DANIEL C. B. CIARLINI
Pode até parecer loucura, peço que me creiam: Não é! Na madrugada de hoje aconteceu algo que julgo além do comum, e isso me atormentou deveras. Passavam das duas horas, creio eu, não deu tempo de conferir no relógio (também, que a escuridão não ajudava), e após concluir alguns apontamentos, ler algo pendente, resolvi, por bem, a fim de amenizar, quem sabe (tudo me parecia incerto), o peso da insônia, entregar-me aos não-chamados de meu aposento noturno. Não afirmo que me foi uma experiência infeliz, tampouco aterrorizante, como é na concepção de alguns; digamos ser, o que vivi por aqueles instantes, algo transcendental (seria esta a palavra?) e inconstante... Incoerente? Não sei. É sabido que só se entende o que quero dizer quem um dia passou por um momento tão singular como este que estou a vos relatar e que eu resumiria numa só palavra: Único; já que tudo que impressiona, em primeira instância, marca e se torna inesquecível. Com as luzes apagadas, apenas ao som de um simples ventilador que parecia esforçar-se a embalar meu sono, de repente, fui pego por vozes e gritos de sofrimento. Elas participavam de minha mente como que de maneira alucinógena. Pareciam tão presentes, tão reais que não me desacredito da estória que se lapidava..., parecia, sim, meu cérebro as absorver aos fluídos onipresentes de uma transmissão involuntária. Naqueles poucos minutos, entregue a uma inquietação que soerguia minha essência tão despedaçada pelo perceptível, tomei de uma caneta, um papel, dantes à deriva, e assim escrevi o seguinte descerramento:
O homem era impaciente. Gritava com a filha como se a coitada tivesse a noção da rudeza de um adulto. Suas palavras ásperas entrecortavam-se aos choros e embargos temerosos; o sujeito afrouxava de suas calças o cinturão. Não iria bater na menina, pelo menos era o que pensava inicialmente, porém, observar aqueles olhos infantis apavorados, banhados de lágrima e suor, com os pulmões faltando o fôlego, já tão incontido, parecia-lhe algo para lá de aprazível. “Sou um monstro?”. Ele não era normal, e talvez nem soubesse. A fim de aterrorizar ainda mais a inocente alma, desferia inúmeros golpes pelas laterais que circunscreviam o miúdo ser. Tremia-se. Não era assim coisa tão boa, pelo menos para alguém que se julgue normal, observar aquelas pequeninas mãos que de tão trêmulas, a cada chicotear (como que prevendo serem as suas carnes as próximas vítimas dos ataques), demonstravam não apenas um nervosismo, mas desespero; era impossível aperceber-se dos detalhes. O que se via, em tal cena, nas mãozinhas, a que me refiro, era somente o róseo do anel de plástico e a pulseira brilhante de um falso ouro esverdeado; aquele, veio de brinde na bonequinha que ganhou dos avós no último natal...
- Mas paizinho, por favor...
- Cala a boca, sua moleca – e um novo e ensurdecedor chicotear chilreava naquele velho assoalho.
- Juro, pai, – sem conseguir pronunciar as palavras, prosseguia a garota – juro que nunca mais, nunca mais, pai, vou incomodar o senhor com os assuntos de meus livros...
- Você sabe o que significa 100 reais, mocinha? Sabe quanto dá isso de dinheiro?
- Não paizinho, mas é que...
- ... Isso é uma fortuna – a voz dele não era amena, era rude, uma tremenda gritaria. Pingos de saliva voavam em direção aos olhos da menina, que, de tanto medo, esforçava-se em não pestanejar. Poderia, ele, o seu pai, achar aquilo um insulto: “a saliva é minha, é do seu pai; tem agora nojo do seu pai, Gabriela?” – Você tem que me respeitar, sua moleca – e outra chicotada atingia o piso.
Gabriela era um a menina dedicada, de família simples, nunca teve a oportunidade de estudar em bons colégios – a rede pública era um desastre. Nunca teve, sequer, um livro que não fosse emprestado ou a título de devolução, a cada final de ano, à escola; mas naquela tarde, a garota, que de uns tempos para cá tinha tomado um enorme apreço pela leitura, havia pedido, com orçamento em mãos, uma meia-dúzia de clássicos da literatura mundial, ao que o pai a teria repreendido:
- Isso é coisa de desocupados, menina. Vai, vai... Vai brincar de bonecas, vai! Vai arrumar alguma coisa para fazer na cozinha.
- Mas pai, eu queria tanto... Pensei que por meu aniversário ser na próxima semana eu pudesse ter ao menos um.
- E você veio aqui me fazer chantagem, é garota?
- Não pai...
- ... É sim! Você está ficando igualzinha à sua mãe. Quanto custa essas porcarias?
- Noventa e seis reais...
- ... Quanto?! Não ouvi direito!
- Noventa e...
- Está maluca?! Você acha que dinheiro é encontrado na lixeira, por acaso, menina? E outra: Acha mesmo que vou desembolsar todo esse valor para comprar de livro? Ah! Faça-me o favor...
- ... Mas papai, aprendi na escola que livro é cultura, é o maior investimento que se faz ao crescimento de uma pessoa.
- Crescimento?! Investimento?! Ah! Grande porcaria mesmo, Gabriela, o que faz alguém crescer bem nesta vida são apenas duas coisas, preste bem atenção: Boa comida (e para isso já ralo muito para colocar dentro de casa) e dinheiro no bolso; o cara só vale o que tem!
- Mas pai, é que eu pensava...
- ... Você não deve pensar é em nada. Isso, já te disse, é um absurdo, compreende? Não baixe a vista, estou falando com você, olhe para mim. E quer saber de outra coisa? Essa sua carinha de choro, de menina desabrigada, de que perdeu alguém num desastre de avião e não sabe o que fazer, de que está morrendo, já está me irritando. Por favor, – ele repreendia com mais veemência – por favor, repito, Gabriela, saia já da minha frente antes que eu perca as estribeiras de uma vez só e te machuque de verdade, por hoje basta – e como se não bastassem os leves insultos e repressões à própria filha, conclui: – Sai daqui que, abusado hoje, não quero mais nem ouvir a sua voz fina irritante.
Gabriela parecia desiludida. Cabisbaixa seguiu o caminho do modesto quartinho que tinha nos fundos da casa. A esperança em se ler o desejado esvaia-se perdido na enorme vontade de debruçar-se em algo que julgava o maior anseio... “Tantos, tantos, meu Deus, podem comprar um livro, mas gastam com besteiras, é a grande diferença: Quem tem não quer e quem não tem só sonha afogado nas ilusões”, ela pensava (seria aquele um pensamento infantil? Por certo, Gabriela estava além do seu tempo...). Lembrava da mãe, do quanto era carinhosa, do quanto a tratava como uma verdadeira bonequinha de pano... Uma lágrima escorria pela sua face quando as costas da mão direita a espalhou exacerbadamente, numa mistura de lágrima, nacarada tez e restos de maquiagem... A menininha crescia e, em flashes, recordava de Gardênia feliz, na penteadeira, conversando com ela, ao tempo em que se aprontava para dormir ao lado do pai, que naquele tempo era outro: Escova, perfume, pó-de-arroz... Agora entendia que tudo aquilo era vaidade, uma vaidade não-moderna, uma vaidade tão rara hoje em dia – era a sua mãe um modelo. A sua querida e amada mãe, pura e angelical – quanto orgulho sentia...
- Mamãe a senhora é tão bonita...
- Você acha, filha?
- Sim eu acho, parece um anjo...
- Ah, é?
- E quando passa batom fica parecendo uma deusa.
- Ah, minha linda, muito obrigada! Mamãe te ama tanto, sabia?
- Eu também, mamãe.
- Olha, filha, nunca esqueça de uma coisa: As mulheres têm que saber se cuidar.
- Hum...
- As mulheres nunca devem perder a essência feminina, a essência de se ser mulher, delicada. Nunca nos devemos negar.
- Delicada, mamãe?
- Sim, querida, e ser delicada não significa ser fraca, significa ser mulher. As mulheres são muito fortes, mais até que os próprios homens, você haverá de um dia saber quando estiver na idade certa.
- A senhora gosta muito de se cuidar, não é verdade?
- Claro, querida, toda mulher que se preze nunca perde a postura, veja eu, por exemplo, durmo sempre linda ao lado de seu pai, e isso faço com o maior gosto, ele é um homem maravilhoso... – e o sorriso puro da mãe esvaia-se, como fumaça, da memória.
- Gabriela ainda está acordada?
- Estou me aprontando para dormir, “paizinho”...
- Não quero saber, apague essa luz, vou contar até dez...
- Espera só um minutinho pai...
- Um...
Corria contra o tempo.
Rapidamente, depois de todo aquele devaneio de lembranças, olhava para todos os lados como que querendo se situar, saber o que estava mesmo procurando: “o que, o que mesmo, meu deus... Ai! Me ajude, pai celestial...”.
- Dois...
Dizia baixinho, consigo mesma:
- Certo, tudo aqui: Camisola, lençol...
- Três...
- ... Meu relógio! Tenho que tirar meu relógio, papai detesta que eu durma com ele no braço...
- Quatro...
- Ai! Os meus dentes! Não, não posso escová-los mais, não tenho mais...
- Cinco...
- ... tempo!
- Tá bom, já estou indo!
- Seis...
- Que saudades de mamãe...
- Sete...
- Estou desligando...
- Oito... Muito bem! Vá dormir, amanhã temos um dia muito grande pela frente.
A lua descia, o sol surgia, e mais uma vez o ciclo da vida era reiniciado.
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