DOIS MUQUIRANAS
Elmar Carvalho
João Pedro viveu até os dezoito anos de idade na zona rural de Cabrobó. Desde bem novo, o pai o explorou o máximo que pôde. Primeiro, em serviços mais leves, como levar água e comida para ele e seus outros filhos mais velhos. Depois, o fazia buscar água em cacimbas distantes, escanchado sobre uma rústica cangalha, com duas ancoretas de cada lado, a cavalgar um lerdo jumento. Quando atingiu catorze anos, foi para a roça, para fazer os serviços menos árduos, como semear e fechar a cova, apanhar garranchos etc. Aos dezesseis, já taludo, pois era um caboclo fornido, entroncado, embora de baixa estatura, foi posto para fazer todos os serviços, inclusive os de derrubada, a manejar um machado, e os de capina, agarrado ao cabo da enxada. Inteligente, com alta dose de esperteza, razão pela qual era considerado ladino, sentiu que seria um quase escravo de seu pai, até constituir sua própria família. Sabia que seria mais um matuto a amargar um trabalho estafante e de parco rendimento. Assim, mesmo contra a vontade do pai, quando fez dezenove anos, resolveu tentar a sorte na sede do município.
Começou a trabalhar num armazém, que vendia cereais e outras mercadorias a grosso. Também foi explorado a valer. Era um faz-tudo. Estivador, quando pegava os sacos pesados, deles de mais de 50 quilos, tanto para carregar, como para descarregar os caminhões. Varredor, no início e no final do expediente. Mas, muito vivo e trabalhador, foi ganhando experiência e a confiança do patrão, que lhe tinha certa estima, a estima que um homem tem pelo seu burro de carga. Sentiu que tinha de ter sua própria independência, seu próprio negócio. Mas não falou disso para ninguém, pois temia olho gordo e a desconfiança do patrão. Este terminou lhe oferecendo um pequeno quarto no fundo do empório, mesmo porque lhe fazia economizar despesas com vigilante. Em contrapartida, João Pedro se livrava do aluguel do cubículo em que morava. Também o patrão, para agradá-lo, lhe fornecia, diariamente, um prato de comida, trazido de sua casa, que ficava perto. Claro que a refeição era composta por muito arroz e feijão e apenas dois pequenos pedaços de carne de segunda ou terceira. Já era, naturalmente, muito econômico, e com o objetivo de montar sua própria quitanda passou a roer as unhas, como diz o ditado. Poupava quase todo seu salário. Nada de farras, nada de cabaré, nada de mulheres. Era tudo poupado, ainda que, às vezes, as tripas ficassem a roncar, queixosas da pouca comida. Arranjou uma namorada, e logo notou que ela era trabalhadora e também muito econômica. Quando amealhou o suficiente para iniciar um pé de bodega, pediu as contas e se estabeleceu na praça de Cabrobó. Tratou de casar e de explorar a mulher, que era muito prendada, e fazia quitutes diversos, bolos e doces, que ele vendia na pequena mercearia, tão pequena que as pessoas chamavam de casca de coco. Para não me alongar, na década de 1960 tornou-se o mais importante merceeiro da cidade, sendo considerado um dos homens ricos da comunidade, embora com a pecha de extremamente sovina, miserável mesmo.
O único homem que se ombreava a ele, em riqueza e sovinice, era o velho Ildefonso Polidoro, que tinha veleidades intelectuais e era considerado inteligente, além de dono de uma conversa agradável, desde que nada gastasse com os ouvintes, nem mesmo aguado cafezinho. Quando se encontravam palestravam um pouco, sobre amenidades e sobre o comércio local. Passaram a ser amigos, conquanto não se frequentassem. Para se ter uma ideia do quanto Polidoro era apegado aos metais, basta que eu conte um fato anedótico, porém verídico, de que ele foi protagonista. Quando precisou de novo empregado, achou que deveria encontrar um que fosse uma espécie de 3 em 1, ou seja, um servidor multifuncional, como hoje se diz. Ele mesmo se encarregou de fazer o teste seletivo. O candidato tinha que ter noções de contabilidade, ter boa redação e ainda possuir habilidade para vendedor, para que sempre tivesse o que fazer, e o salário pago tivesse uma boa recompensa para a firma. Apareceram quatro candidatos que diziam preencher os requisitos. Fora outras perguntas e questões, que me dispenso de comentar, havia a principal, que consistia em indagar do candidato o que ele faria com um diminuto retângulo de papel, que lhe era apresentado. Os dois primeiros disseram não imaginar o que poderiam fazer com tão insignificante retalho. O terceiro, porém, não titubeou, e logo disse que seria suficiente para embrulhar pedras de isqueiro, que então estava na última moda. Foi aprovado e admitido imediatamente no emprego. Esse episódio basta para que se tenha uma ideia do perfil de Ildefonso Polidoro.
Um dia, com o crescimento da amizade, João Pedro, por volta de sete e meia da noite, resolveu visitar Polidoro. Bateu a aldraba, que não precisava de energia elétrica e não precisaria nunca de conserto. O dono da casa perguntou quem era, e abriu a porta ao receber a resposta. A sala de visitas estava completamente escura, sem luz elétrica ou outra qualquer. João Pedro perguntou o motivo de tamanha treva. O dono da casa disse que estava sozinho, que não estava fazendo nada, e portanto não precisava de iluminação, até porque estava apenas pensando na vida e nas coisas. Acrescentou que, como a visita não era de cerimônia e um não precisava ficar olhando para a cara do outro, poderiam ficar no escuro, para não haver desperdício desnecessário. Conversaram durante quase uma hora, quando o visitante anunciou que já ia embora. O dono da casa, num gesto de magnanimidade e lhaneza, resolveu acender as luzes, como prova de sua amizade e deferência para com o colega e amigo. Estarrecido, percebeu que João Pedro arriara as calças. Um tanto chateado, perguntou o motivo desse procedimento estranho. O visitante, sem nenhuma alteração de voz, candidamente respondeu que, como estavam sozinhos e em completa escuridão, resolvera economizar os fundos da calça, que já estavam um tanto puídos.
Elmar Carvalho
João Pedro viveu até os dezoito anos de idade na zona rural de Cabrobó. Desde bem novo, o pai o explorou o máximo que pôde. Primeiro, em serviços mais leves, como levar água e comida para ele e seus outros filhos mais velhos. Depois, o fazia buscar água em cacimbas distantes, escanchado sobre uma rústica cangalha, com duas ancoretas de cada lado, a cavalgar um lerdo jumento. Quando atingiu catorze anos, foi para a roça, para fazer os serviços menos árduos, como semear e fechar a cova, apanhar garranchos etc. Aos dezesseis, já taludo, pois era um caboclo fornido, entroncado, embora de baixa estatura, foi posto para fazer todos os serviços, inclusive os de derrubada, a manejar um machado, e os de capina, agarrado ao cabo da enxada. Inteligente, com alta dose de esperteza, razão pela qual era considerado ladino, sentiu que seria um quase escravo de seu pai, até constituir sua própria família. Sabia que seria mais um matuto a amargar um trabalho estafante e de parco rendimento. Assim, mesmo contra a vontade do pai, quando fez dezenove anos, resolveu tentar a sorte na sede do município.
Começou a trabalhar num armazém, que vendia cereais e outras mercadorias a grosso. Também foi explorado a valer. Era um faz-tudo. Estivador, quando pegava os sacos pesados, deles de mais de 50 quilos, tanto para carregar, como para descarregar os caminhões. Varredor, no início e no final do expediente. Mas, muito vivo e trabalhador, foi ganhando experiência e a confiança do patrão, que lhe tinha certa estima, a estima que um homem tem pelo seu burro de carga. Sentiu que tinha de ter sua própria independência, seu próprio negócio. Mas não falou disso para ninguém, pois temia olho gordo e a desconfiança do patrão. Este terminou lhe oferecendo um pequeno quarto no fundo do empório, mesmo porque lhe fazia economizar despesas com vigilante. Em contrapartida, João Pedro se livrava do aluguel do cubículo em que morava. Também o patrão, para agradá-lo, lhe fornecia, diariamente, um prato de comida, trazido de sua casa, que ficava perto. Claro que a refeição era composta por muito arroz e feijão e apenas dois pequenos pedaços de carne de segunda ou terceira. Já era, naturalmente, muito econômico, e com o objetivo de montar sua própria quitanda passou a roer as unhas, como diz o ditado. Poupava quase todo seu salário. Nada de farras, nada de cabaré, nada de mulheres. Era tudo poupado, ainda que, às vezes, as tripas ficassem a roncar, queixosas da pouca comida. Arranjou uma namorada, e logo notou que ela era trabalhadora e também muito econômica. Quando amealhou o suficiente para iniciar um pé de bodega, pediu as contas e se estabeleceu na praça de Cabrobó. Tratou de casar e de explorar a mulher, que era muito prendada, e fazia quitutes diversos, bolos e doces, que ele vendia na pequena mercearia, tão pequena que as pessoas chamavam de casca de coco. Para não me alongar, na década de 1960 tornou-se o mais importante merceeiro da cidade, sendo considerado um dos homens ricos da comunidade, embora com a pecha de extremamente sovina, miserável mesmo.
O único homem que se ombreava a ele, em riqueza e sovinice, era o velho Ildefonso Polidoro, que tinha veleidades intelectuais e era considerado inteligente, além de dono de uma conversa agradável, desde que nada gastasse com os ouvintes, nem mesmo aguado cafezinho. Quando se encontravam palestravam um pouco, sobre amenidades e sobre o comércio local. Passaram a ser amigos, conquanto não se frequentassem. Para se ter uma ideia do quanto Polidoro era apegado aos metais, basta que eu conte um fato anedótico, porém verídico, de que ele foi protagonista. Quando precisou de novo empregado, achou que deveria encontrar um que fosse uma espécie de 3 em 1, ou seja, um servidor multifuncional, como hoje se diz. Ele mesmo se encarregou de fazer o teste seletivo. O candidato tinha que ter noções de contabilidade, ter boa redação e ainda possuir habilidade para vendedor, para que sempre tivesse o que fazer, e o salário pago tivesse uma boa recompensa para a firma. Apareceram quatro candidatos que diziam preencher os requisitos. Fora outras perguntas e questões, que me dispenso de comentar, havia a principal, que consistia em indagar do candidato o que ele faria com um diminuto retângulo de papel, que lhe era apresentado. Os dois primeiros disseram não imaginar o que poderiam fazer com tão insignificante retalho. O terceiro, porém, não titubeou, e logo disse que seria suficiente para embrulhar pedras de isqueiro, que então estava na última moda. Foi aprovado e admitido imediatamente no emprego. Esse episódio basta para que se tenha uma ideia do perfil de Ildefonso Polidoro.
Um dia, com o crescimento da amizade, João Pedro, por volta de sete e meia da noite, resolveu visitar Polidoro. Bateu a aldraba, que não precisava de energia elétrica e não precisaria nunca de conserto. O dono da casa perguntou quem era, e abriu a porta ao receber a resposta. A sala de visitas estava completamente escura, sem luz elétrica ou outra qualquer. João Pedro perguntou o motivo de tamanha treva. O dono da casa disse que estava sozinho, que não estava fazendo nada, e portanto não precisava de iluminação, até porque estava apenas pensando na vida e nas coisas. Acrescentou que, como a visita não era de cerimônia e um não precisava ficar olhando para a cara do outro, poderiam ficar no escuro, para não haver desperdício desnecessário. Conversaram durante quase uma hora, quando o visitante anunciou que já ia embora. O dono da casa, num gesto de magnanimidade e lhaneza, resolveu acender as luzes, como prova de sua amizade e deferência para com o colega e amigo. Estarrecido, percebeu que João Pedro arriara as calças. Um tanto chateado, perguntou o motivo desse procedimento estranho. O visitante, sem nenhuma alteração de voz, candidamente respondeu que, como estavam sozinhos e em completa escuridão, resolvera economizar os fundos da calça, que já estavam um tanto puídos.
Prezado poeta,
ResponderExcluirO relato do exercício deste pecado capital fez-me lembrar do livro "Os Segredos da Mente Milionária" que afirma que o "modelo de dinheiro" que você adota tem tudo a ver com os exemplos os quais você observou na sua mocidade. A teoria sócio-interacionista de Vigotisky afirma que essa troca contribui para a formação da personalidade humana.
A minha opinião a respeito é que tamanha avareza torna infelizes aos que a exercitam. Faz com que sua vida seja "recheada" por um imenso vazio. Como disse o rei Salomão: "É um esforço para alcançar o vento."
Notei que fazer vídeos tendo como tendo como tema uma determida cidade é hobby que nutres. Faz parte de teus planos produzir um vídeo sobre Regeneração?
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