quinta-feira, 30 de junho de 2011

AS ALMAS QUE SE QUEBRAM NO CHÃO


SÉRGIO SOUZA

As almas que se quebram no chão“, quarto romance de Karleno Bocarro, poderia ser chamado de retrato de uma época. Embora cumpra, e bem, esse papel, com a geração que viu a queda do muro de Berlim e viveu seus efeitos (ainda que um tanto quanto inconscientemente, como que “atropelada” pela história), ele vai muito além disso. Escarafuncha os meandros da alma humana.
Karleno não se perde em psicologismos fúteis, seus personagens se constróem na ação, o que torna seu romance daqueles que não se quer largar, carregado na mochila onde quer que se vá, à procura de um tempo livre para retomar a leitura, como nos clássicos policiais que nos aprisionam com seus enigmas. E apesar de se pautar na ação, “As almas” contém um fundo, como que um fio d’água que corre pelos seus subterrâneos, um tema profundo por detrás da trama: o deslocamento das vidas em relação ao destino que têm que cumprir; o mundo trágico e sombrio em que mergulham aqueles que escolhem a trilha fácil dos prazeres sensoriais e do hedonismo ao sacrifício ( do latim sacre + facere, ou seja fazer sagrado, ação sagrada) que exige cumprir uma vocação. A gente só vem mesmo ao mundo para fazer o que não deve, pensa Marco, o protagonista, em dado momento do livro.
O desvio do caminho tem um preço caro. Se não o trágico e o sombrio, o que se afigura é ainda pior: a mediocridade.
O romance se desenvolve ao redor de quatro personagens, um grupo de brasileiros que vai à Berlim pós queda do muro, com pretensões intelectuais e à busca de uma liberdade fácil que não existe. As experiências frustrantes desse grupo envolvem sexo, drogas, literatura e uma gama de relacionamentos e aventuras que, em certo sentido, lembram as narrativas beat de um Kerouac, por exemplo. Mas a profundidade e complexidade dos personagens remetem à Dostoievski.  Karleno é um romancista de peso, que sabe dar à sua escrita a desenvoltura e a maturidade dos grandes mestres. E, para ser sincero, não vejo nenhuma nova geração de escritores surgindo junto com Karleno. Ele está anos-luz à frente dessa tal “geração zero-zero”, blogueira e rasteira. E Karleno nunca é raso. Nunca.
Voltando ao romance: também o Mal dá as caras. O Mal que seduz e destrói, que vicia e arruina. O pacto diabólico se insinua na relação de Marco com Bocas. Além disso, a ambientação do romance deixa entrever, em impressionantes descrições, uma presença do Mal quase palpável. E se existe o Mal, existe também a Graça. A Graça imperceptível (Tenho medo da Graça que passa e não volta, diz Agostinho), que se apresenta na forma de uma mulher, Luzia, a namorada de Marco, desprezada por ele ao longo do romance e talvez sua única possibilidade deviajar para fora do karma.
Mas não, não há redenção possível para o indivíduo que não assume a responsabilidade de seus próprios atos; e não toma as rédeas de sua pópria vida.
É cruel ter que escrever um parágrafo como o anterior, porque o livro de Karleno não é nem um pouco moralista. Mas são palavras necessárias. Ao menos para mim o são. Mas talvez esta seja apenas uma interpretação demasiadamente cristã – e pessoal ! - do romance. Ele merece mais do que uma leitura, é rico o suficiente para isso.
Creio que Karleno traz uma ponta de esperança ao romance brasileiro. “As almas que se quebram no chão” é um marco. Resta a nós , leitores, torcer para que venham outros romances da pena apurada do Bocarro (ele está com outro livro pronto, “O advento” ) e que existam, escondidos nesse Brasil, outros romancistas, que tenham a sua coragem e seu talento para levar à frente a vocação de escritor.
Durante a leitura, um fato curioso. Uma pessoa  viu o livro em minhas mãos, perguntou: espírita? . Não, caríssimo amigo, as almas das quais esse romance trata não são aquelas do além. São estas que estão nos escritórios, nos departamentos, nas faculdades, nas ruas. Que está aqui dentro de mim.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

DIÁRIO INCONTÍNUO



29 de junho

O GRITADOR DA PARNAÍBA

Elmar Carvalho

Estava eu abastecendo meu carro num posto perto do condomínio Água Marinha, em Parnaíba, quando, de repente, o silêncio foi quebrado por um forte grito, longo, ritmado, quase como se tivesse algumas notas musicais estilizadas, com direito a um assobio no final. Surpreso, perguntei ao frentista a respeito de tão inusitado barulho. Respondeu-me ele que se tratava de um rapaz, que percorria toda a cidade de bicicleta, a soltar de quando em vez aquele tipo de berro. Acrescentou que já fora escrita uma reportagem sobre ele, que se tornara uma figura conhecida em toda a cidade.

Um pouco depois, encontrei o gritador em outro ponto da cidade. Desta feita, pude observá-lo melhor. Pareceu-me ser um homem ainda relativamente jovem, e magro. Ao emitir o seu grito vibrátil e musicalizado, vamos considerar assim, seguido do arremate artístico do assobio, deu-me a impressão de que todo ele vibrava. Era um grito alegre, festivo, vital, e não desesperado ou de dor. E sem ódio e sem revolta. Lembrei-me de que um galo, ao se preparar para soltar o seu cocoricó, movimenta as asas, como se estivesse em processo de aquecimento, para lançar o seu canto com mais força e entusiasmo. Suponho que o uivo do Gritador da Parnaíba seja uma espécie de catarse, em que ele lança para longe as emoções e os sentimentos que lhe invadem a alma.

Talvez esse grito seja a explosão de memórias atávicas, genéticas, ancestrais, quiçá oriundas da remota pré-história, que ainda remanescem em nós, como resíduos de uma herança dilapidada, diluída, que nos povoam o inconsciente, e que às vezes afloram, quando menos esperamos. É como se, com o berro, ele estivesse exorcizando sua porção de Mister Hyde, para voltar a ser o boa praça doutor Jekyll, que todos carregamos, em maior ou menor escala, nas mais diferentes combinações de dosagem. Ou – quem saberá com certeza? – o grito seja a manifestação musical primitiva desse homem, a expressar as forças líricas e artísticas, apolíneas ou dionisíacas, não importa, que se atropelam e chacoalham em sua alma, e esse uivo seja uma válvula de escape para que o Gritador da Parnaíba possa apaziguar-se, e não venha a explodir-se, seja em infarto, seja em loucura. O grito seria a poção miraculosa a lhe devolver a sanidade, ainda que em efêmeros intervalos.

terça-feira, 28 de junho de 2011

DIÁRIO INCONTÍNUO



28 de junho

CORUJA DE CAMPANÁRIO – UM POEMA PERDIDO

Elmar Carvalho

Perdi vários poemas, escritos ao longo de minha vida, sobretudo alguns que compus em minha adolescência, por motivos de mudanças e viagens, ou pela fome das traças e cupins. Talvez não lhes tenha dado maior importância, e por isso não lhes tenha dispensado o devido cuidado e atenção. Não os perdi ou queimei deliberadamente; apenas fui negligente, descuidado, talvez porque não os achei dignos de maior consideração, ou porque minha autocrítica não viu neles as qualidades necessárias, para que pudessem continuar existindo. Entre esses poemas que se perderam na poeira do tempo e do espaço, um era sobre o Recife, quando ali fiz o curso de Monitor Postal, através do qual ingressei nos Correios (ECT); o outro, cantava a cidade de Belém – PA, quando fiz o treinamento para o exercício de meu cargo de Fiscal da extinta SUNAB, e o terceiro, era uma espécie de libelo contra os preconceitos e falsos moralismos de solteironas farisaicas, a que chamei de corujas de campanário.

O primeiro desses poemas, era longo, e nele, no entusiasmo de meu final de adolescência, eu cantava a beleza do Recife, sobretudo o colorido das luzes das ruas e das propagandas em neon, que se refletiam nos rios Capibaribe e Beberibe. Sobre ele já me reportei neste diário. No segundo, descrevi as praças, as chuvas e as ninfas de Belém. O fiz de um fôlego, num bloco de papel do treinamento profissional. Ficou esquecido no meio de outros papéis, até talvez ter-se transformado em pasto de traças e cupins. Fiz uma reconstituição minimalista de ambos, e os publiquei em Rosa dos Ventos Gerais.

Quanto ao terceiro, era titulado Puritana ou Coruja de Campanário, já não tenho certeza quanto a isso. Foi publicado no jornal Folha do Litoral, em meados da segunda metade da década de 1970. Pedi ao professor Antônio Gallas que tentasse encontrá-lo no acervo do periódico, que estava sob os cuidados do jornalista Rubem da Páscoa Freitas. Porém, os jornais da época em que o poema fora publicado já haviam sido estraçalhados pelas implacáveis traças. Esse poema era rigorosamente rimado, embora fosse eu um poeta comprometido com o modernismo e a contemporaneidade. É que eu gostava de exercitar as técnicas diversas da poemática, e por isso fazia uso de todos os recursos da arte de versejar.

Eu desejava reencontrar esse texto poético para o fim de utilizá-lo em ensaio que pretendo fazer, de caráter antropológico e sociológico. Diante da impossibilidade de reencontrá-lo, fiz uma reescrita dele, mantendo as ideias e a temática. Quanto à forma e à qualidade, não sei se piorei ou não a versalhada perdida, que jamais poderá ser recuperada integralmente. No domingo, após re-escrevê-lo, telefonei ao professor Gallas, e o li. Ele achou que o soneto poderia estar melhorado. Disse-lhe ter minhas dúvidas quanto a isso. Nesse telefonema, o jornalista Antônio Gallas levantou dúvidas sobre se o soneto teria sido efetivamente publicado, por motivo de censura. Respondi-lhe que o texto meu, que não passara pelo crivo da direção do jornal, era um outro, em prosa, em que eu criticava uma autoridade religiosa, por motivo que já não vem ao caso. Apenas como simples curiosidade, transcrevo os versos “restaurados”, sob o título de Coruja de Campanário:

  CORUJA DE CAMPANÁRIO


Elmar Carvalho

Santa coruja de campanário
a arrotar pruridos de moralismo,
folheando assustador breviário,
vestal severa do cristianismo.

Puritana coruja de santuário,
no rigor do seu catecismo,
em seu recalque celibatário,
condena todo sensualismo.

Mas, à noite, no leito macio e ardente,
sentindo remorso do próprio sarcasmo,
com a carne anelante, fremente,

Ei-la, espumando trêmula, gemente,
em arfante e vertiginoso espasmo,
no furor do solitário orgasmo.


CAIXEIRAS DO DIVINO EM PARNAÍBA


Através do projeto Sonora Brasil, as Caixeiras do Divino, de São Luis – MA, realizarão o concerto Sagrados Mistérios, em Parnaíba, no dia 29 próximo, às 19:30 horas, no teatro do SESC Avenida, cuja entrada dar-se-á mediante a entrega de 1kg de alimentos não perecivel.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

ARTE-FATOS ONÍRICOS E OUTROS


NAVEGAÇÃO DE CABOTAGEM E SACANAGEM

Elmar Carvalho


Certo domingo, estava eu no bar do abrigo do Liceu, a iniciar o segundo copo de cerveja, quando aparece o engenheiro Edilson de Albuquerque Mourão, natural de Parnaíba. Era ele professor da Universidade Federal do Piauí, desde o início de sua instalação. Embora não fôssemos amigos íntimos, tínhamos um bom relacionamento, iniciado através de um conterrâneo e amigo comum, em cuja casa já nos havíamos encontrado em duas ou três ocasiões festivas, com direito a libações e churrasco. Era ele uns doze anos mais velho que eu, mas se mantinha bem conservado. Ao me cumprimentar, perguntou:
- Posso tomar umas duas ou três doses de uísque em sua mesa, poeta?
- Pode até muito mais, professor.

Sentou-se, e logo o garçom trouxe sua bebida. Notei que ele já estava levemente afogueado pelo álcool. Com certeza já tomara umas três doses antes de sair de casa. Viera a pé, posto que mora perto do colégio, no qual estudei em minha adolescência. Começamos a conversar sobre assuntos diversos e aleatórios, quando fomos abordados por uma moça, que nos entregou dois prospectos de propaganda de uma agência de viagem, nos quais era anunciada uma viagem ao Sul e Sudeste do país, mormente ao Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Havia belas fotografias desses dois estados. Comentei que era um matuto empedernido, e que praticamente nunca saíra do Piauí, a não ser três vezes, assim mesmo para participar de congresso de minha área profissional e para receber um prêmio literário.

O meu interlocutor me narrou uma viagem que fizera ao Rio de Janeiro, num dos navios da Moraes S/A., no final de sua adolescência. A tripulação era composta de aproximadamente 15 pessoas, entre piloto, maquinista, mecânico, foguista e os arrumadores ou porcos d' água, encarregados de carregar e descarregar o “vapor”. Foi uma viagem costeira demorada, com a embarcação fazendo paradas em vários portos, sobretudo das capitais, para carga e descarga de mercadorias. Em virtude das esperas, seja em decorrência da disponibilidade dos rebocadores e das docas, seja por causa da burocracia aduaneira e da operação de retirada das mercadorias fabricadas pela Moraes e da colocação no navio das que a firma comprava, mormente insumos ou as encomendas de frete, o navio ficava de dois a três dias em cada cidade portuária. À noite, quase toda a tripulação ia para os cabarés da beira do cais. Edilson, rapaz sério, estudioso, mas bem humorado e de fácil relacionamento, não tardou a conquistar a amizade dos marinheiros, e ia com eles para essas incursões boêmias e eróticas.

Ainda no começo da viagem, alguns marujos, todos analfabetos, pediram para que ele respondesse às cartas de suas várias namoradas. Havia embarcadiço que tinha namorada ou rapariga em quase todos os portos da rota. Edilson escrevia bem e passou a gostar dessa função de missivista, tornando-se uma espécie de escrivão de bordo. Enfeitava as cartas com alguma frase de efeito ou versos, fosse de sua lavra ou não. Os porcos d' água gostavam dessa afetação, e ficavam encantados com esse seu talento. O cozinheiro, que estivera de mal com sua mulher, pediu que Edilson fizesse uma carta de reconciliação. O rapaz, estimulado por essa missão de cupido, caprichou ao extremo, e soube expressar com belas frases os sentimentos que invadiam a alma do cozinheiro, a sua ternura, a saudade que lhe roía o peito, o desejo de reconciliação, e arrematou tudo com uns arrebatados e alambicados versos líricos de piegas poeta romântico, mas que eram tiro e queda no derretimento de corações femininos. A carta surtiu o efeito desejado, pois dias depois chegava às mãos do mestre cuca uma amorosa carta da mulher, em que essa lhe perdoava a ofensa. A partir de então, o jovem passou a comer do bom e do melhor, na quantidade que desejasse.

Como dito, Edilson acompanhava os marinheiros em suas idas aos lupanares da beira do cais. Bebia do que eles bebiam, comia do que eles comiam, sem nada pagar. Eles se cotizavam e pagavam até meretriz para o rapaz, com o preço previamente acertado. Num dos portos, por entraves burocráticos e comerciais, o navio demorou quatro dias para partir. A rapariga, com a qual ele ficara na primeira noite, terminou se apaixonando por ele, e não lhe cobrava nada, sequer a “chave”, que era o pagamento pela ocupação do quarto. Pediu-lhe viesse no dia seguinte, por volta das dez horas da manhã. O rapaz nesse dia se esbaldou, como nunca havia feito antes. Bebeu e comeu por conta da mulher dama, como se dizia. Transou com ela várias vezes, aprendendo coisas e posições com as quais nunca sonhara, em verdadeiras lições de kama sutra prático e ao vivo. Ela lhe pediu para não mais seguir viagem, pois o sustentaria; que ele seria o seu único gigolô. Era nova e bonita, e por isso mesmo era uma das mulheres mais recrutadas, o que lhe permitia um faturamento considerável. Na última noite, a mulher se embriagou. Na hora da despedida, agarrou-se com Edilson, no grande salão, na frente dos marinheiros, rogando que ele não fosse embora. No desespero da paixão e do álcool, armou o maior barraco, chegando a rasgar a camisa de Edilson. Os homens e as outras prostitutas conseguiram levá-la para o seu quarto, e recomendaram que o jovem se retirasse, para evitar novo escândalo.

No último cais, antes do destino final, os marinheiros disseram que iriam fazer uma surpresa ao Edilson. Foram a determinado prostíbulo, e lá confabularam com certa mulher, sem a presença dele. Algumas garrafas de cerveja depois, disseram para que a mulher o levasse para o quarto e procedesse na forma combinada. Ao entrarem na alcova, ela mandou que ele entrasse num tanque que havia, uma espécie de banheira rústica. A água fria quase provocou um choque térmico no adolescente, e lhe engelhou a pele, mormente na região dos mamilos e dos testículos, que quase sumiram. Ao sair do banho, a profissional do sexo o enxugou com uma macia toalha, ao tempo em que lhe dava um banho de língua, dos pés à cabeça, murmurando e rosnando palavras, como uma gata manhosa e dengosa, com idas e vindas, com volteios e atalhos, com retiradas estratégicas e inesperadas de certos pontos mais sensíveis, com paradas logísticas mais demoradas em outros. A língua parecia de veludo em certos momentos; em outros, parecia uma palanqueta de máquina de costura, a se movimentar, lenta ou freneticamente, para cima e para baixo, para um lado e para o outro. Edilson, com a voz embargada, levemente arfante, perdido em suas lembranças, arrematou a narrativa:

- Depois desse ritual, do qual não contei tudo, ela mandou que eu me deitasse de costas, sobre uma espécie de divã estreito que havia, creio que feito de encomenda para o que ela pretendia fazer. A seguir, me cavalgou; escanchada, quase nas pontas dos pés, sem usar as mãos, com habilidade de mestra consumada, conseguiu a conexão de praxe. Recomendou que eu não me mexesse em hipótese nenhuma, que ela comandaria todos os movimentos necessários. Não sei se ela usara pedra ume, mas o fato é que nem antes e nem depois encontrei outra mulher tão apertada quanto ela. Parecia ter um esfíncter no vestíbulo vaginal, que funcionava como uma espécie de torniquete ou garrote, que parecia querer enforcar o meu membro. Após algum tempo, ela fixou esse aro de estrangulamento um pouco abaixo da glande, e, então, sem movimentar o corpo, apenas com os músculos da região vaginal, começou a sugar o meu pênis, como se fosse um bezerro a mamar, apertando e afrouxando, com breves e delicadas contrações de vai e vem. De tempos em tempos, ela fazia um remelexo rotatório, como se estivesse fazendo um teste drive numa alavanca de câmbio. Terminei tendo um forte orgasmo, seguido de breve desmaio. Quando voltei a mim, ela já estava vestida. Ao deixar o quarto, os marujos já haviam pago a conta; fomos logo embora, pois de manhã cedo seguiríamos para o final da viagem.

Ante tão instigante narrativa de viagem, com grande interesse e curiosidade, indaguei:
- E a volta? Como foi a viagem de retorno?
- Que porra de retorno, poeta... Fiquei lá, para prosseguir nos meus estudos – disse Edilson, com certa e magoada nostalgia.

Ele, então, me contou que seu pai era empregado da indústria Moraes S/A. Era o encarregado do almoxarifado. Pelo seu zelo, assiduidade e honestidade nesse encargo, ganhou certa consideração de um dos diretores da empresa, o senhor Zeca Correia. Um dia, no final de 1961, o chefão perguntou a seu pai sobre sua família, sobre a quantidade e idade dos filhos. O almoxarife Albuquerque respondeu que tinha um filho e duas filhas. Zeca perguntou se o filho estudava e que ano escolar fazia. O empregado disse que o rapazola estava terminando o ginásio, e que passava com as melhores notas, sendo sempre classificado entre os três primeiros lugares de sua turma. Acrescentou que o jovem tinha bom comportamento e não lhe causava preocupação. O empregador perguntou se ele não desejava prosseguir nos estudos. O outro respondeu que era o seu sonho, mas que não tinha condições financeiras de mandá-lo estudar em outro estado mais desenvolvido, e nem tinha parentes que pudessem hospedá-lo.

Para surpresa de Albuquerque, Zeca Correia, num grande rasgo de generosidade, disse que iria ajudar seu filho. Prometeu empregá-lo, em expediente de meio turno, na unidade industrial da Moraes no Rio de Janeiro, para que o rapaz pudesse ter algum dinheiro, para merenda e refeições. Acrescentou que ele poderia usar algum restaurante estudantil, mais barato, e que autorizaria ficasse ele hospedado no alojamento da fábrica carioca, destinado a diretores em trânsito. Prometeu, ainda, que o estudante viajaria de graça, num dos navios da firma, no começo do ano seguinte. Fora essa a viagem narrada pelo Edilson.

domingo, 26 de junho de 2011

REFLEXÕES


ALCIONE PESSOA LIMA

Repenso a vida.
Desato os nós que no caminho encontrei.
Marcas de dor, loucuras de amor, lugares que nunca mais voltei.
Um misto de saudade da tenra idade e a saudade de mim.
A vida é um trem louco! Por muito pouco não a perdi.
Mas se foram tantas. De quem amei ou convivi.
Outras desapareceram na poeira do mundo em coisas de segundos.
Podem ser estrelas ou lindas rosas que ainda podemos apreciar.
Repensar é questionar. É matutar um pouco sobre o destino...
Incinerar o lixo. Reviver as glórias.
Puxar pela memória que ainda resiste.
Daqui posso ver algumas trilhas por onde passei.
Rastros que o tempo não apagou. São aquelas marcas que ficam cravadas no coração.
Refletem-se na pele, na alma, no semblante fechado...
Acho que por isso, sem querer, às vezes fico tão calado, distante...
Viajo em um pensamento errante por todas as veredas que a vida me fez passar
Mas que me trouxeram até aqui.
Neste lugar único, de onde posso contemplar, como um privilegiado,
O sol que sempre me foi generoso e a lua que clareou minhas noites
Como a tocar as mãos de Deus, sentindo o seu afago.

NARCISO - TÉDIO E FÚRIA


Como surge um psicopata?

Você já parou para pensar como uma criança indefesa pode se transformar em um adulto capaz de atirar a própria filha de uma janela do 6º andar ou ainda esquartejar a amante? Alguma vez já se perguntou como surge um psicopata? Para facilitar a compreensão deste tema tão inquietante, Roque Neto – autor piauiense - e a Editora Quárticarecentemente lançaram “Narciso: Tédio e Fúria”.

Narrado em primeira pessoa, o texto nos conduz pelas diversas etapas da vida de Francisco, o protagonista da trama, filho de um relacionamento extraconjugal de seu pai e ironicamente adotado pela esposa dele. Quando o casamento do pai se desfaz, Chiquinho é vítima de violência por parte de seus irmãos e da indiferença de sua madrasta, o que o leva a fugir de casa aos 11 anos de idade. Sua vida muda quando ele é adotado pelo padre da cidade e sua irmã, alemães radicados no nordeste brasileiro, onde desenvolvem trabalhos sociais. Confiando em sua capacidade, a nova família lhe proporciona educação de qualidade, e o menino de inteligência notável e excelente desempenho segue os passos daquele que é sua referência de pai, tornando-se um seminarista que rapidamente se destaca entre colegas e a população de Esperantina.

Contudo, a saga de Francisco não chegara ao fim. Logo ele se depara com uma terrível decepção que revela o lado sombrio de sua mente. Relegado à solidão, Francisco sente um incontrolável desejo de vingança e passa a desencadear uma sequência de atos na intenção de atingir quem julga seus inimigos. Uma história repleta de reviravoltas, com o autor mantendo o leitor em constante tensão e suspense. Jogando com vidas e desvelando segredos, o seminarista e professor é capaz de tudo para saciar sua sede de vingança.

Na mesma vertente de obras historicamente consagradas, a trama se desenrola abordando temas como bullying no ambiente escolar, escândalos na igreja católica, aborto, jogo de interesses entre políticos e até crimes, mas com uma riqueza de detalhes que foge dos clichês e desafia a capacidade do leitor, totalmente envolvido pela sagacidade intelectual do personagem-narrador em atitudes surpreendentes de sua mente psicopata.

Ficha técnica:
Autor(a): Roque Neto
Editora: Quártica
Páginas: 168
Publicação: 2010
Booktrailler:  http://www.youtube.com/watch?v=ko2EbUKMR3s
Onde comprar: www.narcisotedioefuria.com.br



Sobre o autor:

Roque Neto nasceu em Esperantina, no Piauí, em 1979. Desde cedo, trazia dentro de si o desejo pelo conhecimento, demonstrando especial interesse pela leitura e escrita.

Além de diversos artigos acadêmicos em sua área de pesquisa, Roque Neto publicou em 2009 o livro “Ética e Moral na Educação”, no qual apresenta algumas das ideias que fundamentaram sua dissertação de mestrado. Semanalmente, oferece aos seus leitores artigos para reflexão sobre desenvolvimento pessoal no Blog Sentido. Em sua obra de estreia “Narciso: Tédio e Túria,” o autor desenvolve com maestria personagens com perfis psicológicos complexos, o que desde cedo já parece ser uma das características desta nova promessa da literatura brasileira.

Sua formação acadêmica inclui uma graduação em Filosofia, pós-graduação em Psicopedagogia e Gestão Escolar e ainda mestrado em Educação. Atualmente mora nos Estados Unidos, onde cursa Psicologia e segue com seu doutorado em Liderança Educacional em Saint Mary’s College of California. 

Contato do autor:
Twitter: www.twitter.com/RoqueANeto
Facebook: https://www.facebook.com/pages/Roque-Neto/182074201833936

sábado, 25 de junho de 2011

PAI NOSSO


BARRIPI

Quando nós, tudo gastamos
A vida se torna um troço
Aí, é que nos lembramos
De ocupar o PAI NOSSO.

Mas se o indivíduo erra
Pelo mundo, sem troféus
Vai pensando aqui na terra
Em vós QUE ESTAIS NOS CÉUS.

De tanto o pobre sentir
Seu corpo velho cansado
Arma a rede e vai dormir
Num dia SANTIFICADO.

Se você não tem cachê
Nenhum empréstimo tome
Pra que no S. P. C.
Limpo SEJA O VOSSO NOME.

Afamados pregadores
Que falam com linda voz
Dos seus fiéis seguidores
Só querem o VENHA A NÓS.

Somente os endinheirados
Eles botam no seu treino
E dizem bem humorados
Como é doce O VOSSO REINO.

Neste Brasil atual
Livre de qualquer suspeita
Uma reforma geral
Espero que SEJA FEITA.

Vós que estais a relutar
Entre o bem e a maldade
Se o bem vos interessar
Façais A VOSSA VONTADE.

Se lá no céu, muito além
Houve fragorosa guerra
Os inimigos do bem
Vão fazendo ASSIM NA TERRA.

Por muito tempo vivi
Debaixo de meu chapéu
Observando que aqui
É tão bom COMO NO CÉU.

Respeitando a Natureza
Suas matas não destroço
Porque ela com franqueza
É quem fornece O PÃO NOSSO.

Quando junho vem chegando
Sendo um mês só de folia
Alguém fica procurando
Se lembrar DE CADA DIA.

A o rico proprietário
Se assim lhe convier
Nosso mirrado salário
NOS DAI HOJE se puder.

Mas se é ele o cobrador
Que nos deixa as faces lívidas
Lhe pedimos por favor:
PERDOAI AS NOSSAS DÍVIDAS.

Quem trabalha deve crer:
O melhor vem logo após
E se alguém quiser crescer
Que faça ASSIM COMO NÓS.

Sem esperar recompensa
De nós, o melhor doamos
Se acaso houver desavença
Nosso rival PERDOAMOS.

Se a bondade nos convém
Para fugir dos horrores
Devemos fazer o bem
AOS NOSSOS DEVEDORES.

Pedimos ao Presidente
Com seus Projetos e Leis
Sem um emprego decente
Por favor, NÃO NOS DEIXEIS.

Vendo as mulheres sem capa
Lembro que qualquer cristão
Por mais fiel, não escapa
De CAIR EM TENTAÇÃO.

Se a justiça vai atrás
Do que o Código contém
Siga seu caminho, MAS
LEMBRAI-VOS DO MAL AMÉM.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

O INTERIOR E A CIDADE


CUNHA E SILVA FILHO

Il faut travailler beacoup pour être simples. (Baudelaire)

Ontem estive na casa de praia de um amigo especial na qual passei dois dias e meio. Teriam sido três dias se não houvesse as horas de viagem de carro de ida e volta. Mas, isso pouca monta se pensar no quanto pesa ao equilíbrio emocional e intelectual de uma criatura, de quando em quando, afastar-se da azáfama cidade e penetrar gostosamente na quietude de uma confortável casa de praia.
A cidade tem características dionisíacas, ao passo que o interior me soa algo apolíneo. Este tem a simetria da uniformidade e da monotonia necessária do dia-a-dia sem as tensões e os solavancos urbanos. Aquela possui as irregularidades, a descontinuidade, a fragmentação do indivíduo, as agressões no corpo e no espírito de cada habitante deste ‘mundo maluco.’ A cidade é a incerteza, o sonho, o feérico, os excessos, os delírios e os imprevistos a toda hora. O interior, não. Todo ele é quase passado entre o gorjeio dos pássaros no amanhecer e a calma e paz do cair do dia.
Já vê o leitor que um completa o outro como duas formas opostas, porém, no fundo, conciliadoras. Por isso, agora entendo por que Cesário Verde (1855-1886), o grande bardo luso, tantas lições tirou dos primeiros sinais da vida moderna após a experiência vivida no interior.
Se a cidade, como é vista no poema de Cesário Verde - uma obra-prima! - , que é “Sentimento de um Ocidental,” ali se presta a uma descrição caleidoscópica e veraz do seu espaço exterior e interior, parecendo flagrar com uma câmera, em ritmo lento, uma variedade humana e social de uma urbe europeia, Lisboa, no interior descobre outros ângulos de entendimento da condição social dos seus habitantes, em especial da realidade do trabalho e das implicações deste que tanto acresceram à visão ideológica do poeta.
Na realidade, a cidade pode explica o interior e vice-versa. Por conseguinte, durante a minha curta visita à casa do meu amigo, algumas peculiaridades se confirmaram no que tange à escolha que uma pessoa possa fazer: viver no interior ou na grande urbe, ou então, viver parte nesta e parte no interior. No meu caso, optaria certamente pela segunda alternativa caso tivesse condição de fazê-lo.
Para quem ainda não se dispôs a fazer escolhas, o melhor mesmo seria fazer algumas observações extraídas da recente experiência, ainda que pequena.
Quando a gente se desloca para o interior, nada me parece mais saudável e encantador do que ser bem tratado pelo amigo-anfitrião que se desdobra para nos deixar à vontade num clima semelhante ao que teríamos se estivéssemos em casa. “Aqui você pode escolher, quer ficar neste quarto ou naquele? É com você. Olhe, quando estiver com fome, é só me falar, pois a empregada já está preparando o almoço.” “Obrigado, obrigado”, lhe respondo com alegria e naturalidade. Não se preocupe tanto.”
Hora de almoçar. A mesa posta. A comida quentinha, logo desperta o apetite que aumenta sempre que o tempo está mais frio.Depois do almoço, vou para um espaço aos fundos da casa principal, onde há uma mesa enorme, cadeiras, um banco de madeira comprido e, mais adiante, junto à parede, uma churrasqueira. Contudo, o bom mesmo é a conversa que se abre entre os dois amigos. Conversa salpicada de afirmações brincalhonas e cheias de bom humor e picardia.
Nesse momento, percebo o quanto não sabia do amigo, agora em hora descontraída, sem os atropelos de um encontro na grande cidade ou no escritório onde naturalmente alguns limites se impõem. Ali no regaço de uma bela e aconchegante casa de praia, com todos os confortos, tudo me convida à informalidade, até na linguagem que se torna solta, meio confessional e nem mesmo dispensa um palavrão como sinal de liberdade comunicativa. Sem os interditos dos encontros meio formais ou mesmo formais, observo que os corações se abrem entre anfitrião e amigo. Essas horas de conversas podem se prolongar e, sem que se perceba, já são duas, três horas trocando experiências vividas. Quando demos fé, já é tempo do jantar e, depois, mais longas horas de papo se arrastando pela madrugada do dia seguinte.
No entanto, a bem da verdade o que mais valeu foram as histórias do anfitrião relatando humoristicamente fatos de sua vida e da vida alheia, contados com um jeito que só os escritores sabem contar: gesticulando, dramatizando, mimetizando, levando-me ora a reflexões sérias, ora às gargalhadas de encher os olhos de lágrimas, pois lembro ao leitor que as lágrimas também vêm das situações hilariantes, diante dos relatos grotescos e em geral da tragicomédia humana envolvendo todas as nuances, todos os tons e entretons nascidos do riso, da mofa, do absurdo e do burlesco do que os homens dizem, vivem e fazem. Relatos rabelaisianos, carnavalizados. Posso adiantar que os quase mencionados três dias se passaram, sobretudo à noite, nessa troca amigável e descontraída regada a risos e lágrimas provocados pela verve do meu anfitrião.
O passeio se completou com uma boa e revigorante caminhada, pela manhã, com meu amigo para me mostrar uma lagoa paradisíaca e com nossas conversas, agora em outro diapasão, em que refletíamos sobre assuntos que iam da fé religiosa à crença ou não na existência divina. Conversa respeitosa, sem preconceitos e reconhecendo mesmo os valores de quem se reveste de fé, seja representante da Igreja, seja um devoto cristão. Conversa que igualmente ia de fatos triviais à literatura, à economia, à política, nacional ou mundial. Conversa, finalmente, pontuada de indignação quando o assunto dissesse respeito a erros e abusos do Estado brasileiro e de suas instituições.
À noite, do dia anterior ao regresso para o Rio, meu amigo me levou pra ver como estava a decadência de um bairro, outrora nobre e cheio de gente que ali ia passar dias de alegrias e divertimentos noturnos, com a presença de gente de todas as idades, de mulheres bonitas enfeitando e dando colorido em bares, boates, restaurantes e sorveterias. Agora, só sinais de decadência de uma burguesia que perdera com os desastrados planos econômicos impostos à sociedade brasileira. Por outro lado, permaneceram alguns costumes só vistos ainda no interior, como o de ser cumprimentado por estranhos, os habitantes daquele local: “Bom dia, boa tarde, boa noite.” “Aqui é assim mesmo, as pessoas educadas, novas ou idosas, nos cumprimentam ao passarem por nós. Que diferença do Rio de Janeiro ou das cidades mais populosas! Se agíssemos assim nas grandes cidades, em que a urbanidade (sem querer fazer trocadilho ou ironia ) raramente se faz presente na sociabilidade entre os homens, até pensariam que fôssemos loucos.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

DALILÍADA - épico moderno baseado na vida e na obra de Dalí

ELMAR CARVALHO

XXXVIII

A sede de infinito foi tão grande
que as asas dos anjos cresceram tanto
e tanto pesaram que esses entes alados
não mais voaram.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

DIÁRIO INCONTÍNUO


22 de junho

A SÉTIMA ESTRELA

Elmar Carvalho

Da porta de minha casa, vi as miríades de estrelas, que pontilhavam o céu sem nuvens. Através da tela da antena parabólica da casa vizinha, vi o brilho intenso de uma delas. Na minha imaginação, o equipamento era como se fosse um radiotelescópio a perscrutar os longínquos rincões do infinito, em busca de sinais de vida inteligente, sem nenhuma comprovação científica até hoje. Segundo tenho lido, já se captou até o ruído remoto e de fundo do big-bang, que ainda remanesce no universo em expansão, as pulsações dos pulsars, como se esses longínquos corpos celestes tivessem algum tipo de coração, e as inferências indicativas de que os buracos negros existem, ainda que não possam ser vistos. Porém, nada foi identificado como uma mensagem que pudesse haver sido enviada por alguma civilização evoluída; nada que pudesse lembrar música ou fala. Lembrei-me dos melancólicos versos do poeta Manuel Bandeira: “Vi uma estrela tão alta, / Vi uma estrela tão fria! / Vi uma estrela luzindo / Na minha vida vazia”. Contudo, a minha não era uma estrela solitária, como a do bardo, conforme disse acima. Nem tampouco era triste, em seu brilho intenso e pulsante.

Na minha infância, por volta de meus dez anos, morando por um breve tempo na zona rural, podia melhor contemplar as estrelas, que, na falta da luminosidade das lâmpadas elétricas da urbe, pareciam brilhar com muito maior intensidade. Meu pai me ensinou a distinguir as constelações. Apontava para elas e me mostrava as Três Marias, o Cruzeiro do Sul, o Compasso, o Sete Estrelo... Mostrou-me o Caminho de Santiago; é a Via Láctea, onde se localiza o nosso sistema solar, cujo poético nome significa caminho de leite. Eu, a contemplar a nebulosa, imaginava um grande rio de leite, espumante e agradável, em que não havia fome, ou um macio caminho que nos levasse a etéreas plagas, refertas de bem-aventurança e beatitude. Vendo o meu interesse por livros e a minha grande curiosidade, numa das viagens que fez a Teresina, papai trouxe um exemplar da revista Conhecer, recheada de ilustrações coloridas.

Nela estava escrito que algumas estrelas ficavam a milhões e mesmo bilhões de anos luz. Meu pai me explicava o que era um ano luz. Não sei ao certo se compreendia inteiramente a explicação; sabia apenas que devia ser uma distância muito grande, que nem a imaginação conseguia alcançar. Na revista constava que a nossa Terra era muito menor que o Sol, e que este era apenas uma estrela de quarta grandeza. Poucos anos depois, já adolescente, li, numa antologia, Fernando Pessoa chamar o nosso planeta de aldeola do espaço. Mas é nessa pequenina bola de gude que vivemos, e por isso devemos preservá-la e protegê-la, sobretudo de nós mesmos. Um dia fiquei com medo de morrer, porque, ao contar as estrelas do Sete Estrelo, notei a falta de uma delas, e a crendice popular advertia que, se o observador não visse as sete, era sinal de que estava prestes a morrer. Recontei mais algumas vezes, e fiquei aliviado quando vi a estrela fujona a brilhar fracamente, quase invisível, como ofuscada, em sua pálida humildade, pelo brilho mais acentuado de suas irmãs. 

terça-feira, 21 de junho de 2011

DIÁRIO INCONTÍNUO



21 de junho

FESTA JUNINA

Elmar Carvalho

Neste sábado, fui a animada quadrilha junina, a convite de César e de Simone, sobrinha de Fátima. A festa é promovida em um quarteirão da rua Padre Mamede Lima, no bairro São João. Tanto a versão do ano passado como a do corrente ano, teve entre seus animadores e organizadores principais minha prima Maria Teresa e seu marido Edilson. No evento estavam presentes vários tios de Maria Teresa e outros parentes, entre os quais cito: Tadeu, Chiquinho, Maria do Carmo, Maria do Amparo, Arimatéia, Zeba, Geraldinho Majella, Antenor Rêgo, Nise, Maria Augusta, Antônio Carlos e outros amigos oriundos da velha Barras do Marataoã. A comida, típica dos festejos juninos, foi farta, gostosa e variada. A bebida, alcoólica ou não, ficou por conta de cada um. A música ficou a cargo de um autêntico grupo de forró pé de serra, nos moldes do velho Januário e seu filho Luiz Gonzaga. Ornamentavam o local do folguedo as típicas bandeirolas, de cores sortidas, agitadas pela brisa mansa e manhosa. Tanto no ano passado como neste, a festa transcorreu na mais perfeita ordem e harmonia, sem nenhuma forma de desinteligência que lhe maculasse o brilho. Foi completa; houve até fogueira de verdade, e não apenas ornamentação de paus com luz de lâmpada elétrica a imitar o fogo. A quadrilha, cantada e dançada de acordo com a praxe mais tradicional, teve a participação da maioria dos presentes, todos vestidos a caráter, ou seja, como matutos. Como pareço ter os pés redondos, não dancei, mas aplaudi, com muito entusiasmo, os brincantes.


De minha infância, guardo dos festejos juninos algumas recordações, entre as quais lendas, costumes e simpatias. Ainda tenho lembrança de dois quadros de santos, que minha mãe afixou no dormitório dos filhos: São José, com sua veneranda barba, um lírio branco que leva o seu nome e um rechonchudo Menino Jesus em seu colo; e São João, dito do carneirinho, ainda infante, com os cabelos encaracolados, em cuja tela aparecia um cordeiro, muito alvo e muito lanudo. Havia o costume de se passar fogo ou fogueira, que era uma pequena cerimônia em que duas pessoas se davam as mãos acima das brasas da fogueira, para que se tornassem compadres, padrinhos ou afilhados, após repetirem as palavras ritualísticas: “São João disse, / São Pedro confirmou, / Vamos ser compadres, / Que São Antônio mandou”. Também havia simpatia e crendice, como a de que a pessoa, adotando certo ritual, poderia ver a imagem de quem iria ser o seu cônjuge no fundo de uma bacia com água. Ainda sinto em minha boca o gosto de gengibre de um copo de aluá, que tomei quando ainda era criança. Mas sobretudo guardo a vívida lembrança de um imenso balão, iluminado, multicolorido, que teimava em não querer subir. Mãos ansiosas o tenteavam, tentando fazê-lo ganhar altura, mas ele negaceava, manhoso como uma fêmea muito requestada. Depois de muito esforço de homens e rapazes, após várias tentativas frustradas, resolveu galgar o espaço, até se perder naquela noite iluminada de minha infância. Nesse tempo, eu não sabia que era crime soltar artefato tão deslumbrante e tão encantado.  

segunda-feira, 20 de junho de 2011

ARTE-FATOS ONÍRICOS E OUTROS


A VINGANÇA DO ESCRAVO

Elmar Carvalho


Resolvi conhecer a localidade Boqueirão do Vento, onde nascera o poeta Mário Catunda Fontenele, vate de minha especial predileção. Fui em minha motocicleta, de 400 cilindradas, rompendo o areal da puba, onde vi dois engenhos movidos por juntas bovinas. Atravessei a chapada Soledade, de nome muito bem posto, deserta de tudo, deserta até da própria deserção, como disse o poeta. Parei apenas para fotografar um ipê roxo e outro amarelo, um pé de araticum e uma sambaíba, de folhas bem verdes e lixentas. A paisagem, os engenhos e os paus d'arcos foram cantados por Mário, em versos sublimes, modelares; as fotos se destinavam a ilustrá-los, como parte de uma monografia que eu estava escrevendo, sobre sua vida e obra.

Quando cheguei a meu destino, pedi a um nativo, de nome Josué, que me levasse até as ruínas da casa grande, onde nasceram os avoengos do poeta. Vi os baldrames, feitos de pedra jacaré. Disseram-me que ela fora construída toda de pedra, ainda no tempo do cativeiro. Segundo minhas pesquisas orais e os autos de um inventário, do qual tirei cópia de capa a capa, o imóvel pertencera a Miguel Furtado Fontenele, que tivera prole numerosa, entre os quais dona Rosa Lina Cardoso Fontenele e o cônego Gastão Cardoso Fontenele, que não deixaram descendentes. O bardo herdara a fazenda, e depois a vendera, por uma bagatela, a um grande proprietário de Boqueirão do Vento.

A fazenda, de nome Angical, tem fama de ser mal assombrada, e correm lendas a seu respeito. Dizem os moradores de Boqueirão do Vento que, nas horas mortas, se ouvem gemidos, açoites e arrastar de correntes, como se viessem da casa ou dos arredores, onde provavelmente fora a senzala. Conta-se que Rosa Lina ficara viúva ainda jovem, por volta dos trinta anos de idade. Era uma mulher alva, de olhos azuis, muito perversa e muito rica. Tinha léguas de terra e centenas e centenas de reses, além de engenhos e aviamentos. Ainda hoje são contadas histórias sobre os seus brutais castigos. Tinha como braço direito Antônio Couto Sepúlveda, famoso capitão do mato, que se celebrizou por suas atrocidades contra os negros fujões, que conseguia capturar. Esse feitor tinha uma espécie de guarda, formada por sete negros, que gozavam de privilégios, como o de dormirem e comerem na casa grande (e não na senzala) e de não executarem serviços pesados. Desse modo, o feitor conseguia deles uma fidelidade canina.

Rosa Lina não contraiu novas núpcias, mas não se absteve de sexo. Aliás, corriam rumores de que era uma mulher fogosa. Fogosa e formosa. Contudo, não se poderia dizer fosse uma messalina da caatinga, daqueles ermos sertões, pois escolhia sempre apenas um escravo, que era o seu favorito durante certo tempo, mormente enquanto se mantivesse em forma e bastante ativo nos trabalhos de fornicação. Durante esse período, mantinha e exigia fidelidade, reciprocamente. Quando o serviço de cama se tornava rotineiro, o escravo deixava de ser o favorito, e voltava para a senzala, sem nenhuma regalia, quanto à comida e quanto ao serviço, voltando a ser lavrador ou vaqueiro, conforme a necessidade do momento. Quando a viúva já estava por volta de seus 45 anos de vida, descartou mais um amante, e tomou como favorito um escravo alto, forte, musculoso, rijo como uma peroba, de nome Matias Pereira. Tinha ele apenas 18 anos quando a senhora o tomou por amante. Já então ela não era tão formosa, e começara a engordar.

Rosa nutriu por esse negro uma paixão avassaladora. Parece ter sido ele a única criatura que ela realmente tenha amado, se é que ela poderia amar alguém. Como uma sacerdotisa do amor, ensinou-lhe, em verdadeiro kama sutra prático, com lições ministradas em sábias, repetidas e exaustivas experiências, os segredos todos do sexo. Cavalgou o mancebo de ébano e foi por ele cavalgada, em noites e madrugadas de fúria e muita luxúria. Entretanto, quando o jovem escravo, já parecia dar mostras de certo enfado e fastio, como saciado ou mesmo enojado da farta carne branca da matrona, esta, certa noite, acordou e viu que ele não estava na cama, a seu lado. Sem fazer ruído, lentamente, pé ante pé, a mulher saiu a sua procura.

Foi encontrá-lo no quarto onde as selas, as perneiras, os gibões, os chicotes e os arreios eram guardados. Ele, completamente desnudo, à luz indiscreta de uma candeia, cobria uma bela escrava, de corpo escultural, de dura e curvilínea carnação, na flor de seus dezoito anos. A pequena janela estava entreaberta, de modo que Rosa Lina pode ver detalhes do jogo amoroso. A escrava se chamava Maria dos Prazeres. Matias se casara com ela, em cerimônia religiosa secreta, realizada no terreiro da senzala. O casal, na fúria da paixão, no desespero das carícias ardentes, não viu a fazendeira, que retornou a seu dormitório, onde fingiu dormir, até o retorno silencioso do amante.

A paixão doentia de Rosa Lina por Matias se converteu em ódio. Passou a odiá-lo com o mesmo desespero e intensidade com que o amara. Sentiu-se desprezada, abandonada, rejeitada, como uma botina velha e rota, trocada por uma negra jovem e bela. Nunca sentira tanto ódio e tanta fúria em sua vida, ao lado do profundo sentimento de perda. Naquela manhã chamou o feitor, com quem urdiu a sua vingança atroz.
- Quando o castigo for executado, você receberá 12 cabeças de gado bovino, de sua livre escolha. Agora, exijo que me traga a prova de que o serviço foi feito do jeito que estou mandando... - Disse a matrona ao feitor, que assentiu.
Dois ou três dias após, quando Maria dos Prazeres saía da senzala, alta noite, para se encontrar com Matias, o capataz e mais dois homens de confiança prenderam e amordaçaram a escrava. Levaram-na para o riacho Gameleira, onde a afogaram. No dia seguinte, Antônio Couto e seus sequazes simularam haver descoberto o cadáver, e o enterraram à margem do córrego. No local, perto da cova, de vez em quando, o Gameleira borbulha, razão pela qual as pessoas dizem tratar-se de gargarejos de afogado. A lenda diz que se trata da alma da escrava Maria dos Prazeres a denunciar o crime de que foi vítima, e a clamar, ainda hoje, por justiça, como se todos os seus algozes, de há muito, já não estivessem mortos.

O escravo Matias foi acometido de profunda tristeza. Sua amante, dissimulada como só os grandes pervertidos conseguem ser, nunca deu mostras de conhecer a sua traição, de modo que ele jamais suspeitou do destino trágico que a vingança de sua patroa lhe reservava. Aliviado, estranhou apenas ela não mais o procurar para satisfazer a sua lascívia, como costumava fazer. Sete dias após a morte de sua mulher, foi chamado pelo feitor, sob a desculpa de que iriam à procura de reses desgarradas, em lugar longínquo. Os cavalos estavam arreados, e a matalotagem já se encontrava nos alforges, bem como as cabaças já estavam cheias de água potável. No meio da erma chapada Soledade, Matias foi agarrado pelos companheiros do feitor, e brutalmente espancado até ficar quase morto. Por entre as chibatadas, foi-lhe revelada a causa da vingança, e como foi morta Maria dos Prazeres. Após os brutais açoites, Antônio Couto Sepúlveda, excedendo-se em seu costumeiro sadismo, com uma faca muito bem afiada, castrou o negro. Enrolou cuidadosamente em uma toalha o produto da emasculação, e colocou o embrulho no embornal, como prova de que tudo fora feito na forma acordada. Deixaram-no atado pelos pés e pelas mãos, para que ele morresse de sede, fome e insolação, sangrando como um porco que era, que nem a madame respeitara.

Cinco meses após esses acontecimentos, a casa grande da fazenda Angical foi incendiada. Quando a fazendeira e o feitor conseguiram sair, completamente desnorteados por causa do fogo jamais esperado, foram fuzilados por uns tiros certeiros, vindos de moita próxima. No dia seguinte, um dos homens que fizera parte do grupo de Antônio Couto foi até o local onde deixara Matias. Não viu cadáver nem ossada. Teve ele a certeza de que o escravo escapara. Soube-se, depois, por boatos, que ele fora encontrado por uns escravos quilombolas, que com unguentos e emplastros lhe conseguiram estancar o sangue da mutilação, e lhe deram guarida no quilombo da localidade Sambaíba, instalado num dos socavões dos morros ali existentes.

Nesse reduto de escravos fugidos, Matias conseguiu convencer um grupo de negros jovens e decididos a ajudá-lo na execução de sua vingança. Com a ajuda de cavalos e armas de fogo, a que os escravos comuns não tinham acesso, ele conseguiu planejar e executar a sua vindita. Além de sua torpe e covarde mutilação, o moveu sobretudo a morte de sua amada mulher. Outra casa grande foi erguida, por um dos herdeiros de Rosa Lina, porém em local distante da casa velha de Angical. A alma de Maria dos Prazeres ganhou fama de milagrosa, e pessoas fazem romarias a seu túmulo, em pagamento de promessas pelas graças e dádivas alcançadas. Rosa Lina, na voz do povo, se transformou em alma penada ou mula sem cabeça, a vagar sem descanso e sem paz pela chapada Soledade, pela casa velha da fazenda e pelo riacho Gameleira, onde escuta o gorgolejo da escrava afogada.

EURÍPIDES DE AGUIAR - ESCRITOS INSURGENTES


Genu Moraes autografa o livro

No último dia 12 de junho, foi lançado no Salão do Livro do Piauí (SALIPI), box da APL, do complexo montado na praça Pedro II, às 18:00h, o livro do matoense ilustre Eurípides de Aguiar (obra póstuma): Eurípides de Aguiar - Escritos Insurgentes (Comentários - volume III), com organização e nota de sua filha Genu Moraes e do escritor Kenard Kruel.

Eurípides Clementino de Aguiar nasceu no antigo município de São José dos Matões, em 19 de janeiro de 1980, exatamente na casa onde funciona hoje a Secretaria de Planejamento e Finanças, em frente a praça central José Sarney. O Intrépido matoense atuou como jornalista, médico e político no vizinho Estado do Piauí. Foi prefeito de Floriano(PI) de 1913 a 1915; deputado estadual de 1915 a 1916; governador do Estado de 1916 a 1920; deputado federal de 1921 a 1923; senador da República de 1924 a 1930.

A obra sobre o político está organizada em três volumes. O primeiro: Eurípides de Aguiar - A trajetória de um líder é um ensaio biográfico da sua pessoa. o segundo: Eurípides de Aguiar - Documentos reúne quatro mensagens de governo, a tese de seu doutorado "Queimados" e a defesa da acusação de mandante do assassinato de um juiz federal, além de depoimentos e cartas de amigos. O terceiro e último volume: Eurípides de Aguiar - Escritos Insurgentes é uma obra polêmica, onde são retratados artigos escritos pelo matoense (no jornal "O Piauí"), nos quais combatia a ditadura Vargas e os interventores federais no Piauí.
Genu Moraes, des. Tomaz Gomes Campelo e representantes de Matões (Ma), no lançamento do livro Eurípides de Aguiar - escritos insurgentes.
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Estiveram presentes no lançamento do livro sobre Eurípides de Aguiar, representando a prefeita Suely Pereira e o município de Matões, o presidente da Comissão de Licitações, Hairlan Ferreira, o chefe do Gabinete da Prefeitura, Francisco José da Silva (Chico Grud) e o secretário adjunto de Planejamento e Finanças, Sidney Moura.

Embora não estando presente ao evento, devido motivos superiores, a prefeita Suely Pereira comentou da relevância da figura de Eurípides de Aguiar para a história: "Eurípides de Aguiar tem grande importância política para o estado do Piauí e para o Brasil, mas sobretudo é um orgulho para nós ter sido a cidade de Matões escolhida por Deus para ser o local de nascimento desta personalidade tão ilustre".