terça-feira, 29 de março de 2022

ANTÔNIO CABELIM: CORAÇÃO E BRAÇOS DO BAIXÃO DO UMBUZEIRO (PI)





ANTÔNIO CABELIM: CORAÇÃO E BRAÇOS DO BAIXÃO DO UMBUZEIRO (PI)


Por Eduardo Pontin 

Fotos: Francisca Sousa





Quando perguntado em que Era havia nascido, Antônio Raimundo Torres, popularmente conhecido por Antóim Cabelim, costumava responder: “Na Era da fome”. Uma maneira de dizer que havia nascido em 1932, ano das mais severas secas do Piauí, retratado inclusive no conto “32” do grande escritor picoense Fontes Ibiapina. Cabelim foi homem pra tudo. Não foi rei porque pelas bandas do interior do Piauí todos são senhor de seu próprio destino, mas foi muito mais que rei. Foi braços, mãos, mente e coração do povoado que ainda hoje é conhecido pelo poético nome de Baixão do Umbuzeiro, município de Wall Ferraz, antiga localidade chamada de Ilha Estadual, no Centro-Sul do Piauí.


Antônio Cabelim nasceu no povoado Riacho, que hoje faz parte do município de Floresta do Piauí. Foi o primeiro de muitos filhos de José Raimundo Torres e Izabel Vicença da Conceição, a Belinha. Para escapar da fome, com pouco tempo o casal se mudou com Antônio Cabelim ainda criança mais outros filhos para o povoado Cajazeiras, município de Picos. De lá, conforme a família ia aumentando, a peregrinação continuava para outros povoados da região, como Baixi, em Paquetá.



O apelido Cabelim vem de seu avô, o cearense Raimundo José Torres, o primeiro da família a bater em retirada rumo ao Piauí em busca de terras onde a chuva fosse mais clemente. Com cabelo ralinho, não tardou para o povo o sair chamando Raimundo Cabelim. Com o povo é assim, o defeito mais vistoso se transforma no apelido da pessoa. O apelido “Cabelim”, Raimundo passou para o filho, que passou para o neto que já passou para o seu bisneto.

Ainda jovem, Antônio Cabelim encontrou o amor de sua vida, Dona Pequena, e botou na telha que ia se casar, mesmo sem um tostão furado. Peitou família, e, assim como na quadra da Lezeira, dança mais popular da região, disse a tua mulher: “Minina, tu qué, eu quero/Tua família num qué/ Ti assustenta a tchia palavra/Se arrebenta quem quisé”.



E assim foi feito! O casal morou 4 meses no povoado Cajazeiras e 8 anos no povoado Carnaúba, mas quando Cabelim deu pra conhecer o Baixão do Umbuzeiro, se encantou como se tivesse encontrado a terra prometida. Num negócio louco que envolvia entrada e prestações, comprou um terreno e arrochou o pau, brocando e limpando o lugar para construir a casa que seria o lar da sua família. 

Ao chegar com Dona Pequena no Baixão do Umbuzeiro em fins dos anos 1950, o povoado era algo como Fontes Ibiapina descreveu no romance “Tombador” (1971): “Quando ali chegaram, não havia vivalmas para remédio por aquelas bibocas. (...) era um mundão folote de terras. Mas inculto, seco de tinir durante o verão. E desabitado. Só aquele chapadão sem fim, e pronto”. Mas Antônio Cabelim não esmoreceu, assim como o personagem Bernardino do romance de Fontes: “Aquilo era que era ser homem de sangue no olho! Estudou o problema com gosto e carinho. Mediu, palmo a palmo, circunstâncias e possibilidades. Adereçou os apetrechos. E meteu os peitos”.



Por esse período, enquanto construía a casa, morou de julho a outubro debaixo de um grande pé de juazeiro junto com a esposa, a filha primogênita Inácia e o filho que haviam pego pra criar, Zé Cabelim. Dormiam em rede. Dona Pequena relata que certa noite viu um movimento ziguezagueado num dos troncos do pau e avisou Antônio Cabelim, que pediu que ela aquietasse e dormisse. Eram cobras. Nada aconteceu a ninguém.

Pouco depois, já com um cômodo da casa construído, Antônio Cabelim se mudou com a família e firmou residência no Baixão do Umbuzeiro, terra que com inverno bom chegava a dar 40 quartas de feijão.



Cabelim trabalhou duro na roça e foi adquirindo pedaços de terra. Protegia suas propriedades com cercas feitas de pedras. Com suas mãos, ia pegar as pedras no mato, que eram transportadas no lombo de jumento e depois as colocava, uma por uma. Ainda hoje as cercas de pedra estão lá, de pé. 


Cabelim trabalhou de sol a sol e passou a dominar todas as etapas de produção do que sua família necessita para viver. Sua casa foi construída com adobes que ele mesmo fazia, retirando barro da natureza, o misturando com estrume de gado e os juntando com os pés. Depois de ganhar consistência, colocava o barro em formas para adquirir o formato de tijolo e o botava para secar ao ar livre. As vigas de sua casa são de árvore de carnaúba. As telhas são de barro e ele mesmo as fez. Não comprou nada, fez tudo com as próprias mãos.



Com o entendimento que adquiriu fazendo sua própria casa, Cabelim começou a receber empeleitas para construir casas no Baixão do Umbuzeiro, o que fazia com extremo cuidado e competência, a um preço justo.


Também não comprava nada do que ele e sua família comiam. Plantava o arroz e o feijão. Da plantação de macaxeira, produzia farinha de goma em sua casa de desmancha para ter beiju o restante do ano. Quando a situação apertava, Cabelim ia buscar caça do mato: tatu; peba; lambu; rolinha etc. Aos poucos, foi adquirindo pequeno criatório de gado, bode, porco e galinha.

Produzia o currulepe que ele, sua mulher e filhos calçavam. Também confeccionava o surrão de couro para armazenar os legumes dos invernos bons e ruins. Em tropa, ia tangendo animais e percorria grandes distâncias para vender e comprar mercadorias como farinha e feijão. Muitas foram as viagens até os Picos de pés. 



Antônio Cabelim foi um dos primeiros homens a movimentar a economia local do Baixão do Umbuzeiro, contratando trabalhadores para roça. Pessoas hoje com pouco mais de 40 anos contam que davam um jeito da enxada quebrar para terminar o trabalho do dia, pois ninguém segurava o rojão do velho Cabelim, que trabalhava até o sol dar seu último suspiro do dia.

Antônio Cabelim tinha um coração enorme. Quantas não foram as pessoas que iam lhe tomar dinheiro emprestado para tentar a sorte em São Paulo sem nenhum juros. Inclusive, muitas dessas pessoas lhe davam o calote, o que era sempre perdoado por ele. Cabelim e Dona Pequena tiveram uma filha, Inácia, e criaram mais dois, Zé Cabelim e Toinha. Sem contar os inúmeros agregados, a casa vivia cheia com muitas bocas para alimentar. 



Mas sua casa era lugar de fartura, pois com o seu trabalho na roça conseguia tudo o que precisava para sustentar os seus. Antônio Cabelim, além de ser humano sem igual, foi um homem de visão. Pensou e amou o seu Baixão do Umbuzeiro, terra de onde nunca saiu nem imaginou deixar para viver as ilusões da cidade grande.

Na mesma casa que construiu em fins de 1950, hoje em 2022 ainda não há televisão ou internet. Assim, mesmo nos dias atuais quase todas as noites filhos, netos e bisnetos de Cabelim e Pequena se reuniam na ponta de terreiro de sua casa para conversar e ouvir as estórias de trancoso que o velho sabia contar como ninguém. 


Seu Cabelim e Dona Pequena ainda hoje preferiam dormir em redes paralelas, sustentadas nos troncos de carnaúba, na sala. Mesmo com geladeira em casa, nunca se desfez do pote de barro, que vive devidamente abastecido para quando a energia acabar não faltar água fresquinha. 


Mesmo com fogão a gás, nunca dispensou o fogão a lenha, que inclusive era muito mais utilizado. 


Já com idade avançada, gostava de ficar sentado no alpendre de sua casa nos finais de tarde, esperando as poucas cabeças de gado que lhe restavam pra remédio chegarem. Elas pareciam reconhecer o seu dono, pois ficavam ali na cerca, à espreita. Quando alguém brincava que queria comprar o seu gado, ele dizia que não vendia, e justificava: “o gado é a corda do meu coração”.


Cabelim viveu para os seus e para o Baixão. Aos 80 anos foi acometido pelo Mal de Alzheimer. Não largou o trabalho, o trabalho é que largou ele.

Cabelim tinha um bom-humor contagiante, era um contador de histórias fino. Embora sem estudo, possuía vocabulário rico, vivíssimo, com imagens poéticas de dar inveja a poetas eruditos. Tudo o que fez aprendeu vivendo, na prática, observando e tentando fazer.



A história de Antônio Cabelim não é única, ela é um retrato de boa parte do povo piauiense e nordestino de outrora, que com grande coragem e disposição, enfrentou a vida com gosto de gás e transformou o mundo ao seu redor com as suas próprias mãos.

Antônio Raimundo Cabelim partiu desse plano aos 89 anos, no dia 27 de março de 2022, mas está vivo em seu amado Baixão do Umbuzeiro, povoado que pode ser definido pelos versos poéticos do grande Cantador de Viola picoense Barrazul, que ele tanto admirava:


“Orgulhoso eu sou por ter nascido

A três léguas de Picos, a Oeste

Clima quente, distante do agreste

Entre os morros da Data Boqueirão

No recanto mais pobre do sertão

Nos carrascos mais secos do Nordeste”.


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