segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Eça de Queirós, o Contador de Urubus e o meu solar de Torges

 

Fonte: Internet

Eça de Queirós, o Contador de Urubus e o meu solar de Torges


Fabrício Carvalho Amorim Leite (*)


A saudade, ou a necessidade de um refúgio bucólico, trouxe-me, nestes dias, a ler o agradável conto Civilização, de Eça de Queirós, para, igualmente, viajar através de seus personagens.

Por vez, em resumo, a história narra, dentre outras passagens, a vida de um fidalgo português e culto chamado Jacinto.

Este, estressado com a vida urbana e suas parafernálias tecnológicas para época, como a máquina de escrever, os autocopistas, o telégrafo Morse, o fonógrafo, o telefone e outros, decide realizar viagem a sua propriedade rural.

Eça chamou-a de solar de Torges, situada num povoado do mesmo nome na zona serrana de Portugal.

Acontece que, por um infortúnio, a maior parte da grande bagagem da comitiva não pôde chegar na propriedade e o fidalgo português e sua suntuosa comitiva tiveram que realizar uma rústica estadia sem os luxuosos mimos encomendados.

Entretanto, de tudo não foi perdido, porque o personagem Jacinto, passado o choque por sair da “civilização”, até que gostou da simplicidade do local, sem os luxos e frivolidades da cidade.

E, trazendo um pouco para mim, inspirado no conto acima, não que eu seja um fidalgo ou alguém parecido, como o personagem de Eça. Por isso, é que recentemente fiz uma viagem ao pequeno povoado de Mundo Novo dos Amorims, em Esperantina/PI, fundado a duro trabalho, entre os anos 1900 e 1920, por membros da minha família.

Chegando no “meu solar de Torges”, logo notei que o estimado e lúcido anfitrião José, de quase 90 anos, sabiamente, não possuía um celular, ou esta geringonça, como fala.

Por bisbilhotice, perguntei-lhe que horas jantava:

— Religiosamente, 4 horas da tarde. Disse-me, de forma taciturna.

Admito que achei estranho, como homem “ supercivilizado” que sou, alguém jantar às 4 h da tarde, mas imagino que seja um antigo hábito local.

E a sua ocupação principal? Indaguei.

— Assistir novela e jogos de futebol.

Aí vi um certo costume da “civilização”, por ser adepto da televisão. Menos ruim.

Em seguida, silenciosamente, aplicando uma tática metódica, hábil e paciente, pus-me a investigar a fundo os hábitos de seu José.

Depois de muita observação, notei que este, como o famoso Jacinto, de Eça, tinha ao entardecer, ao contemplar o horizonte, um inusitado momento de “doce paz crepuscular”.

E, não sei se é comum na região, - o que será objeto de futura investigação -, ou só do meu anfitrião, mas soube que era um hábito antigo dele contar o número de urubus.

Sim, urubus! Podiam ser bem-te-vis, xexeús, corrupiões .... Porém, ele gosta mesmo é de contar os afamados abutres.

Diante deste estranho hábito, para um “supercivilizado”, fiquei mais curioso ainda, pois, para a maioria das pessoas da “civilização”, os urubus são aves feias, nojentas, avarentas e comem carniça. Ou seja, possuem, há séculos, uma enorme má fama.

Por isso, com extrema cautela nas palavras, e para buscar mais detalhes do digno ofício, fui falando-lhe, de forma geral, sobre aves, como são bonitas... vistosas...livres...úteis para o mundo...

Tive o cuidado de não discorrer a respeito de futebol, porque o símbolo do Flamengo é um urubu, para não lhe causar certos melindres...desconfianças na séria investigação em andamento...

Já ao entardecer, notei que meu anfitrião, em sua privativa cadeira reforçada de fitilho azul-celeste, ficara calado, imóvel e olhava de forma fixa - praticamente, sem piscar - para uma grande árvore sem folhas no horizonte.

Tinha ali uma verdadeira feição austera de paz contemplativa, como, também, senti. E compartilhei o momento, por empatia e prazer.

Achei por bem não intervir e nem puxar conversa, porque poderia, de vez, estragar o sagrado ritual vespertino em curso. Ou, até mesmo, ser convidado a sair de seu observatório privado.

Por volta das sete horas da noite, ao que percebi, como amador e curioso na nobre profissão, a urubuzada estava toda empoleirada. E, pensei: agora é a vez da minha pergunta final:

Seu José, quantos urubus o senhor contou hoje?

Alguns minutos se passaram, como fosse uma eternidade, abstraindo profundamente, ele olhou para mim e disse:

— Ah, meu caro! — Exclamou ele. — Esta cerimônia de contagem faço mentalmente, por satisfação mesmo.

— E tenho medo que se eu revelar o segredo da contagem do número de urubus da árvore fique azarado...amaldiçoado...doente... — Completou.

Então, compreendendo a arraigada superstição, encerrei a conversa, desejando-lhe uma boa-noite.

Azar ou mau agouro? Pensei. O hábito pitoresco de contar urubus, por certo, não lhe causou males, porque o anfitrião tinha quase 90 anos com a saúde ótima e invejável.

Com certeza, é um método antigo, eficaz e secreto de meditação ou de “doce paz crepuscular” encontrado, ponderei.

Porém, depois de muito refletir a respeito, conclui, no meu inquérito particular, que o seu José deve ser um dos únicos contadores de urubus da região ou do mundo, o que o torna valiosíssimo para a natureza e humanidade.

Bem que um perito em observação de urubus (ou em contagem do número deles) é imprescindível, pois são aves muito importantes para a limpeza do ecossistema. De fato.

Só sei que, mesmo não me revelando os segredos do ofício, caso, subitamente, a urubuzada surja doente, meu proativo anfitrião, com certeza, irá repassar a grave notícia às autoridades da “civilização”.

De qualquer forma, passada a minha estadia no campo, percebi que o seu José pode buscar refúgio — e enxergar beleza — na simples contemplação da natureza.

Nem que seja num momento de paz para contar docemente o número de urubus ao empoleirarem-se numa árvore desfolhada...

Diga-se, paz esta como Eça narra:

“Àquela hora, decerto, Jacinto, na varanda, em Torges, sem fonógrafo e sem telefone, reentrado na simplicidade, via, sob a paz lenta da tarde, ao tremeluzir da primeira estrela, a boiada recolher entre o canto dos boieiros. ”

Por isso, no próximo mês regressarei para o “meu solar de Torges”...

(*) Advogado e escritor.

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