segunda-feira, 4 de outubro de 2010

ARTE-FATOS ONÍRICOS E OUTROS


O CHAPÉU ESFAQUEADO

Elmar Carvalho

Na cidadezinha de Livramento, naquele final de tarde, o tenente Antão Rezende estava entediado. Nunca mais ocorrera um homicídio, nem mesmo uma simples briga, com socos, tapas e pontapés. Sentado num tamborete, à sombra do prédio da delegacia, olhava a paisagem seca de outubro, que a colina e o terreno baldio lhe permitiam ver, ao longe. Tinha pouco estudo. Mal terminara o primário, mas possuía muita experiência e sabedoria de vida. Tinha o prestígio político da família e o apoio do chefe de Polícia do Estado. Embora a época fosse a do auge da ditadura Vargas, em pleno vigor a chamada “Polaca”, o Antão não se considerava autoritário nem atrabiliário, conquanto muitos o tachassem de linha dura. Olhava o cajueiro, vergado de flores e frutos grandes e amarelos. Nem uma folha se mexia, no tempo seco e quente. De repente sentiu a canícula nordestina afagar sua pele, num beijo fugaz e ardente, como a baforada de uma fornalha. Ao longe, avistou um caboclo a cavalo. Na frente da delegacia, diariamente, passavam os rurícolas, que vinham de Boa Vista vender seus produtos e comprar coisas na cidade, ou à procura de tratamento no pequeno posto médico. A brisa começou a se transformar num vento mais forte. O céu começou a escurecer rapidamente. Tudo parecia prenunciar uma daquelas extemporâneas chuvas, que o povo chamava de chuva dos cajus. O delegado notou que o matuto vinha um tanto apressado, com o cavalo esquipando na terra nua.

Quando o cavaleiro já se aproximava da frente da delegacia e cadeia pública, veio um pé de vento mais forte e derrubou-lhe o chapéu de palha. Um tanto aborrecido, o homem desceu da montaria e foi buscar o chapéu, que o vento arrastara durante alguns metros, até deixá-lo enleado numa pequena touceira de mato. Repôs o objeto na cabeça. Colocou o pé no estribo e fez força para subir. Quando já se preparava para passar a perna esquerda para o outro lado da sela, nova ventania carregou o chapéu, desta vez para mais longe, até o empecilho de uma cerca de arame farpado. Agoniado, já com uma ponta de raiva, foi buscar o chapéu, que só colocou na cabeça, quando pegou as rédeas do animal. Ao colocar novamente o pé no estribo, como se fosse uma birra ou uma brincadeira de mau gosto, um vento forte, quase um redemoinho, fez o chapéu empreender um belo voo, a rodopiar e a planar como se fosse uma grande ave ou um pequeno disco voador. O sombreiro do matuto foi pousar a poucos metros de onde estavam o delegado e o cabo Felismino, de alcunha Cascavel. O caboclo, afogueado, quase apoplético, ainda mais porque tomara um quarteirão de pinga na bodega de Zé Lima, na entrada da cidade, não respeitou as autoridades, e puxou da bainha uma grande faca, do tipo peixeira, afiada a capricho, como se fosse uma navalha de barbeiro, e desferiu várias facadas no chapéu, que até fazia dó.

O delegado, que tudo observava, não vacilou um segundo, e incontinenti mandou o cabo Cascavel prender o caipira, e dar-lhe um chá de cadeia de 48 horas, para que ele acalmasse os nervos e respeitasse a presença da autoridade. Quando indagado, por parente do caboclo, sobre o motivo da prisão, respondeu que quem fazia aquela maldade com o seu próprio chapéu, que só lhe fazia o bem, ao defendê-lo do sol, seria capaz de fazer muito mais, quando contrariado, contra o seu semelhante. Se algo fizera alguma coisa errada, teria sido o vento; que ele costurasse de facadas o vento, e não o chapéu. Mandou que Cascavel guardasse o sombreiro esfaqueado, como prova do crime. Porém, cautelosamente, houve por bem não instaurar o inquérito. Podia ter pouco estudo, mas não era besta. Aliás, se considerava sábio e justo, a distribuir o que considerava ser a sua justiça salomônica.

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