Domingos
Caripina, o carvoeiro que queria conhecer o trem
Pádua Marques
Contista, cronista e romancista
A cozinheira veio lá de
dentro com duas cédulas dobradas e entregou ao homem muito suado, de estatura
baixa, de sola das mãos escuras, barba por fazer e com o relho dependurado no
ombro. Domingos do Caripina ao receber o pagamento pelos dois sacos de carvão
foi logo puxando conversa naquela hora da manhã em frente da casa de seu Pedro
Machado, na rua Grande. Pediu um pouco de água pra beber, lambeu os dedos antes
de pegar e contar o dinheiro e depois foi saindo e tangendo os animais no rumo
do porto Salgado.
Fazia aquele serviço de
descer pra Parnaíba uma vez por semana, às segundas-feiras bem de manhãzinha,
com os dois jumentos e a carga de carvão. Ia agora gritando e açoitando os
animais, olhando pra os lados, chamando venda. Aquele primeiro freguês do dia
já estava ganho. Mas tinham outras casas de gente rica e que compravam sua
produção toda semana. Seu Corinto Trindade, Poncion Rodrigues, doutor Ormeu,
Cândido Athaide, os Moraes Correia, doutor João Silva, seu Ranulfo e outros que
as cozinheiras não diziam o nome do patrão.
Domingos do Caripina acordava
de madrugada ainda turvo e no raiar do dia já estava com o pé na estrada no
rumo de Parnaíba, trotando os animais por cima de garranchos e de tocos
procurando ganhar dinheiro com o negócio de vender carvão. Danado de falador,
bom de conversa na porta dos fregueses, sabia de um tudo sobre as famílias
importantes. Quem tinha terras, carro, gado, dinheiro no banco. Mas também
sabia quem estava quebrado, devendo agiotas, os que tinham filhos. Ele tinha
oito, cinco meninos e três meninas, uns brancos, outros rajados e até fogoiós.
No final do dia todo o
carvão vendido, corria ainda no mercado e comprava alguma coisa de carne ou
peixe, um miúdo de boi ou de porco pra botar na panela e mais que ligeiro
voltava pra o seu canto no distante Caripina onde a mulher estava esperando.
Domingos era danado de falador da vida alheia e vez por outra até gabola e
intrometido. Mas todo mundo gostava dele. Das lorotas que sabia contar, das
passagens de sua vida. E foi vendo que em muitas das casas de seus fregueses
tinha jardins. E passou a oferecer estume de jumento, do bom, barato. Podia
trazer na segunda-feira em cima das cangalhas.
E assim foi fazendo fama
de vendedor de carvão e de estrume na Parnaíba. Tanto que já era esperado pelas
empregadas com a lata na calçada e o dinheiro trocado. E de repente lá vinha ele com seu caminhado
ligeiro, estalando o relho por cima da carga e segurando um facão, a camisa
aberta e o chapéu velho de palha enfiado na cabeça. Sobre os filhos, dizia
serem muitos, cinco meninos e três meninas. Domingos Filho, Raimundo, Celeste,
Cândida, Sebastião, Euclides, Francisca e Antonio Luís.
Eram seus anjos, a
alegria de sua vida, miúdos, que podiam andar até mal vestidos, sem meios de um
dia conhecerem a Parnaíba, ver a praça, o movimento do trem vindo e indo pra
Piracuruca. Mas eram o que tinha de mais precioso desde quando se amigou com a
mãe deles, Raimunda. Mas era o pai de levar, quando podia, alguma coisa pra
cada um, uma boneca de pano, um corte de tecido pra fazer vestido ou um calção,
um tamanco novo, um remédio. Sabia que nunca iria poder botar eles na escola.
Além de muito longe, quem havera de tomar conta deles na Parnaíba, botando
sentido, dando a comida na hora certa, livrando dos perigos, até de serem pegos
por algum carro? Não, dos filhos não largava!
E era sua alegria ver
todos eles quando voltava da Parnaíba. Ver todos de barriguinha cheia,
sossegados, todos os dias, cada um na sua rede. A mulher ajudava dentro de casa
e no corte da lenha. E os dois maiores, Domingos Filho e Raimundo já eram no
tope de pegar no facão e ajuntar a madeira, acender a caieira, botar sentido
nalgum animal, tanger e até matar alguma cobra naquele meio de mato. Era
serviço duro aquele seu de fazedor de carvão. Cortava a lenha, botava fogo nas
caieiras e na segunda-feira descia pra venda.
Um dia, por volta de
dezembro, perto do Natal, depois de vendido todo o carvão, deu vontade de
entrar na igreja da matriz, mas ficou encabulado. Escolheu uma hora em que não
tivesse gente. A igreja rica, toda de altar com suas imagens muito ricas. Só
podia ter muito ouro naquelas paredes. Era por isso que só os ricos podiam
entrar nela. Ficou encabulado. Aquilo não era lugar pra ele. E seguindo foi no
rumo da estação de trens no Macacal. Queria conhecer. Nunca tinha visto, mas
haviam lhe falado que era coisa bonita.
Viu e ficou com medo. Um
medo tal e qual nunca tinha sentido na vida. Um medo muito maior do que ver
alma em vereda ou na esquina do cemitério de perto da Santa Casa na Parnaíba. Medo
muito maior do que ser ameaçado de ser preso porque usasse uma faca ou passasse
por cima da calçada de gente de dentro da rua. Coisa de obrar nas calças feito
menino quando apanha depois de fazer malinação.
Chegou perto do meio do
dia nas proximidades da estação. De repente ouviu um barulho vindo e chiando e
chiando por detrás do muro. Domingos foi se chegando, se chegando. Deixou os
animais lá embaixo das árvores. E viu o trem, aquele bicho de ferro, todo
preto, uma coisa até difícil de contar um dia em casa pra os filhos e a mulher
de como seria. O bicho soltava fumaça feito o cão! E assim de repente o trem
soltou um apito. O carvoeiro quis correr. Mas não podia fazer feio na terra
alheia. Aguentou firme em cima dos tamancos. Passado o susto, voltou pra seu
Caripina de peito lavado.
Vou copiar e mostrar ao meu amigo Raimundo Faleno. O seu pai possuía grande parte das terras no lugar Olho D'agua, zona rural de Parnaíba, mas, mesmo assim, semanalmente ele e seus irmãos vingam vender carvão em Parnaíba. O notável contista Pádua Marques consegue narrar fatos possíveis de terem acontecidos com personagens que não reais, mas podem ter sido, pois, no conto em tela, o lugar Carpina é uma comunidade adjacente ao Olho D'agua, onde, dois amigos meus viram um disco voador baixar próximo ao Rio Portinho.
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