Jornalista Cunha e Silva |
Cunha e Silva Filho
Foi
em 1974. À tardinha, tínhamos passado por alguns lugares bem
conhecidos de Teresina. O tempo, porém, passou rápido como o tênue
fio que separa a vida da morte. Quando demos fé, já era tarde da
noite. Nossa conversa, em pé, encostados à mureta da parte mais
alta da Pça Pedro II da velha Teresina cansada de guerra, naquela
divisão social e preconceituosa que separava, por uma rua, as duas
partes da praça, uma a das meninas de nível social mais alto ou bem
alto, e a outra, em que estávamos, que dava para o antigo Quartel de
Polícia, lugar das meninas pobres, das então chamadas curicas.
Evandro
e eu estávamos ali, olhando para uma praça quase vazia, que parecia
abandonada por seus frequentadores. Mas, esse vazio pouca diferença
fazia para o dois jovens irmãos, eu, um ano mais velho que ele,
recém-chegado do Rio depois de dez anos sem ver meus pais.
Com
de costume, nossas conversas se voltavam para o futuro e para um
futuro muito colado às coisas da cultura, de livros, de sonhos e
projetos que pretendíamos concretizar com o passar do tempo. Me
dizia o mano Evandro: “Chico, a gente tem que fazer alguma coisa
sólida na campo literário. Isso é coisa séria, exige muita
leitura, preparo, lutas, combates, e principalmente estudos.. É
preciso produzir, irmão! Porém, tem que ser alguma coisa que valha
a pena , que tenha valor, que perdure e deixe marcas.
Naquela
época eu já começara a escrever pra jornais de Teresina e, no Rio,
mal acabara de me graduar em Letras. Evandro tinha já manifestado
inclinação para a poesia. Fizera poemas que eu não conhecia. Já
estava formado em Direito e era recém-casado. Já tinha passado pela
militância universitária. Fora preso, durante alguns meses, pela
Ditadura Militar.
Essas
lembranças que alinhavo agora vêm a propósito da notícia pesarosa
que hoje me chegou de um telefonema de minha irmã, a Maria Cândida,
me transmitindo aquilo que jamais esperaria saber tão
prematuramente, a de que Evandro faleceu nesta madrugada num hospital
de Fortaleza, para onde há alguns meses foi se tratar de uma doença
que dele exigia um transplante. Operaram-no. Resistiu à cirurgia.
Estava bem, me informara minha irmã. Contudo, três meses, não sei
ao certo, passou mal e veio a falecer ao sessenta e cinco anos.Seu
corpo será trasladado de avião para Teresina, onde vai ser velado e
sepultado. É o terceiro irmão que perco nesta vida . Estou arrasado
por dentro, mesmo tendo que confessar que , tempos atrás, depois da
morte de papai, guardara alguma mágoa dele por razões que hoje já
não significam muito ou nada mesmo. O sangue fala mais alto.
Na
realidade, nunca brigamos de verdade. Nas vezes que estive com ele,
quando ia a Teresina, sempre nos tratamos bem. Ele tinha um
temperamento alegre não dava mesmo para ter raiava dele. No ano
passado, quando fui lançar meu livro As ideias no tempo, na Academia
Piauiense de Letras, ele lá comparecera no auditório da APL. Me
ouviu expor sobre meu livro e comprou um exemplar que lhe autografei.
Eu estava com o meu filho mais velho, o Neto. À noite, do mesmo dia
do lançamento, levou-nos ele no seu carro a um passeio por Teresina.
Fomos a um Shopping, tomamos sorvete. Conversamos e rimos muito da
vida e dos homens. Evandro era espirituoso, inteligente, culto, lido,
escrevia bem e era contundente. Não lhe faltava uma boa dose de
sarcasmo contra mediocridades. Tinha boa leitura no campo sociológico
e argumentava com mito vigor intelectual. Grande admirador da alta
literatura universal. Seu espírito de autocrítica talvez o tenha
refreado a produzir mais literatura, no conto e na poesia. Leu também
o que era bom e tinha projetos de escrever mais ficção. Tinha
especial talento para o jornalismo, Uma vez, fundara uma revista, que
durou pouco tempo.
O
que nele mais ressaltaria, neste momento de dor, era a sua veia
crítica, o seu sarcasmo, como se rabelaisianamente quisesse rir das
nulidades e de si mesmo.Naquele último encontro que tive com
ele,antes de descermos do carro meu filho e eu, estava selada pelo
destino o meu convívio, sempre em horas tão breves e fugidias, mas
cheio de risadas, de relatos engraçados sobre homens, fatos,
situações familiares num tom de voz que lhe era inconfundível,
sobretudo porque costurados pela ironia dos que vivem a vida pelo
instante que passa.
Nos
meus arquivos guardo dele uma carta de 1990, um recorte de jornal de
Teresina com um poema dele juvenil à maneira de Augusto dos Anjos
(1884-1914) e uma crônica/conto autobiográfico em que o personagem
principal é a figura de papai num momento difícil da vida do grande
jornalista.
O
melhor período que passei com ele foi na infância e início da
adolescência. Evandro adorava que lhe contasse narrativas de livros
que eu tinha lido. Naquela época de ouro e de inocência éramos
muito amigos, nos amamos e era um prazer estar com ele. Um outro
momento de grande emoção foi aquele em que lhe pude ajudar de
alguma forma. Foi quando ele, tendo feito vestibular para Direito,
não passou na primeira tentativa. Me dissera chateado que na prova
de inglês havia se dado mal. Aqui do Rio - já vão tantos anos! -,
preocupado com a situação dele, corri à Embaixada Americana.
Conversei com o Departamento Cultural e pedi ajuda a uma gentil
pessoa que me atendeu. Eu procurava material para o ensino do inglês.
A assessora me meio então com um pequeno e atualizado livrinho para
o ensino do inglês e destinado a brasileiros. Contente fiquei e
remeti logo pro Evandro o volume. Na segunda tentativa, ele fora
aprovado para o curso de Direito. Numa outra ida minha a Teresina, me
confidenciou que já lia regularmente o inglês e me agradecera pelo
envio daquele livrinho.
Se
um profundo descompasso houve, até agora, entre ele e mim no que
concerne a uma intimidade maior e a um estreitamento mais radical de
nossa amizade e de nosso afeto, e isso tem sido comum entre meus
familiares irmãos, irmãs, e parentes próximos, talvez tenha, em
grande parte, sido devido ao meu afastamento de tantos anos, com
poucas idas ao Piauí, ou porque talvez isso seja apenas uma questão
de temperamento mesmo entre os familiares. No entanto, ainda quero
acreditar que, no fundo, há respeito e bem-querer nesta numerosa
família. Creio ainda na amizade e amor que correm no sangue comum.
No
verbete do utilíssimo Dicionário biográfico de autores piauienses
de todos os tempos, de Adrião Neto, constam estas informações
biobliográficas sobre meu irmão:
“SILVA,
Evandro Setúbal da Cunha e Silva. n. 14-04-1947 – Amarante (PI).
Contista e cronista. Formado em Direito. Fiscal do Ministério do
Trabalho. Bibliografia: “Ensaios Políticos”(1981) e Relações
de Empregos” (1984). Participou de “Coletânea Poética (1987) e
da antologia Poética de Cidades Brasileiras” (1988).”
Parabéns ao nobre poeta e magistrado pelo resgate dessas históricas e belas imagens de nossa querida cidade de Teresina.
ResponderExcluirJardiel Araújo
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