Sebo do Messias (22/11/22). Foto: Ana Cândida |
Marcelino, Ana Cândida e Alberico Rodrigues, escritor e proprietário do Espaço Cultural, que tem o seu nome, na cidade de São Paulo |
CIDADE DE LIVROS
Marcelino Barroso de Carvalho (*)
Você anda numa rua de livros e,
no final, dá de cara com outra rua de livros... Eu queria morar numa cidade
assim... Problemas respiratórios? Para que são feitos os cachés e os xaropes?
Ao passar, lentamente, numa rua de livros, sinto que um deles me olha; outro me
chama; e outro se esconde, de magro que é; um outro, ornado de “ouro de Ofir”,
esbanja superioridade; o roto, de lombo cinzento, esconde um tesouro, no fundo
de suas bolorentas frestas; música, artes, religião, arquitetura, filosofia,
física, matemática, um turbilhão de saberes que os herdeiros – insensíveis aos
gemidos de seus ancestrais (eruditos?) – entregam, em caixas e caixotes, por
(até menos de) 30 dinheiros. Quase chorei quando vi um poeta, sem horizonte,
trocar por merreca, em Belo Horizonte, os “restos mortais” de sua (antiga)
biblioteca. Senti igual dor, um dia, quando procurei, em São Paulo, o Sebo de
Seu Luís, num porão de vários andares, entre a Sé e a Faculdade de Direito do
Largo de São Francisco. O português, idoso, gordinho e loquaz, abasteceu de
sonho levas e levas de jovens e velhos intelectuais do Brasil. Um porteiro de
garagem me desanimou: “Os herdeiros tinham outras ocupações”. Essa história se
repete, mas os sebos ressuscitam nossos mortos e os transmudam em anjos
benfazejos. Os defuntos nos comunicam, na folha de rosto ou numa sobrecapa,
seus nomes (quase sempre ilegíveis), suas origens e até longínquas datas de
aquisição das peças. Nos grandes sebos, como o do Messias, em São Paulo, os
livreiros constroem verdadeiras “cidades de livros”, com ruas, becos e vielas;
pracinhas, sobrados e mezaninos de estantes e armários; balcões ou tabuleiros
como os de feira, onde os “alimentos” servidos são CDs, DVDs, VHS, vinis, a
preço de banana. Foi aí que, certa vez, encontrei vários CDs da Deutsche
Grammophon. Comprei todos, não apenas porque são os “únicos no mundo” cuja capa
não quebra com um simples abrir-e-fechar, mas também porque encerram incomum
repertório dos grandes clássicos da música universal. É evidente que os sebos
não são o lugar preferido dos novos pesquisadores e cientistas, pois a estes se
disponibilizam bibliotecas e livrarias especializadas; são, isto sim, lugar de
diletantes ou de pechincheiros, cada um com seus propósitos ou com suas
necessidades, tendo em comum a certeza de que despenderão pouco dinheiro. Foi
nos sebos que adquiri algumas enciclopédias e coleções completas de obras
literárias a que não tive acesso em minha juventude pobre. Um dos meus sonhos
dos tempos de faculdade era o de possuir os Comentários ao Código Civil
Brasileiro e o Repertório Enciclopédico do Direito Brasileiro, de Carvalho
Santos, bem como os Comentários ao Código Comercial Brasileiro, de Carvalho de
Mendonça. Eu o realizei no Sebo de Seu Luís, que enviou a pequena montanha de
livros pelos Correios, para Teresina. Antes, eu já realizara os sonhos de ter
as Enciclopédias Delta Larousse, Barsa e Tesouro da Juventude. Talvez por ter
sido revisor de jornal ainda na adolescência, sempre tive avidez por
dicionários, tanto assim é que adquiri praticamente todos os que encontrei,
durante anos, começando, evidentemente, com os principais da antiga FENAME:
Português, Latim, Francês e o Das Dificuldades da Língua Portuguesa. Depois,
juntaram-se os de outras línguas antigas ou modernas e até de Tupi-Guarani.
Reuni outra leva de dicionários especializados, de diversas áreas do saber.
Esse hábito me leva sempre a procurar, nas cidades-de-livros, a Rua dos Dicionários,
correspondente à Rua das Referências, nas bibliotecas, segundo os sistemas ou
classificações decimais (CDD ou CDU). Os sebos não têm essa preocupação com os
sistemas de classificação bibliográfica e adotam uma disposição do acervo de
certo modo caótica, mas de inteiro domínio dos atendentes. Por isso é que me
rendo, de quando em vez, aos “olhares” que certos livros me lançam, com os
quais, não raro, atraem minha atenção até a consumação da compra. Nos sótãos ou
nos subsolos, é sempre possível encontrar-se algo surpreendente, talvez ali
colocado até de modo proposital, para aguçar a curiosidade da gente. No sebo de
Seu Luís, descer as escadas de jacarandá, torneadas em estilo manuelino, era
motivo de uma satisfação a mais. Num ambiente assim, não posso deixar de
lembrar do poeta Jorge da Costa Carvalho, a quem eu chamava rato-de-biblioteca
(ou rato-de-livraria) e sobre quem escrevi um crônica, logo após seu inesperado
falecimento, em 2021. Não posso deixar de lembrar o Sebo do Brandão, no Recife,
talvez a primeira loja do gênero no Brasil, nem a Livro 7, que foi, durante
anos, a maior livraria no país. Em todos esses espaços, eu sonhei de olhos bem
abertos, mais até que nas fantásticas bibliotecas que frequentei, como a da
Faculdade de Direito do Recife, porque, nestas últimas, os livros não me
incutem a ideia de pertencimento, embora permitam a livre apropriação das
próprias ideias. Quando postei, em rede social, a foto de uma rua na
cidade-de-livros do Messias, o filólogo Nílson Ferreira e o poeta Elmar
Carvalho me instigaram, nos comentários, a transformar em crônica a
despretensiosa descrição da postagem. Desafio aceito, a ambos dedico estas
percepções oníricas de uma cidade que somente os sebos de livros nos podem
propiciar.
São Paulo(SP), 25/11/2022.
(*) Professor aposentado da UFPI.
Membro da APLJ, da ALEAMA e da APC.
Ilustre Mestre Marcelino Barroso,
ResponderExcluirQue viagem encantadora sua crônica propícia a um amante dos livros. Um "alumbramento" como diz Bandeira. Uma "pintura" diria Picasso. O livro, definitivamente, é um instrumento de Felicidade. Feliz de quem descobrir isso a tempo...
Grato pela deferência!
Evohe Marcelus!!!
Obrigado, querido amigo e (ex)aluno Nílson! Essa singela crônica resulta de sua benfazeja provocação, no grupo da APC.
ResponderExcluirAgradeço também ao querido amigo e (ex)aluno Elmar Carvalho, pela publicação de uma crônica que resultou de sua adesão à provocação do também amigo Nílson Ferreira.
ResponderExcluirEsse texto me fez viajar no tempo, desde quando "meti o pé na estrada" em 1965, como amante de livros, LP e fita K7, sem dinheiro para comprar e lugar para guardar, como andarilho, frequentar sebos era um dos meus melhores divertimentos, me dava prazer e conhecimento. Parabéns ao autor.
ResponderExcluirMuito obrigado, Anônimo! Por favor, deixe mensagem no meu Facebook (Marcelino Barroso) ou no meu WhatsApp (86)99815-4387.
ExcluirExcelente crônica, que foi escrita quase sem o autor querer, quase por instigação de amigos.
ResponderExcluirVarei a madrugada para dar conta dessa obrigação. Valeu a pena!
ExcluirFantástico!
ResponderExcluirSimplesmente fantástico!
Quem não se anima a garimpar nos sebos por aí afora diante de tão primorosa crônica? Parece que na mente da gente , fica ricocheteando entre paredes utópicas as palavras; sebos, livros, livros sebos….
Fico com vontade de abraçar meus livros e como o personagem de Walt Disney, Tio Patinhas, exclamar: meus ricos livrinhos!!!!!
( Livrinhos sempre no bom sentido, claro!)