A inusitada tradição de furtar galinhas na Sexta-feira Santa
Fabrício Carvalho Amorim Leite (*)
Infelizmente, não roubei nenhuma galinha na
Sexta-feira Santa deste ano. E nem nas últimas anteriores.
Explico: não pertencia ou pertenço a alguma gangue
de ladrões de galinhas. Ao menos, profissional.
Esta confissão traz-me vergonha mais pelo sumiço das
velhas tradições da Semana Santa, do que pela minha condição de ex - infrator
dos códigos penal e civil.
Posso garantir que, há muito tempo, na minha Vila de
Boa Esperança, os ladrões da Sexta-Feira da Paixão, dias antes, avisavam da
visita especial da comitiva dos bufões.
O amigo Manoel, sempre pronto, fazia seu papel de
sondagem dos melhores galinheiros com acessos mais fáceis e com galinhas
rechonchudas.
E, ainda, no mesmo passo, dava o recado ao dono:
-Sexta-feira Santa passaremos aqui para buscar nossa
galinhaça. - código dado.
Era tudo combinado. Brincadeira saudável. Troça. Uma
prática cultural bem arraigada na época, mesmo com a incompreensão de hoje.
Tinha um certo lirismo no sentido da união humana —
ou seja, uma tradição curiosa repleta de fantasia, galhofas e de consciência no
valor dos pequenos momentos.
Havia, sim, um doce clima de expectativa e
descontração.
Eram familiares, vizinhos e amigos pregando uma
espécie de trote um nos outros. Nenhuma pessoa gritava pega-ladrão.
Os mais espertos, avisados da comitiva, cedinho,
escondiam seus melhores galináceos dentro de casa.
À noite, galos velhos, frangos e galinhas moribundas
eram os sacrificados no grande expurgo e banquete pagão.
Galinha d'angola e peru? Só se por extremo descuido
do dono. Sorte grande para os ladrões. Muita festividade.
Lembro-me que, quando mais jovem, pratiquei o grave
delito de levar um velho pato do terreiro de um vizinho.
Não peguei mordida do cachorro Tubarão e nem fui
alvejado com o tiro de sal de sua soca-soca, pois Manoel, zeloso, tinha avisado
antes ao dono do pato. Melhor.
E, como o grande mestre Jesus estava bastante
ocupado em ressuscitar, fui perdoado em seguida. E o pato pagou o pato.
Destino selado: horas e horas de panela de pressão.
Grátis é grátis. E, num forno a lenha, melhor.
Infelizmente, o grupo se extinguiu por obrigações
familiares e de trabalho. Personalidades dignas do conto Ali Babá e os Quarenta
Ladrões.
Hoje, cada um, com lembranças, risos e prantos,
exalta o famoso “no meu tempo era assim”.
Bom ou ruim? Só o tempo dirá.
Bem, só sei da mudança dos costumes da velha Vila,
com as primeiras casas de muros altos, câmeras e cercas elétricas.
Hoje em dia, reflito sobre os verdadeiros salteadores
agindo com seriedade à solta, aproveitando-se do declínio da base social.
Pais, jovens e antigas tradições do mesmo modo se
isolam nas telas. Muros das desconfianças. Tudo é desconfiança, comparando-se a
nossa ancestral e fraterna brincadeira juvenil.
Hoje, existimos como galinhas presas nos
galinheiros, cantando e rindo sob a traiçoeira impressão de segurança.
A zona rural? Sim. A bucólica zona rural.
Ainda atrai um certo cheiro de saudosismo. Porém,
hoje, como alguns se orgulham: - é melhor comprar galeto ou frango de granja
tratados.
Criar as cobiçadas galinhas caipiras, principais
alvos da antiga brincadeira, também, está em desuso. Exige muita mão de obra e custos
com ração, dizem alguns.
Felizmente, são as últimas fortalezas da
extraordinária tradição. E, assim, acompanham o trajeto da vida. Ainda resistem.
Os costumes e tradições vão-se, pouco a pouco.
E, de madrugada, ouvirei mesmo o som mecânico e
metálico do galo saído do smartphone de meu vizinho do muro alto.
Tempos idos ao cantinho da memória do saudosismo gostoso.
(*) Advogado e escritor.
👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏
ResponderExcluirMuito bom, parabéns!
ResponderExcluirEu era menina e lembro que meu vô gostava de pegar gainha co grande turma e anda cantavm na porta de quem eraroubado ,mas eram muitos e ninguem saía pra ver quem era Já sabiam.🙄🙄🙄
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