segunda-feira, 30 de agosto de 2010

ARTE-FATOS ONÍRICOS E OUTROS



O ESPANTALHO CHARLES BRONSON

Elmar Carvalho

João Ribeiro era um caboclo muito trabalhador, e sempre ganhava as disputas sobre quem capinava mais rápido, quando eram feitos mutirões desse tipo de serviço, através de troca de diária ou troca de serviço. Esse é o sistema pelo qual um campesino trabalha para outro, para que este trabalhe para ele em outra oportunidade. Todos na localidade Morro Branco gostavam de trocar serviço com ele, porque sempre saíam ganhando, uma vez que João, seja para si ou para outra pessoa, era sempre disposto e despachado.

As chuvas foram boas. Bem distribuídas. Fortes, mas não torrenciais e tempestuosas, de modo que sua roça era uma verdura só. O milho já começava a embonecar, com os pendões despontando em alguns pés de milho. O feijão já principiava a botar os brotos, de onde nasceriam as favas. E o arrozal era só beleza; um verde maravilhoso se espalhava pela várzea. Até parecia arroz de presépio, sem uma falha sequer. Os cachos começavam a se desabotoar. Algumas melancias já amadureciam, assim como os melões. As pessoas admiravam a beleza e a fartura daquele roçado. Mas logo João notou que os passarinhos já revoavam sobre sua roça. Certamente, estavam a comer os grãos mais precoces. Por isso, resolveu encomendar a mestre Amaro, o mais afamado fabricante de Judas da região, um espantalho. Levou uma calça comprida e uma camisa de seu filho mais novo, ambas em bom estado, pois queria um boneco bonito. Recomendou ao artesão que fizesse um espantalho bem feito, com todos os órgãos dos sentidos bem acabados. Queria umas orelhas bem feitas, como orelhas de anjo, e uns olhos bem vivos e bem abertos, pois desejava que o seu “vigia” de pano cumprisse bem sua missão.

No dia da “inauguração” do boneco, resolveu fazer uma verdadeira festa, com a presença de seus filhos pequenos e das outras crianças do povoado. Sua mulher compareceu, juntamente com três amigas. Levaram sucos e até mesmo refrigerante, que era considerado um luxo na região, só usado raramente e com parcimônia nos dias de festa. Havia bolos doces e salgados. Levaram até mesmo pudim e creme. Partiram algumas melancias e melões que já estavam maduros. João estava feliz e levou um litro de vinho. Mandara fazer uma estaca de madeira de lei, devidamente lavrada e com uma cruzeta, para afixar o seu espantalho. Ficou com pena dele, e resolveu colocar-lhe na cabeça seu próprio chapéu, para não deixá-lo exposto ao sol cada vez mais inclemente. Ainda bem que a camisa do boneco era de mangas compridas, o que lhe daria mais proteção contra o sol e os mosquitos. Após tomar dois copos, achou por bem batizar o espantalho e fazer um discurso em sua homenagem. Molhou-lhe a cabeça com meio copo da bebida, e lhe deu o nome de Charles Bronson, seu ídolo televisivo, o homem mais valente que já conhecera. No discurso, não esqueceu de dizer que o seu espantalho seria o vigia mais valente, destemido e esperto da região; tão valente quanto o verdadeiro Charles Bronson.

No início, as aves temeram a presença do boneco. Contudo, começaram a notar que ele ficava o tempo todo no mesmo lugar, e que não movia os braços, a não ser muito levemente, quando ventava forte. Depois, perceberam que ele não girava a cabeça; que ficava olhando fixamente numa única direção. Uma ave mais esperta e mais afoita começou a comer os grãos mais distantes do boneco, e que ficavam por detrás dele. Como não reagisse, ela e as companheiras foram se aproximando dos grãos que lhe ficavam mais próximo. Até que de todo perderam o respeito e passaram a comer os cachos que ficavam aos pés dele, e à sua frente.

O espantalho começou a ficar cada vez mais triste, à proporção que a ousadia e o desrespeito dos passarinhos aumentavam. Seu dono já não lhe dava mais atenção e já não o prestigiava como no começo. Começou ele próprio a vigiar o roçado, juntamente com seus filhos. Soltavam tiros com a velha espingarda bate-bucha e disparavam foguetes, para espantar as aves que lhe desmoralizavam. Sua indignação e tristeza chegou ao auge no dia em que um insolente e sarcástico bentevi, num deboche sem precedente na biografia de qualquer espantalho, defecou em sua cabeça. Nessa ocasião não mais tinha chapéu, pois João Ribeiro, vendo que seu vigia já não merecia confiança, o retirara para dar a um de seus filhos, que lhe ajudava a espantar os pássaros. Charles Bronson, que o dono já chamava de covarde e “calça-frouxa”, chorou amargamente. Chorou e pediu ao anjo da guarda dos espantalhos que o libertasse daquela vergonha e humilhação. O anjo se apiedou do seu sofrimento e o transformou num duende protetor da fauna e da flora. Tornou-se o mais perfeito protetor das árvores pequenas e dos passarinhos, sua especialidade.

No dia seguinte, quando João e seus filhos vieram vigiar a roça, não mais encontraram o espantalho. Como era época da malhação de Judas, acharam que algum menino traquina da localidade o havia retirado para servir de Judas. João pensou que seria uma destinação bem empregada para um espantalho que não cumprira o seu dever, chegando ao ponto de ser cagado na cabeça por um pássaro irreverente. Um dos filhos de João, o menorzinho, descobriu uns passos na lama, e jurou que eram as pegadas do boneco; que tinha certeza disso, pois a chinela fora sua. Todos zombaram dele. Afinal, onde já se vira espantalho se libertar do tronco e sair caminhando por aí?...

3 comentários:

  1. Prezado poeta,
    É incrível como a Literatura nos prende a atenção e faz viajar pelos caminhos da imaginação!
    Neste conto eu me envolvi bastante, não sei se por causa da riqueza de detalhes ou por ter como cenário um lugar do meu conhecimento ou por começar com os "pés no chão" e depois decolar pelo surrealismo. Independente do motivo...
    ...É muito gostosa a sensação do "te le trans por te" proporcionado pela leitura.

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  2. Caro Prof. Nelson Rios,
    Pelo que já pude observar em outros comentários de sua lavra, vc tem forte poder de observação e horas rodadas de leitura, de modo que tenho a convicção que vc bem poderia ser um crítico, um ensaísta ou cronista.

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  3. Caro poeta Elmar,
    Suas palavras deveras me envaidecem, todavia, diante da minha insignificância de conhecimentos literários (haja vista que em tempos idos optei pela Matemática e depois por concepções de ensino e aprendizagem)vejo-me obrigado a pensar que ser um crítico, um ensaísta ou um cronista seria muita ousadia da minha parte, porém, acredito piamente que se essa interação veiculada pelo blog do poeta continuar, poderei dentro de alguns anos olhar e ver um pouco daquilo que só o olhar treinado de bardos como o nobre amigo podem ver.
    Há dez anos, em conversa com um filósofo meu amigo, ouvi dele que "vício é a consequência de uma sucessão de atos maus". Naquela época eu só concordava com tudo o que ouvia e retinha na mente, hoje desenvolvi juízos de valor e afirmo que o conceito de vício explanado pelo meu ingênuo amigo poderia ser reformulado da seguinte maneira: "Vício é o hábito desenvolvido a partir da repetição de atos bons ou maus trazendo ao praticante algum tipo de satisfação". (Ora, ora! Não é que estamos filosofando!!!) Conceituar vício não foi difícil pra mim visto que para fazê-lo eu só tive que relembrar do processo no qual tornei-me viciado em suas crônicas.
    Uma prova de que este blog é um patrimônio cultural cada vez mais reconhecido como tal é que o seu número de seguidores é cada vez maior. (Veja só: Já somos 21!) Parabéns pelo seu talento! E glória à sua filha que teve a iniciativa de criar este canal de desenvolvimento cultural!

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