quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

DIÁRIO INCONTÍNUO


29 de dezembro

DOIS SONHOS

Elmar Carvalho

Tempos atrás comecei a escrever um livro sobre meus sonhos. Abandonei essa ideia, porque os sonhos de que me recordava ou não eram tão frequentes ou eram banais, sem maior serventia para as letras. Estas sempre buscam a criatividade, a originalidade, o ineditismo, o inaudito e até mesmo o exotismo. Na esteira do surrealismo, muitos buscaram a escrita automática, o que vinha da mente, sem nenhuma censura do consciente, da razão, da lógica, ou demandavam o que fosse oriundo de sonhos, daí a vertente onírica, as paisagens de sonhos, irreais. Em alguns textos, em verso ou em prosa, persegui esse objetivo, sem necessidade de sonho, mas de forma deliberada, exercitando apenas a faculdade da criação, através do esforço mental consciente, ao menos em parte.

Um dos motivos que também me levou a desistir do registro de meus sonhos, é que terminamos por esquecê-los. De muitos sequer lembramos, exceto quando acordamos durante os curtos minutos em que os engendramos a dormir. Algumas pessoas acreditam que durante o ato de sonhar, o nosso espírito vaga nos lugares relacionados ao sonho, muitos vezes em paragens misteriosas, longínquas, por vezes fora de nosso planeta. Hoje, essa atividade cerebral é estudada com o auxílio de aparelhos, mas o fato é que a mente humana ainda é cheia de surpresas e mistérios, que talvez nunca sejam completamente desvendados.

Muitas vezes me pergunto: será se o espírito humano, neste estágio terreno, fica aprisionado no cérebro e no corpo, que seriam apenas instrumentos que lhe possibilitariam ação, expressão e comunicação, embora de forma limitada? E, após a morte, a consciência do próprio ser continuaria a existir, liberta dos grilhões da carne? Como tenho dito em alguns de meus poemas e em palestras, o homem tem ânsia de infinito. Por isso, criou equipamentos, alavancas, próteses, que lhe aumentam a força, a velocidade, a capacidade de comunicação, a possibilidade de voar e de mergulhar. Assim, foram criados os tratores, os carros, o telefone, o rádio, a TV, os aviões, os submarinos, etc, que potencializam a capacidade humana. Pelo desejo e pelo pensamento, o ser humano não precisaria dessa parafernália toda, mas, encerrado na masmorra de seu próprio corpo, precisa desses equipamentos, que chamo próteses, para transcender os limites, que a matéria lhe impõe.

No sonho, não temos limite. O limite é a capacidade de nossa imaginação, de nossas fantasias, de nossos desejos. Podemos ser anjos, e voar. Podemos ser Poseidon, e perscrutar as profundezas abissais dos oceanos. Podemos criar apenas com a energia mental, sem necessidade de matéria e de instrumentos. Mas os meus dois sonhos foram bem simples. Num deles, revi, em José de Freitas, a casa onde morei nos idos de 1969/1970, quando tinha de 13 a 14 anos de idade. A casa estava em ruínas. Eu estranhava muito aqueles escombros, porque eram de uma casa de taipa, e na verdade eu morara numa casa de tijolos, apesar de simples, com uma mureta na frente.

Depois, quando eu entrava nas ruínas, descobria vestígios de uma estrutura de alvenaria, sobressaindo da taipa. Agora, acordado, sem nenhuma fantasia mirabolante, dou a esse sonho a seguinte interpretação, que poderá comportar outras e outras: morei em muitas casas, em diferentes cidades; como todas as pessoas, passei por diferentes circunstâncias, experiências, situações e aprendizagens; com o rolar do tempo, essas lembranças foram se diluindo, se transformando em ruínas, de algumas restando apenas tênues resíduos, ou nem isso, como que se perdendo completamente.

Todavia, parafraseando Carlos Drummond de Andrade, de tudo resta um pouco. Portanto, as nossas ruínas memoriais emergem, trazendo restos de taipa e de tijolos, restos de palha e de concreto, como a simbolizar as nossas fraquezas e virtudes, a nossa concretude material e a nossa diafaneidade espiritual. Em suma: esse meu sonho parece representar as várias casas em que morei, as várias etapas de minha vida, as diversas experiências que tenho tido ao longo do percurso que me coube percorrer, e que me conduziram ao que hoje sou.

Quanto ao outro sonho, não lhe dou nenhuma explicação interpretativa. Estava eu numa localidade rural, quando, sem que eu saiba como, me aparece o grande artista plástico João de Deus Netto. Nesse momento observamos um pequeno bode, perto de um grupo de pessoas, a caminhar apenas com as patas traseiras, como se fosse bípede. Apesar de pequeno – mais parecia um cabrito do que um “pai de chiqueiro” – o caprino ostentava uma volumosa e crescida barba. O inusitado da coisa ou a fantasia onírica da situação é que a barba era frisada, com ondas paralelas, e pintadas, alternadamente, de vermelho e negro.

Parecia a barba de um rei antigo, talvez Sargão, o Grande, exceto pela cor. Às vezes meus sonhos são quase premonitórios, e se assemelham a coisas que irão acontecer. Talvez nisso resida a explicação desse sonho, que não pretendia formular; hoje, recebi uma charge do flamenguista Gervásio Castro, na qual, posando de D. Pedro I, estava o Ronaldinho Gaúcho, imperial craque do glorioso Flamengo. De qualquer sorte, talvez o Netto de Deus resolva fazer uma charge desse bode flamenguista e onírico, que ele admirou em meu sonho.

2 comentários:

  1. Já vi muita coisa na vida
    mas nunca vi nada igual,
    bode da minha terra querida
    resmoendo meu bacalhau...

    Êêêitááá, deixa eu cuidar do meu ofício!!!!
    Doutor, somos leões caiçarinos, mas sou Vascão bacalhau.
    Um abração e muita saúde na próxima jornada de 2012!

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  2. Mestre Netto,
    Pelo visto esse bode deu bode, com cheiro rançoso de bacalhau vascaíno.
    No Rio de Janeiro você navega nas costas do Bacalhau dos patrícios e eu voo no dorso do Urubu rubro-negro.De qualquer modo, quem não gosta de uma boa bacalhoada, principalmente na semana-santa?
    Ainda bem que nos carnaubais bitorocarenses dos campos maiores nós dois convergimos para o leão alvi-rubro, sanguíneo, sanguinário e sanguinolento, mais conhecido como Caiçara.Quááááá!

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