quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

ENCONTRO DOS RIOS


 

ENCONTRO DOS RIOS


Elmar Carvalho

 

Desejando comer uma piaba frita, fui ao Encontro dos Rios, no local onde o Poti, vindo das ribas do Ceará, depois de passar pelo cânion de Castelo, vai afogar suas águas nas águas do Parnaíba, rebento da longínqua Chapada das Mangabeiras, na região de Santa Filomena. Fui para o restaurante flutuante. Procurei ficar na lateral do recinto, para melhor contemplar as águas e a paisagem.

 

Dali, eu via, na ribanceira da outra margem do Poti, um orgulhoso e solitário buritizeiro acenar suas palmas no alto e para o alto, tendo como pano de fundo a toalha azul do céu. Perto dele, uma mangueira, como rotunda matrona vegetal, espargia sua sombra acolhedora. Numa ilhota, estreita e comprida, os urubus contrastavam o seu negrume solene com o branco absoluto das garças.

 

Contudo, não se misturavam; cada espécime ficava em seu reduto, porém convivendo de forma pacífica, cada qual senhor de seu território. Uma gaivota passou a planar, livre, soberana do espaço, sem nada desejar, sem nada invejar. Tinha o bico, arpão certeiro para fisgar os peixes de que precisasse, e tinha as asas e o espaço para voar e talvez sonhar.

 

Um pescador passou placidamente numa canoa, a conduzir sua bicicleta; ao aportar, já teria à disposição seu outro meio de transporte. Envergava uma camisa do glorioso Flamengo. Senti certa inveja do canoeiro. Talvez de sua canoa ele me invejasse, a degustar minha piaba entre lentos goles de cerveja.

 

Lembrei um poema de Fernando Pessoa, em que o bardo dizia que, ao seguir para Sintra, no seu automóvel Chevrolet, sentiu inveja de um rurícola em sua casinha de pau a pique, em sua vida simples e bucólica; mas que o campônio, da janela, talvez também lhe invejasse o fato de dirigir aquele veículo que tomara de empréstimo. Tudo pelo simples motivo de um não ser o outro.

 

Como já questionou alguém, a outra margem do rio sempre nos parece a mais bela. Quando chegamos ao outro lado, a margem em que estávamos passa a ser a que mais nos encanta. É a eterna inquietação do homem, o desejo de possuir o que não possui, e de não valorizar o que é seu. Disso advém a insatisfação, os desejos espúrios e a ganância.

 

Contam que célebre figura histórica admoestou seu desafeto de que este era muito mais rico do que ele, mas ao mesmo tempo muito mais pobre, muito mais miserável; porque toda a riqueza que o outro tinha não lhe era o bastante, ao passo que ele nada desejava, nada queria, e por isso mesmo era muito mais rico, conquanto tivesse muito menos cabedal.

 

No Encontro dos Rios ainda rascunhei estes versos, que jamais integrarão um poema: “o encontro das águas é um ponto de encontro, mas nesse ponto, muitas vezes, as pessoas se desencontram”. E seguem sozinhas, por estradas diferentes, e não juntas, como as águas do Poti e do Velho Monge. Uma chalana singrava as águas dos rios, no deleite da paisagem, talvez a promover encontros e desencontros, ocasos e acasos.

29 de setembro de 2010

Um comentário:

  1. O que mais me chamou a atenção foi a passagem: "Como já questionou alguém, a outra margem do rio sempre nos parece a mais bela. Quando chegamos ao outro lado, a margem em que estávamos passa a ser a que mais nos encanta." Um jogo de camadas: um texto dentro do texto, que convida à reflexão. Parabéns pela escrita.

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