quinta-feira, 3 de novembro de 2022

O ÚLTIMO ENCONTRO COM MEU AVÔ E O VELHO CASARIO

Fonte: Google
Edison Rebelo de Carvalho

 

O ÚLTIMO ENCONTRO COM MEU AVÔ E O VELHO CASARIO

 

Fabrício Carvalho Amorim Leite

 

“(...) A memória é uma lâmina de desassossego, cornucópia insana e insaciável, a jorrar o passado, que não morre nunca, sempre ressuscitado no eterno regresso a nós mesmos. O passado, poderoso e renitente, retorna e continua vívido e presente, se contorcendo, se retorcendo e se reacontecendo. Ah, as carnes pulsantes de um passado sempre lembrado... (...) ” Poeta Elmar Carvalho.

  

             Em uma bela manhã ensolarada no início dos anos 2000, parei o carro na porta do amplo casario já quase sexagenário, tirei meu filho de poucos meses do carro e fui em direção à entrada. Contemplando-o.

 

             Olhei para o terraço da frente e, no chão, ainda se pisava firmemente nos azulejos envelhecidos e desbotados, com cores ainda sóbrias.

 

             O terraço ou sala de visitas era arejado e moldado por um vão aberto para rua, sem grades, com cadeiras modestas de fitilho justapostas como se estivessem convidando a todos a sentar. Tudo sem ostentação. Como se o tempo tivesse parado. E parou, para mim, como estivesse me convidando para um encontro entre o passado e o presente. Realmente parou.

 

              E, lá estava ele: Edison Rebelo de Carvalho, ex-líder político, advogado, comerciante, fazendeiro e outras funções exercidas, o meu popular avô.  Sentado, no mesmo local e mesma posição em que, por inúmeras vezes, “despachava” ou promovia encontros formais e informais, com autoridades, lideranças, munícipes, empregados, eleitores, amigos, dentre outros. Realmente, ali era um dos seus lugares preferidos.

 

             Via tudo, sim, e, às vezes, mesmo criança, contando tão-somente com a sorte, dava palpites quando falavam quantos quilos tinha uma arroba de boi:

          

            - Possui quinze quilos, vovô, eu disse.

 

           - Não é que ele acertou. Meu avô falou, espantado.

 

            Saí orgulhoso, mesmo acertando na base da adivinhação, mas ganhei um ponto.... Ganhei. Ou quando tentava, em vão, acompanhá-lo nos cálculos dos preços das mercadorias ou somas. Via e observava tudo, sim, e, como uma criança curiosa, na ingenuidade, era bisbilhoteiro, sim.

 

              Foi naquele mesmo lugarzinho e momento acolhedor da memória, que brinquei, ouvi histórias aterrorizantes de lobisomem, vampiros e imaginei quando era criança e, com certeza, também, era um período especial para muitos outros.

 

             Abri, um tanto emocionado, o já envelhecido portãozinho de ferro da entrada principal, com meu filho ainda bebê a tiracolo.

 

              No velho casario do meu avô, como de costume, olhei pausadamente e novamente para cima, pois ainda havia um telhado muito alto - telhas rústicas feitas há mais de 50 anos -. Daquele tempo em que havia casas muito altas, ou por causa da circulação de ar, ou como sinônimo de fartura mesmo.

 

               E, era assim, naquela época: os telhados atravessados por longos caibros, ripas e demais partes de sustentação feitos pela longeva e imponente carnaúba, árvore bastante comum na região de Esperantina, Piauí.

 

               Quando criança, de férias, antes de dormir depois do almoço, tinha o costume tranquilizador de ver cada fresta do antigo teto de carnaúba do casario. Cada imagem e impressão era única e mágica por causa do pouquinho do sol que entrava com a sua luz mágica. Um verdadeiro sonífero natural.

 

               Cada arco ou lampejo de luz, como, também, às nuvens acima do telhado, transformava-se rapidamente em cavalos, anjos, dragões, cavaleiros, sorrisos, moinhos de vento, monstros e outras milhares de formas que a rica imaginação infantil poderia criar e levar.

 

               Penso que, como pontes, há objetos mágicos que nos fazem transportar no tempo. E à medida que o espírito imaginativo atua, podemos atravessar este portal e, em segundos, a infância reaparece, também, uma vida vivida mesmo muito antes de nosso nascimento e, quem sabe, ao futuro ou outro mundo jamais vivido. O casario e seus objetos são mágicos, sim, são pontes ou portais...

 

               Poucas foram as palavras, porque os sinais característicos da idade avançada e do peso do tempo, nitidamente, pairavam sobre o anfitrião. Apesar de tudo, o ar da sabedoria e serenidade deste se mantinha.

 

               O estranho é que o encontro entre um neto (eu), um bisneto (meu filho) e o avô (e bisavô) com mais de 80 anos, fez-me pensar no poder das engrenagens invisíveis que movem o tempo.

 

               Coloquei, por alguns minutos, o meu filho no colo do avô e, este, deu aquele sorriso meigo e acolhedor. O momento, devido a emoção, para mim, ficou gravado para sempre na memória. Mas, sem desassossego. Houve uma paz eloquentemente e silenciosa.

 

               Despedi-me, com uma sensação estranha como se fosse pela última vez ... Encostei o velho portãozinho de ferro com cor de passado e, da janela do carro, pela última vez, contemplei aquele senhor símbolo de uma época.

 

              Alguns anos após, mais exatamente em 03 de março de 2010, Edison Rebelo de Carvalho iria para o outro plano e, como há de ser para todos: as engrenagens invisíveis que movem o tempo nunca param… Talvez, não, para o velho casario e suas memórias.

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