Elmar Carvalho
Alguns meses atrás, ao fazer uma pesquisa sobre o Almanaque
da Parnaíba, senti falta, em minha biblioteca, de seu exemplar de 1985, 60ª
edição, que foi publicada graças ao esforço de Manuel Domingos Neto, após o
falecimento de Ranulpho Torres Raposo, que lhe publicou 40 edições (1942–1981).
Essa edição de 1985 me era especialmente cara, uma vez que auxiliei o professor
Manuel Domingos em sua organização, conforme consta em sua orelha.
Gentilmente, o editor me prometeu que me daria um exemplar.
Como se trata de uma raridade e de grande valor afetivo para mim, disse-lhe que
o receberia de suas mãos, quando fosse a Parnaíba. Tendo vindo a esta cidade no
sábado passado (19/07/25), combinei que o receberia na terça-feira, dia 22,
entre as oito e nove horas.
Às oito horas cheguei ao local. Fui recebido por Luanni
Machado. Enquanto esperava meu anfitrião e cicerone, tratei de ver antigas
fotografias, móveis, utensílios e outros instrumentos, entre os quais dois
pianos, muito bem conservados e em perfeitas condições de uso.
Terminei viajando na memória, retornando ao tempo em que
fixamos residência em Parnaíba, em 1975. Nessa época, o escritório de
representação comercial de Ranulpho Torres Raposo se encontrava em pleno
funcionamento. Tinha (ou tivera) filiais em Fortaleza, Teresina, São Luís e
Belém.
Como que vi ressurgir o velho mestre da Escola União
Caixeiral, Joaquim Furtado de Carvalho, postado diante de uma escrivaninha, a
fazer os registros contábeis dessa firma, que funcionava nesse local. Era primo
legítimo de meu pai. Falava com fluência o inglês. Tinha certa erudição, mas,
sobretudo, era um atraente conversador, um verdadeiro causeur.
Embora celibatário, era um admirador da beleza feminina, sem
dúvida, como se pode depreender destes seus versos, publicados no Almanaque da
Parnaíba, edição nº 50, ano 1973, no poema Banho de Mar:
Quantas lembranças de
momentos tais,
Veras saudades, as
chamadas roxas,
Quisera que sonhos bons
fossem reais,
No desfilar de tantas
belas coxas.
Logo Manuel Domingos chegou. Explicou-me vários detalhes e me
mostrou alguns móveis e fotografias que julgava mais relevantes. Nas paredes do
recinto principal estavam afixadas várias imagens de seu avô, que cheguei a
conhecer na segunda metade dos anos 1970. Cheguei a publicar um poema no
Almanaque, no período em que ele ainda estava sob sua responsabilidade.
Acima das antigas prateleiras de livros — que Manuel
recuperou sem ajuda institucional — encontravam-se fotografias de autores da
literatura universal, cujos livros estavam disponíveis nas várias estantes. De
repente, recendeu um agradável aroma de café, que tomou conta do ambiente e me
enebriou. Era um café forte, encorpado no ponto certo, que Luanni preparara.
Como se fora um néctar, o degustamos lentamente, para melhor lhe apreciar o
sabor.
Na parede estavam expostos excelentes cartazes, com belas
fotografias e ilustrações, em que, de forma concisa, a história do Almanaque
era contada. Benedito dos Santos Lima, o Bembém, seu fundador, e Ranulpho
Torres Raposo, seu editor durante 40 anos, eram homenageados — como bem
merecem. Também foram citados os principais colaboradores do anuário, entre os
quais menciono os seguintes:
Martins Napoleão, Felix Aires, Ademar Neves, Jonas Fontenele
da Silva, Nogueira Tapety, Renato Castelo Branco, Possidônio Queiroz, A. Tito
Filho, H. Dobal, Fontes Ibiapina. E, como não poderia deixar de constar no rol
acima, R. Petit (Raimundo de Araújo Chagas), “o mais longevo e prolífico” dos
colaboradores do Almanaque, que contribuiu com seus belos poemas para o
engrandecimento do anuário desde os seus primórdios — até mesmo depois de seu
falecimento. Aliás, recentemente um neto do bardo, o advogado Filadelfo Barreto, escreveu uma excelente biografia sobre o grande Petit, que tem quase o sabor de um romance.
Após ter viajado na memória, através de minhas lembranças e
da arquitetura do prédio — com a textura incomum de sua fachada, os belos
desenhos dos mosaicos, os antigos móveis —, viajei pelos acordes do piano,
dedilhado por Manuel Domingos Neto, que executou uma peça erudita e uma valsa
de Pixinguinha.
A valsa me fez lembrar os tempos em que meu saudoso pai ouvia
magníficas músicas da velha guarda, num rádio de pilha, à boca da noite,
através da Rádio Sociedade da Bahia, no programa Gramofone da Vovó, apresentado
pelo locutor Jaime Farrel. Senti como se meu pai ali estivesse presente, a
ouvir a bela melodia, uma de suas prediletas.
Ouvindo a exímia execução de Manuel Domingos e vendo sua
notável habilidade no dedilhar das teclas, aplaudi sua performance e não me
acanhei de lhe perguntar como aprendera sua arte pianística.
Ele me respondeu que, bem no início, tivera uma professora,
que depois deixou de lhe ministrar lições porque já não tinha mais nada a lhe
ensinar, uma vez que ele aprendia com muita rapidez e ainda tinha a ousadia de
adicionar improvisos que não estavam na pauta.
Bom ler esta crônica sensível, com relatos tão preciosos.
ResponderExcluirMuito obrigado. Valeu!
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