terça-feira, 4 de setembro de 2012

O outono da vida



Cunha e Silva Filho

Olívio Lins, agora, se encontrava naquela fase de haver passado, digamos, pelos maiores piques de visibilidade nas rodas literárias. Imaginava-se praticamente como alguém que houvesse cumprido o último ciclo de sua atividade produtiva. Escrevera livros que, pouco vendidos, estavam encalhados e já se encontravam nos sebos reais e virtuais. Naquela manhã, acordara mais cedo, embora julgasse que acordar cedo seria muito bom para a saúde Mas, ele mesmo, por mais que se esforçasse, não conseguia levantar cedo, sempre prolongava duas ou mesmo três horas mais de sono antes de despertar outra vez  definitivamente.

Já tinha ouvido de um colega do magistério, o Euler, que o pai deste vendia saúde. Era homem, segundo contava Euler, de meia idade que não parava, nem em casa, nem na rua. Estava sempre em atividade, fazendo alguma coisa, olhando algum reparo a ser feito na sua casa, ou, quando na rua, percorrendo os corredores dos supermercados sempre apinhados de gente carregando carrinhos que vez por outra, se atropelavam, abriam discussões entre os clientes, gerando desculpas ou apenas palavrões, os mesmos carrinhos que, quando ia aos supermercados, por detrás, vez por outra, vinham chocar-se contra o seu tornozelo, causando-lhe dores finas e fazendo pequenos rasgos na pele do lugar atingido. Por isso, novamente outra discussão contra quem provocava o acidente. As discussões acaloradas de parte a parte terminavam em mútuos palavrões de parte a parte.

Manhã de agosto, com ventinho bom soprando e penetrando pelas janelas meio abertas ou pela porta de vidro do salão do apartamento. Como é bom sentir o ar fresco do vento que vem da baía da Guanabara!. Lembrava-se de sua professora de origem judia que , com u belo sorriso, exclamara um dia em plena aula de literatura“ Oh, como é bom sentir que estamos vivos! Não muito tempo depois, aquela competente mestra viera a falecer de câncer. Ela, que tanto prezava a vida, a existência, o respirar, o sentir-se viva, palpitante, respirando, sentindo a vida e parecendo aspirar todo o ar do mundo.

Seu tempo de universidade, como professor, acabou-se. Agora, eram os ócios forçados pela compulexpulsória dos setenta anos. Já era, no entanto, tempo para afastar-se do meio estritamente acadêmico. Não que tivesse lecionado por um longo tempo no ensino superior. Só lá ficara por dez anos apenas. Não se considerava um talhado para o ensino superior, a sala de aula, a chatice burocrática, as reuniões de colegiado, os estrelismos, as tarefas outras que mais o transformavam num funcionário comissionado. Queria mesmo era escrever seus ensaios, sua poesia. De quando e quando, apesar de tudo, ia até à faculdade, conversava com alguns colegas mais chegados, num papo que ia da teoria do romance contemporâneo até a tragédia da Síria.

No íntimo, sentia-se algo desprestigiado. Novos professores chegavam, com suas novidades e suas leituras mais atualizadas, seus diplomas de doutorados e pós-doutorados no exterior, sua vivacidade e elasticidade de pensamento. Ele, não, já havia fechado um ciclo de produção que agora nem mais era citada em monografias , dissertações ou teses. Recordou-se, então, do personagem de O feijão e o sonho, de Orígenes Lessa, aquele intelectual sonhador, que vivera no interior, uma existência medíocre, sem mais perspectiva de poder acompanhar os novos tempos trazidos pelo Modernismo poético. A mesma sensação de impotência diante dos novos tempos assaltava o íntimo de Olívio Lins. Via-se um escritor fracassado, esquecido pelos leitores e pelas mudanças da formas literárias surgidas nos últimos anos. Sentia que não mais podia acompanhar o frenesi das transformações por que passou a literatura mundial contemporânea, inclusive no Brasil. Não há como parar o temo literário, a dinâmica da vida dos escritores, cada qual com sua história de vida e sua consciência de que cada um é apenas uma parte bem minúscula e desconhecida, quando não cedo esquecida, do “vasto mundo” de Drummond.

Raramente, na fase de aposentadoria, participava de seminários ou congressos, quer nacionais, quer internacionais. Quase foi aquele tempo em que, como visiting professor, trabalhara na University of Califórnia, Berkeley. Gostara do ambiente acadêmico, mas antes pensava que seria mais influente sua passagem pelo Departamento de Literatura Comparada. Poucos alunos formavam os cursos que ministrou procurando tornar mais conhecido alguns escritores brasileiros em estudos comparativos com escritores americanos. Porém, sua temporada fora do país lhe foi, de alguma forma, proveitosa, dando-lhe uma visão mais ampla das diferenças que encontrara no mundo acadêmico americano.

O sol daquela manhã não estava tão quente. Quando foi dar uma caminhada por algumas ruas perto de sua residência, o relógio digital marcava temperatura de trinta graus. De volta para casa, já trazendo um jornal de domingo, Olívio Lins não tinha dúvidas de que seu tempo passara. O melhor seria esperar as horas, os dias, outras manhãs de brisa benfazeja invadindo sua janela, a porta do salão e, observando com cuidado, entrando também pela janela semi-aberta da área do tanque. O tempo, inexorável, se insinuava em cada despertar para um outro dia pouco mutável, quase solitário em que se transformara sua vida de escritor. Sua biblioteca era modesta, não obstante tivesse alguns títulos, em diversas áreas da literatura, que fariam inveja a qualquer intelectual. Algum recalque, ou ressentimento que por ventura lhe passasse pelo pensamento, fulminante, se apagava logo que se aproximava de uma das prateleiras da biblioteca e sentia plenamente o valor do que aqueles volumes tinham sido para a sua formação intelectual e para a sua vida como pessoa igual às outras no planeta Terra.

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