Fonte: Internet |
Eça de Queirós, o Contador de Urubus
e o meu solar de Torges
Fabrício Carvalho
Amorim Leite (*)
A saudade, ou a necessidade de um
refúgio bucólico, trouxe-me, nestes dias, a ler o agradável conto Civilização,
de Eça de Queirós, para, igualmente, viajar através de seus
personagens.
Por vez, em resumo, a história narra,
dentre outras passagens, a vida de um fidalgo português e culto chamado Jacinto.
Este, estressado com a vida urbana e
suas parafernálias tecnológicas para época, como a máquina de escrever, os
autocopistas, o telégrafo Morse, o fonógrafo, o telefone e outros, decide
realizar viagem a sua propriedade rural.
Eça chamou-a
de solar de Torges, situada num povoado do
mesmo nome na zona serrana de Portugal.
Acontece que, por um infortúnio, a
maior parte da grande bagagem da comitiva não pôde chegar na propriedade e o
fidalgo português e sua suntuosa comitiva tiveram que realizar uma rústica
estadia sem os luxuosos mimos encomendados.
Entretanto, de tudo não foi perdido,
porque o personagem Jacinto, passado o choque por sair da
“civilização”, até que gostou da simplicidade do local, sem os luxos e
frivolidades da cidade.
E, trazendo um pouco para mim,
inspirado no conto acima, não que eu seja um fidalgo ou alguém parecido, como o
personagem de Eça. Por isso, é que
recentemente fiz uma viagem ao pequeno povoado de Mundo Novo dos Amorims, em Esperantina/PI,
fundado a duro trabalho, entre os anos 1900 e 1920, por membros da minha
família.
Chegando no “meu
solar de Torges”, logo notei que o estimado e lúcido anfitrião José, de quase 90 anos, sabiamente, não
possuía um celular, ou esta geringonça, como fala.
Por bisbilhotice, perguntei-lhe que
horas jantava:
— Religiosamente, 4 horas da tarde.
Disse-me, de forma taciturna.
Admito que achei estranho, como homem
“ supercivilizado” que sou, alguém jantar às 4 h da tarde, mas imagino que
seja um antigo hábito local.
E a sua ocupação principal? Indaguei.
— Assistir novela e jogos de futebol.
Aí vi um certo costume da “civilização”,
por ser adepto da televisão. Menos ruim.
Em seguida, silenciosamente,
aplicando uma tática metódica, hábil e paciente, pus-me a investigar a fundo os
hábitos de seu José.
Depois de muita observação, notei que
este, como o famoso Jacinto, de Eça,
tinha ao entardecer, ao contemplar o horizonte, um inusitado momento de “doce
paz crepuscular”.
E, não sei se é comum na região, - o que será objeto de
futura investigação -, ou só do meu anfitrião, mas soube que era um hábito
antigo dele contar o número de urubus.
Sim, urubus! Podiam ser bem-te-vis,
xexeús, corrupiões .... Porém, ele gosta mesmo é de contar os afamados abutres.
Diante deste estranho hábito, para um
“supercivilizado”, fiquei mais curioso ainda, pois, para a maioria das pessoas
da “civilização”, os urubus são aves feias, nojentas, avarentas e comem
carniça. Ou seja, possuem, há séculos, uma enorme má fama.
Por isso, com extrema cautela nas
palavras, e para buscar mais detalhes do digno ofício, fui falando-lhe, de
forma geral, sobre aves, como são bonitas... vistosas...livres...úteis para o
mundo...
Tive o cuidado de não discorrer a
respeito de futebol, porque o símbolo do Flamengo é um urubu, para não lhe
causar certos melindres...desconfianças na séria investigação em andamento...
Já ao entardecer, notei que meu
anfitrião, em sua privativa cadeira reforçada de fitilho azul-celeste, ficara
calado, imóvel e olhava de forma fixa - praticamente, sem piscar - para uma
grande árvore sem folhas no horizonte.
Tinha ali uma verdadeira feição
austera de paz contemplativa, como, também, senti. E compartilhei o momento,
por empatia e prazer.
Achei por bem não intervir e nem
puxar conversa, porque poderia, de vez, estragar o sagrado ritual vespertino em
curso. Ou, até mesmo, ser convidado a sair de seu observatório privado.
Por volta das sete horas da noite, ao
que percebi, como amador e curioso na nobre profissão, a urubuzada estava toda
empoleirada. E, pensei: agora é a vez da minha pergunta final:
Seu José, quantos urubus o senhor contou hoje?
Alguns minutos se passaram, como
fosse uma eternidade, abstraindo profundamente, ele olhou para mim e disse:
— Ah, meu caro! — Exclamou ele. —
Esta cerimônia de contagem faço mentalmente, por satisfação mesmo.
— E tenho medo que se eu revelar o
segredo da contagem do número de urubus da árvore fique
azarado...amaldiçoado...doente... — Completou.
Então, compreendendo a arraigada
superstição, encerrei a conversa, desejando-lhe uma boa-noite.
Azar ou mau agouro? Pensei. O hábito
pitoresco de contar urubus, por certo, não lhe causou males, porque o anfitrião
tinha quase 90 anos com a saúde ótima e invejável.
Com certeza, é um método antigo,
eficaz e secreto de meditação ou de “doce paz crepuscular” encontrado,
ponderei.
Porém, depois de muito refletir a
respeito, conclui, no meu inquérito particular, que o seu José deve ser um dos únicos contadores de urubus da região ou do
mundo, o que o torna valiosíssimo para a natureza e humanidade.
Bem que um perito em observação de
urubus (ou em contagem do número deles) é imprescindível, pois são aves muito
importantes para a limpeza do ecossistema. De fato.
Só sei que, mesmo não me revelando os
segredos do ofício, caso, subitamente, a urubuzada surja doente, meu proativo
anfitrião, com certeza, irá repassar a grave notícia às autoridades da
“civilização”.
De qualquer forma, passada a minha
estadia no campo, percebi que o seu José
pode buscar refúgio — e enxergar beleza — na simples contemplação da natureza.
Nem que seja num momento de paz para
contar docemente o número de urubus ao empoleirarem-se numa árvore desfolhada...
Diga-se, paz esta como Eça narra:
“Àquela hora, decerto, Jacinto, na varanda, em Torges, sem
fonógrafo e sem telefone, reentrado na simplicidade, via, sob a paz
lenta da tarde, ao tremeluzir da primeira estrela, a boiada recolher entre
o canto dos boieiros. ”
Por isso, no próximo mês regressarei
para o “meu solar de Torges”...
(*) Advogado e escritor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário