Cunha
e Silva Filho
Olívio
Lins, agora, se encontrava naquela fase de haver passado, digamos,
pelos maiores piques de visibilidade nas rodas literárias.
Imaginava-se praticamente como alguém que houvesse cumprido o último
ciclo de sua atividade produtiva. Escrevera livros que, pouco
vendidos, estavam encalhados e já se encontravam nos sebos reais e
virtuais. Naquela manhã, acordara mais cedo, embora julgasse que
acordar cedo seria muito bom para a saúde Mas, ele mesmo, por mais
que se esforçasse, não conseguia levantar cedo, sempre prolongava
duas ou mesmo três horas mais de sono antes de despertar outra vez
definitivamente.
Já tinha ouvido de um colega do magistério, o Euler, que o pai
deste vendia saúde. Era homem, segundo contava Euler, de meia idade
que não parava, nem em casa, nem na rua. Estava sempre em atividade,
fazendo alguma coisa, olhando algum reparo a ser feito na sua casa,
ou, quando na rua, percorrendo os corredores dos supermercados sempre
apinhados de gente carregando carrinhos que vez por outra, se
atropelavam, abriam discussões entre os clientes, gerando desculpas
ou apenas palavrões, os mesmos carrinhos que, quando ia aos
supermercados, por detrás, vez por outra, vinham chocar-se contra o
seu tornozelo, causando-lhe dores finas e fazendo pequenos rasgos na
pele do lugar atingido. Por isso, novamente outra discussão contra
quem provocava o acidente. As discussões acaloradas de parte a parte
terminavam em mútuos palavrões de parte a parte.
Manhã
de agosto, com ventinho bom soprando e penetrando pelas janelas meio
abertas ou pela porta de vidro do salão do apartamento. Como é bom
sentir o ar fresco do vento que vem da baía da Guanabara!.
Lembrava-se de sua professora de origem judia que , com u belo
sorriso, exclamara um dia em plena aula de literatura“ Oh, como é
bom sentir que estamos vivos! Não muito tempo depois, aquela
competente mestra viera a falecer de câncer. Ela, que tanto prezava
a vida, a existência, o respirar, o sentir-se viva, palpitante,
respirando, sentindo a vida e parecendo aspirar todo o ar do mundo.
Seu
tempo de universidade, como professor, acabou-se. Agora, eram os
ócios forçados pela compulexpulsória dos setenta anos. Já era, no
entanto, tempo para afastar-se do meio estritamente acadêmico. Não
que tivesse lecionado por um longo tempo no ensino superior. Só lá
ficara por dez anos apenas. Não se considerava um talhado para o
ensino superior, a sala de aula, a chatice burocrática, as reuniões
de colegiado, os estrelismos, as tarefas outras que mais o
transformavam num funcionário comissionado. Queria mesmo era
escrever seus ensaios, sua poesia. De quando e quando, apesar de
tudo, ia até à faculdade, conversava com alguns colegas mais
chegados, num papo que ia da teoria do romance contemporâneo até a
tragédia da Síria.
No
íntimo, sentia-se algo desprestigiado. Novos professores chegavam,
com suas novidades e suas leituras mais atualizadas, seus diplomas de
doutorados e pós-doutorados no exterior, sua vivacidade e
elasticidade de pensamento. Ele, não, já havia fechado um ciclo de
produção que agora nem mais era citada em monografias ,
dissertações ou teses. Recordou-se, então, do personagem de O
feijão e o sonho,
de Orígenes Lessa, aquele intelectual sonhador, que vivera no
interior, uma existência medíocre, sem mais perspectiva de poder
acompanhar os novos tempos trazidos pelo Modernismo poético. A mesma
sensação de impotência diante dos novos tempos assaltava o íntimo
de Olívio Lins. Via-se um escritor fracassado, esquecido pelos
leitores e pelas mudanças da formas literárias surgidas nos últimos
anos. Sentia que não mais podia acompanhar o frenesi das
transformações por que passou a literatura mundial contemporânea,
inclusive no Brasil. Não há como parar o temo literário, a
dinâmica da vida dos escritores, cada qual com sua história de vida
e sua consciência de que cada um é apenas uma parte bem minúscula
e desconhecida, quando não cedo esquecida, do “vasto mundo” de
Drummond.
Raramente,
na fase de aposentadoria, participava de seminários ou congressos,
quer nacionais, quer internacionais. Quase foi aquele tempo em que,
como visiting professor, trabalhara na University of Califórnia,
Berkeley. Gostara do ambiente acadêmico, mas antes pensava que seria
mais influente sua passagem pelo Departamento de Literatura
Comparada. Poucos alunos formavam os cursos que ministrou procurando
tornar mais conhecido alguns escritores brasileiros em estudos
comparativos com escritores americanos. Porém, sua temporada fora do
país lhe foi, de alguma forma, proveitosa, dando-lhe uma visão mais
ampla das diferenças que encontrara no mundo acadêmico americano.
O
sol daquela manhã não estava tão quente. Quando foi dar uma
caminhada por algumas ruas perto de sua residência, o relógio
digital marcava temperatura de trinta graus. De volta para casa, já
trazendo um jornal de domingo, Olívio Lins não tinha dúvidas de
que seu tempo passara. O melhor seria esperar as horas, os dias,
outras manhãs de brisa benfazeja invadindo sua janela, a porta do
salão e, observando com cuidado, entrando também pela janela
semi-aberta da área do tanque. O tempo, inexorável, se insinuava em
cada despertar para um outro dia pouco mutável, quase solitário em
que se transformara sua vida de escritor. Sua biblioteca era modesta,
não obstante tivesse alguns títulos, em diversas áreas da
literatura, que fariam inveja a qualquer intelectual. Algum recalque,
ou ressentimento que por ventura lhe passasse pelo pensamento,
fulminante, se apagava logo que se aproximava de uma das prateleiras
da biblioteca e sentia plenamente o valor do que aqueles volumes
tinham sido para a sua formação intelectual e para a sua vida como
pessoa igual às outras no planeta Terra.
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