maria Rilke, quando este solta seu brado sublime de angústia e solidão:  

“Quem, se eu gritasse, entre as legiões dos Anjos

me ouviria? E mesmo que um deles me tomasse

inesperadamente em meu coração, aniquilar-me-ia

sua existência demasiado forte (...)”

 

Os seus anjos não são angelicais, alfenins/querubins de doçura e beatitude. Podem ser justiceiros de asas negras:

“Samael, anjo demiurgo, que de tanto ouvir a si

Próprio, criou seu próprio mundo

Gloria a ti, Samael, nas alturas, pelo apoio

Que me deu, no escombro de mim mesmo

Acompanhado sou de vós, e de toda a legião

Dos 200 caídos que lhe seguem”

Nos seus versos, além do simbolismo maçônico, da cabala e do cristianismo, ressoa de forma muito forte os tambores dos terreiros, dos candomblés, da umbanda, das encruzilhadas, dos salões de macumba, como retumbaram em os Tambores de São Luís, de Josué Montello, ou como percutiram na noite da Bahia os atabaques, em vários romances de Jorge Amado.

A sua poética repudia os preconceitos, sobretudo os religiosos, o racismo e as idiotices dos supremacistas brancos. Portanto, nos seus versos não perpassam as brancuras liriais, as carnes brancas das monjas ardentes e ciliciadas do imenso poeta negro Cruz e Sousa. Ele faz a afirmação e mesmo a exaltação de sua raça, mas sem condenar nenhuma raça. Vejamos esse cotejo, para comprovação do que digo:

“Maravilhoso como sou:

Preto, guerreiro, sonhador

E acima de tudo: AFRONTA.”

Em vários de seus haicais, que não têm o rigor excessivo ou os espartilhos dos orientais, condena o colonialismo político e cultural. Em versos simples, sem desnecessárias firulas e malabarismos, enaltece os ancestrais e pede que os elogios e reconhecimentos não sejam póstumos, como sói acontecer. Nesse aspecto está em boa companhia, ao seguir as pegadas de Nelson Cavaquinho:  

“Me dê as flores em vida

O carinho, a mão amiga,

Para aliviar meus ais.

Depois que eu me chamar saudade

Não preciso de vaidade

Quero preces e nada mais”

e as do poeta Manuel Bandeira, que consultado sobre se achava correto lhe erigem uma estátua em vida, respondeu que não só a desejava, como até se recusava a morrer enquanto o monumento não lhe fosse erguido. O nosso poeta Gualberto, não sendo um fariseu, um hipócrita, disse em seu versejar:

“Não diga que me ama!

Não elogiem meus livros

Depois de minha morte...”

Nos seus versos, bem elaborados em sua exemplar concisão, por vezes destila ironias e até mesmo constrói verdadeiros epigramas, como estes:

“Enfim, tu chegou cabelo

Grisalho, prova, que

Estou mas sábio e morrendo.”

Ironias sutis, às vezes, bem-humoradas, um tanto fesceninas (em raros casos), quiçá, autobiográficas:

“Quando criança, não

Tive aqueles balões, mas

            Meus pensamentos voavam.”

................................

“Somos bem mais

Muito, muito mais

Que uma greta ingrata.”

Em sua caminhada poética vislumbra anjos de asas pretas, devassa portais secretos, desvenda enigmas e segredos, como os do livro da capa preta de Cipriano e os da necromancia, além de outros mistérios templários e egípcios. Seja como for, o certo é que os seus anjos não são alvinitentes como os de Rilke e nem como as monjas do “cisne negro”, de carnes brancas, lindas, tentadoras. Mais se assemelham, creio, a essas figuras caricatas e emblemáticas de Rimbaud: “Mercador, tu és negro; magistrado, tu és negro; general, tu és negro; imperador, velho prurido, tu és negro; tu bebeste um licor não selado, da fábrica de Satã.”

Este livro, com as sacadas do poeta, com os seus insights, com o borbulhar de sua inspiração, merece ser lido e refletido com atenção. E ser relido. Dizem que poucos livros merecem uma releitura. E dizem que, se não merecem uma releitura, sequer merecem ser lidos.

Leiamos e releiamos, pois, esta exuberante flor de lótus do jardim poético gualbertiano.      

Um comentário:

  1. Belo prefácio e belos versos do poeta Marciano! Inteligente e simples! Parabéns!

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