APRESENTAÇÃO DE
O NÁUFRAGO, de Edilson Sousa Jr.
Elmar Carvalho
“Venho de longe
a contornar a esmo, / O cabo das Tormentas de mim mesmo.” (Paulo Bomfim)
Sim, senhores,
com esses versos de Paulo Bomfim quero lhes dizer que venho dos confins do
início da segunda metade do século passado e já estou a contornar o cabo
Bojador do primeiro quartel deste século XXI.
Conheci o
autor, Edilson Sousa Júnior — médico, professor e educador exemplar —, graças à
mediação do jornalista e escritor Zózimo Tavares. Edilson é médico do corpo,
mas também da alma, por ser um ser humano acolhedor, bondoso e cordato. É um
cidadão cordial, no sentido etimológico da palavra: age com o coração. Como
professor universitário (UFPI), procura seguir o adágio mens sana in corpore
sano, tanto em relação a seus pacientes quanto a seus alunos.
Recordo aqui
uma anedota contada por meu amigo e poeta Alcenor Candeira Filho. Um jovem
professor lhe disse, com exultação e certo orgulho, que nos seus primeiros
meses de magistério nunca precisara fazer anotações ou esquemas mnemônicos para
dar aula. Mestre Alcenor, com sua proverbial franqueza, respondeu que, em suas
três décadas de docência, nunca deixará de preparar um roteiro para suas aulas.
Esse episódio
me fez lembrar outro fato, presenciado pelo professor e escritor Carlos Evandro
Martins Eulálio, que ouviu de uma antiga mestra de Didática Pedagógica o
seguinte conselho: “Difícil não é preparar aula, mas dar aula sem preparar.”
Cito essas duas
histórias verídicas para dizer que Edilson Sousa Júnior prepara suas aulas,
embora seja um professor naturalmente preparado por sua experiência de médico e
por seus altos estudos — doutorado e pós-doutorado.
Não quero fazer
spoiler, e tampouco há necessidade disso, pois basta ler seu romance. Ele é um
narrador competente, que elaborou a trama e as narrativas com clareza, sem
ciladas, sem armadilhas e sem complicações sibilinas ou enigmáticas.
Também não
desejo repetir o que já disse em meu prefácio. Todavia, julgo importante
transcrever os dois trechos seguintes:
“De certo modo,
vejo em sua envolvente narrativa — tanto no enredo principal como em muitos de
seus entrechos — algumas pitadas do que se costuma rotular como romance
histórico e romance-reportagem, porém sobressaindo-se sempre, e com muita
ênfase, a imaginação e a criatividade do autor; vale dizer, sua inventividade
de ficcionista. Todavia, que fique bem claro: este romance é uma comovente
reflexão sobre os naufrágios que se manifestam em diferentes etapas da
existência — sejam eles perda material, desilusão de sonhos ou o esmaecimento
de uma era.”
“Faz uma
verdadeira imersão na história e no cenário da Segunda Guerra Mundial. O
naufrágio real do navio é, na verdade, uma metáfora do fator humano — com suas
misérias, virtudes e vicissitudes — e da decadência da opulenta cidade de
Parnaíba no apogeu do extrativismo econômico, quando essa urbe ergueu
imponentes prédios empresariais e magníficos casarões solarengos e majestosos
sobrados ou palacetes, que ainda hoje nos encantam, conquanto muitos se
encontrem em estado de (quase) ruína.”
O romance tem
como pano de fundo o início da decadência do extrativismo econômico, num
recorte cronológico que se estende de 1942 a 1952, período em que o
protagonista viveu em Parnaíba. Desejo traçar um paralelo entre ficção e
realidade, evocando as lembranças que sua leitura me despertou — de leituras,
fotografias e do que ainda pude testemunhar. O naufrágio do navio pode também
ser lido como metáfora da decadência econômica da velha urbe, que mais tarde
ressurgiria, de outro modo, como uma nova fênix nada mitológica.
Na obra há uma
bela descrição da velha Amarração, atual Luís Correia, nos anos 1940. Renato
Castelo Branco, em Tomei um Ita no Norte, descreve a Parnaíba dessa época, mas
não menciona Amarração. Já Humberto de Campos, no capítulo “De novo em
Parnaíba”, de Memórias Inacabadas, traça uma linda aquarela dessa povoação
marítima, quando retornou de São Luís a Parnaíba por curto período.
Por falar nessa
obra memorialística, li Memórias na segunda metade da década de 1970, por
empréstimo de Alcenor Candeira Filho. No final dessa década, ou início da
seguinte, visitei o professor, jornalista e escritor Antonio Gallas Pimentel e
lhe disse que desejava reler o livro, mas não o encontrava à venda. Ele me
mostrou uma coleção das obras quase completas de Humberto de Campos — bem
impressa, em capa dura — e, generosamente, quis me ofertá-la. Relutei, alegando
que era um presente de considerável valor, mas ele respondeu que, se eu não
aceitasse, daria a outro. Não tive mais como recusar. Essa amizade me fora
recomendada pelo professor Joaquim Furtado de Carvalho, primo de meu pai.
Três décadas
depois, perto da Banca do Louro, encontrei o engenheiro e auditor-fiscal do
Trabalho Paulo César Lima com um belo exemplar de Memórias e Memórias
Inacabadas, de Humberto de Campos, autografado pelo desembargador maranhense
Lourival Serejo. Pedi-lhe para folhear; ao devolvê-lo, ele insistiu que eu
ficasse com o exemplar, dizendo que me seria mais útil. Um ano depois, em
15/10/2011, o Fonseca Neto me presenteou com os dois volumes do Diário Secreto,
do mesmo autor, publicado pelo Instituto Geia em 2010.
Quando fui
morar em Parnaíba, em 1975, muitas das antigas empresas parnaibanas ainda
funcionavam, embora algumas já estertorassem. Pertenciam a tradicionais
famílias locais — Pedro Machado, Moraes S.A., Moraes Souza, Marc Jacob,
Franklin Veras, Poncion Rodrigues e Palácio dos Móveis. A altíssima chaminé da
Moraes já não soltava seu penacho de fumaça, e as demais também se extinguiram.
A Casa Inglesa,
que pertencera a Paul Robert Singlehurst (o “Paulo Inglês”, de longa e frondosa
barba profética), falira, creio, no final da década de 1960. No final do século
XIX, passou a ser propriedade de James Frederick Clark, que a expandiu e fez
dela a mais importante empresa do Piauí. Com sua morte, filhos e netos
assumiram a direção. Em meados da década de 1970, um amigo — sobrinho de uma
senhora com acesso à antiga sede — possibilitou-me visitá-la. Pude, então,
vislumbrar o que era realmente luxo e opulência.
O “náufrago” do
romance chega a Parnaíba em 1942 e hospeda-se na Casa Inglesa, cujos
proprietários estavam em viagem. Dali podia observar o movimento de
embarcações, vareiros, estivadores, porcos-d’água, embarcadiços, comerciários,
comerciantes e aguadeiros. Perto dali, na Quarenta e na Munguba, ficavam os
cabarés do chamado baixo meretrício — personagens que Assis Brasil retratou em
Beira Rio Beira Vida e Souza Lima em Vareiros do Parnaíba e Outras Histórias.
Sobre esta última obra escrevi:
“Em seus
relatos e episódios, extraídos da memória — como ele próprio o diz —, o autor
se reporta a essa época de intensa movimentação comercial no Porto Salgado e no
entorno do Porto das Barcas, com o trabalho e o burburinho de embarcadiços,
carregadores, comerciários, comerciantes e compradores. Nas imediações ficavam
os prostíbulos da Munguba e da Quarenta.”
Descrevi essa
movimentação no Postal III de meu poema 3 Postais de Parnaíba, que recito em
homenagem ao amigo Edilson Sousa Júnior:
POSTAL III
Hoje o Porto
Salgado
sal’do nominal
do naufrágio
de uma barcaça
de sal
é salamargo na
lembrança
dos vareiros e
embarcadiços.
E a água do
Igaraçu
é uma lágrima
de saudade
(ou sal’dade?)
do fastígio de
outrora.
Os parcos
barcos são
poemas de
chegadas e partidas
e símbolos da
decadência.
Em 1834,
segundo a historiadora Júnia Motta Antonaccio Napoleão do Rego, havia dois
estaleiros em Parnaíba para construção de embarcações — sumacas, escunas e
brigues — que navegaram o Igaraçu em épocas distintas. Depois vieram
rebocadores, alvarengas, canoas, vapores, barcos do tipo gaiola e balsas, que
só faziam a viagem de vinda; após o descarregamento, eram desmanchadas para a
venda dos talos de buriti.
Na segunda
década do século passado começou a luta pela construção da Estrada de Ferro
Central do Piauí (EFCP). Poucos quilômetros foram concluídos nos anos de 1915 e 1916.
Em 1923 a maria-fumaça chegou a Piracuruca; em 1933, a Piripiri. Embora a
estação de Campo Maior date de 1952, o trem só chegou efetivamente em 1966. Em
Teresina, apenas no fim da década de 1960 — quando as rodovias já se
consolidavam. Nosso trem, pode-se dizer, perdeu o bonde da história; mas isso
já é outra história.
O protagonista
trabalhou na estação ferroviária, onde conheceu Nestablo Ramos — aviador,
pintor, desenhista e empresário, autor de ilustrações para o Almanaque da
Parnaíba, fundado em 1924 por Bembém e ainda hoje publicado pela Academia
Parnaibana de Letras. Nestablo era amigo de R. Petit, colaborador do anuário
desde o primeiro número.
É plausível
supor que, em seus deslocamentos, Anton — o protagonista, travestido de Pablo —
tenha conhecido intelectuais como Antônio Otávio de Melo, R. Petit, Lívio
Pacheco, Francisco Aires, Armando Madeira, Roberto Lopes, Jesus Martins, Benu
Cunha, Edison Cunha, José Euclides de Miranda, Alarico da Cunha e Francisca
Montenegro. Certamente teria ouvido as estórias do mitômano e mistificador
professor Amstein, cujas narrativas lembravam as de Trancoso e do Barão de
Münchhausen.
Nestablo, amigo
do náufrago, tornou-se uma das grandes admirações de Edilson Sousa Júnior, que
planeja escrever-lhe a biografia. Era um verdadeiro polímata, ativo nas artes
visuais e musicais, no empreendedorismo e na aviação.
Membro do
Aeroclube de Parnaíba, certamente conheceu o aviador Paulo — malabarista do
espaço, que realizava loopings, “folhas secas” e voos rasantes, chegando ao
cúmulo de passar entre as torres da Catedral de Nossa Senhora das Graças, na
Praça da Graça. Por essas ousadias, segundo Tonga (Antônio da Cunha Miranda),
ganhou a alcunha de Paulo Doido.
Nestablo nasceu
em 27 de março de 1887, em Alcântara (MA), e encantou-se em 30 de julho de
1948, nos céus de Parnaíba, ao desferir seu último voo — vítima de infarto
fulminante.
R. Petit
(Raimundo de Araújo Chagas), desde o número inaugural, foi o poeta mais
emblemático do Almanaque. Recentemente, o escritor e advogado Filadelfo
Barreto, seu neto, produziu uma primorosa obra biográfica e crítica — de
leitura agradável e atraente, quase um romance.
Aconselhado
pelo prefeito de então, também médico, o poeta foi orientado a deixar Parnaíba,
por haver contraído lepra (ou hanseníase, como se diz hoje). Caso contrário,
seria internado compulsoriamente — à época, uma espécie de prisão perpétua.
Acredita-se que
o vate, esgueirando-se pelas sombras e frestas de certa madrugada fria de 1944,
tenha deixado sua muito amada Parnaíba para nunca mais retornar.
Em R. Petit:
Vida e Poesia, Filadelfo Barreto cita Berilo Neves:
“Parnaíba
jamais cometeu o erro de fazer do ouro a razão do seu destino e o fim de sua
existência. R. Petit versejava entre dois embarques de cera de carnaúba e, por
entre pilhas de fardos de algodão, explorava seu próprio talento.”
Assim, poetas e
escritores inspiravam-se e transpiravam; cortejavam as musas e laboravam com
afinco.
Tendo o
protagonista chegado a Parnaíba em 1942, deve ter tomado conhecimento da
construção do Canal de São José — uma arrojada obra do empresariado parnaibano,
recentemente concluída. Era um sonho antigo, que visava encurtar a distância
para Tutóia e tornar o Igaraçu mais caudaloso, melhorando, assim, a
navegabilidade e permitindo o tráfego de embarcações de maior calado.
Consultei o
confrade e amigo Felipe Mendes sobre quando o canal teria sido finalizado. O
grande economista e professor, de forma diligente e rápida, enviou-me a
seguinte transcrição da página 183 da primeira edição do livro Geografia Física
do Piauí, de João Gabriel Baptista:
“Para encurtar
a distância entre as cidades de Tutóia (MA) e Parnaíba (PI), o governo
construiu, entre 1930 e 1940, o Canal de São José, cortando a Ilha Grande de
Santa Isabel — canal este que Dodt e Iglesias haviam previsto como necessário.
O antigo leito do Igaraçu, a montante do encontro com o São José, está se
obstruindo e, em breve, esta parte da ilha estará incorporada ao continente,
com uma pequena lagoa ribeirinha.”
Além do esforço
dos comerciantes de Parnaíba, consta que o senador Joaquim Pires Ferreira,
barrense, conseguiu repassar verbas federais para que essa notável e importante
obra pudesse ser concluída.
Não fosse o
Canal de São José, creio poder dizer que, hoje, o Igaraçu praticamente já não
existiria — como já não existe em muitos trechos a montante de seu encontro com
esse canal —, o qual deu perenidade, força e beleza ao velho Igaraçu, no trecho
em que ele corta o bairro São José, a Quarenta, a Munguba, o Porto das Barras e
a glamourosa Beira Rio, em demanda do Atlântico e da lírica e bucólica
Amarração.
Desse modo, eu
poderia dizer que, se o Egito é uma dádiva do rio Nilo, o Igaraçu, tal como o
conhecemos hoje, é uma dádiva do Canal de São José, que continua a lhe injetar
água, vida, vigor e encanto.
Finalizando
minhas palavras, posso afirmar que este romance foi feito com esmero e muita
dedicação, posto que seu autor lhe concedeu muitos anos de pesquisa, de labor e
de lavor em seu escrito. Sua linguagem é clara e direta, sem preciosismos
estilísticos ou gramaticais. As frases são elegantes, fluentes, claras e
objetivas, de modo que sua interpretação é quase sempre instantânea.
Médico
respeitado, seguiu, na sintaxe e na urdidura da trama e dos entrechos, as
melhores lições da precisão cirúrgica: seus períodos são precisos e concisos,
com cortes e arremates aplicados no local exato, com suturas perfeitas, que
terminam por lhe dar elegância e beleza.
(*) Reconstituição de meu discurso, pronunciado a partir de roteiro mnemônico, no auditório Testa Branca da Academia Parnaibana de Letras, em 17 de outubro de 2025.

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