1º de março
CIRCO DE SOLEIL E OS CIRCOS ENCANTADOS DE MINHA INFÂNCIA
Elmar Carvalho
Neste domingo, à tarde, no programa televisivo da
Regina Cazé, o Djavan, um tipo mulato, um dos maiores artistas da
música popular brasileira, disse ser filho de uma lavadeira e de um
representante comercial holandês, louro dos olhos azuis. Falou que
no seu registro de nascimento não consta o nome de seu pai. No
programa, houve depoimento de várias outras pessoas, filhas de pais
ignorados. Algumas disseram que conseguiram descobrir quem era seu
pai, e que conseguiram localizar seu paradeiro. Entretanto, outras
não tiveram êxito nessa busca, ou, pelo menos, não tiveram um
final feliz, pela não aceitação ou má-vontade do pai ou suposto
pai.
Embora não estivesse melancólico nem entediado,
resolvi assistir a um filme no Teresina Shopping. Não pude consultar
no site apropriado que filme gostaria de ver, em virtude de que a
provedora da internet estava sem funcionar, desde o dia anterior, o
que é um abuso contra o quase indefeso consumidor. Na fila para
compra do bilhete, decidi, em razão do horário e das opções,
assistir à película João e Maria: Caçadores de Bruxa. No guichê,
declinei o nome do filme, paguei e recebi um bilhete, que não
conferi.
O porteiro indicou-me o número da sala. Apesar de estar
um pouco antes do horário do início, verifiquei que já estava
havendo exibição, com as luzes devidamente apagadas. Pensei que meu
relógio poderia estar atrasado, ou que se tratasse de um trailer.
Logo constatei que a moça me dera um bilhete para o filme Cirque du
Soleil – outros mundos. Procurei aceitar o equívoco “numa boa”,
sem queixas e sem resmungos. Talvez eu não tivesse falado
suficientemente alto, ou a vendedora tivesse alguma deficiência
auditiva.
Terminei gostando do espetáculo, exibido na telona, em
3 dimensões. De fato é um grande circo, e faz jus à fama que
conquistou. Seu plantel de grandes artistas é fabuloso. É claro que
eu conhecia quase todos os números. Porém, todos tinham alguma
novidade, seja no equipamento, na encenação, no vestuário, no
cenário, ou nos efeitos especiais, que davam um toque de magia, como
se fosse um filme de um outro filme ou o sonho de um outro sonho.
Uma singela história romântica permeava a fita, como
se alinhavasse os diferentes quadros, na qual uma moça procurava,
com um cartaz, um acrobata, que encerrou o filme com ela, numa
performance coreográfica, ambos dependurados numa tira de pano, a
oscilar de um lado para outro, quase como se tivessem asas. Na saída,
ouvi uma jovem comentar para a amiga que esperara mais do enredo,
como se não tivesse atentado para o fato de que o importante fora a
exibição de números circenses, realmente de alta qualidade.
Alguns trapézios eram muito grandes, tinham movimento
próprio, mecânico, aparência inusitada, e comportavam vários
artistas, que executavam verdadeiras coreografias aéreas. O jogo de
luz transformou uma banheira semi-esférica, vertiginosamente alta,
numa lua. Uma linda moça executou caprichosos e ousados movimentos
dentro e fora da água, equilibrando-se perigosamente na borda da
banheira, sem medo da queda no abismo. Quando a jovem mergulhou na
espumante água, como se fosse um golfinho, ou melhor, uma sereia, um
jogo de luz, quase como se fora um feitiço, fez o cenário tomar o
aspecto de transparente fundo de mar.
Logo vários acrobatas, dependurados em fios, vestindo
roupas que simulavam animais marinhos, como águas-vivas, medusas,
polvos, camarões ou similares, passaram a se movimentar nesse
cenário encantador e encantado. Em outro momento, foram apresentadas
belas acrobacias e coreografias, com os artistas se movimentando,
para um lado e para outro ou para cima e para baixo, dependurados em
tiras de tecido, em notável bailado aéreo, em que interagiam entre
si.
Seria uma tarefa quase impossível e inglória tentar
descrever todos os números do Cirque du Soleil. Só fiz as
referências acima, para que o leitor tenha uma pequena ideia do
espetáculo. É importante dizer que a companhia tem engenhosas
engenhocas, como o velho velocípede, que se movia sozinho;
picadeiros altíssimos, que se assemelhavam a despenhadeiros;
plataformas para trapezistas e acrobatas, que simulavam montanhas e
abismos. A rede de proteção era uma enorme piscina, para a qual os
artistas pulavam, muitas vezes fazendo pulutricas. Os cenários e as
luzes executavam efeitos especiais, em que o cenário parecia obra de
um poderoso feiticeiro.
Ao ver os prodigiosos números do Cirque du Soleil,
recordei os pequeninos circos encantados de minha infância, que
aportavam na pequenina Campo Maior dos anos 60. Lembrei-me dos
palhaços, dos trapezistas, dos malabaristas, dos contorcionistas,
dos acrobatas, dos mágicos, que povoaram a minha meninice de magia e
encantos. Lembrei-me dos palhaços, encarapitados em magras e
altíssimas pernas de pau, a puxar um magote de moleques, que lhes
respondiam a cantilena, como se fora um responso algo sacrílego, por
vezes fescenino. Alguns desses circos mambembes tinham a lona cheia
de buracos e remendos, e outros sequer tinham cobertura, de tão
pobres que eram. Mas todos tinham o sortilégio e a riqueza de uma
arte soberba, que magnetizava adultos e crianças.
Já adulto, ao levar meus filhos a um espetáculo
circense, chorei de emoção e saudade. Emocionava-me ver os
artistas, na quase exaustão de sua força, focados, se esmerarem em
suas apresentações, tão belas e tão efêmeras. Emoção porque no
passado eu tinha meus pais para cuidarem de mim, e agora era eu que
cuidava de meus filhos. A saudade, como disse o poeta, jorrou-me em
ondas... A saudade do tempo em que meu pai me levava para o circo e
para o estádio, para o ludismo do trapézio e dos malabares e do
encanto do futebol. Devo confessar que chorei. Minha mulher notou, e
comentou esse fato. Tomado ainda de viva emoção, escrevi o poema
Emoção no Circo.
Ao assistir ao filme do solar Circo de Soleil, tive
rápido momento de nostalgia pela minha infância irremediavelmente
perdida. Mas me alegrei, logo em seguida, porque tive pais bons e
presentes, que me deram pão e circo, advertências e conselhos,
liberdade e limites. E me disciplinaram com amor e com afeto.
Lembrei-me do programa da Regina Cazé, e senti tristeza por aqueles
que nunca conheceram a figura de um pai, de um pai realmente pai.
Não pude deixar de me lembrar do seguinte texto
memorialístico do velho bardo Manuel Bandeira: “Quando meu pai era
vivo, a morte ou o que quer que me pudesse acontecer não me
preocupava, porque sabia que pondo minha mão na sua, nada haveria
que eu não tivesse coragem de enfrentar”. É assim que eu me
sentia, quando meus pais me levavam aos circos encantados de minha
infância. Eu me sentia alegre, confiante, seguro e nada me parecia
faltar. Agradeço a Deus por ainda tê-los vivos e lúcidos, ao
alcance de meu querer e bem-querer.
Ei padrinho Elmar foi até bom a moça ter errado quanto ao filme, pois assim tu assistiu um que te evocou essas lembranças emocionantes, e ao escrevê-las aqui, além de nos emocionar, nos leva a recordar as nossas. Eu me alegro também "porque tive pais bons e presentes, que me deram pão e circo, advertências e conselhos, liberdade e limites. E me disciplinaram com amor e com afeto", e "agradeço a Deus por ainda tê-los vivos e lúcidos, ao alcance de meu querer e bem-querer". Quer dizer, não tão ao alcance do meu querer , visto que moro distante, mas bem ao alcance do meu bem-querer, pois os AMO demais.
ResponderExcluirO circo e a infância, na belíssia crônica sua, Elmar, são dois polos, um do presente, outro, do passado. No presente, a confusão gerada pela incerteza do filme que iria ver é desses acasos de que fala Shakespeare numa maneira de definir o a formação da vida.
ResponderExcluirVocê, sem querer, sem forçar a vontade, for driblado por este feliz acaso, ou quiproquó, ao asssitir a um filme que não estava nos seus planos.
Tal confusão,porém, lhe foi , ao cabo, mais gratficante ao espirito, ou melhor , à memória, do que o que aguardava ver.
O resultado foi um visão dupla de contentamento, de deslumbramento(no sentido bandeiriano) porque o presente era um circo, e o passado era também um circo, e um circo especial, cheio de sortilégios, de magias e encantamentos, ou seja, as memórias do poeta-menino de Campo Maior.
Sua descrição, suas narração do circo-presente e a do circo passado se completam exemplarmente e lançam, mais uma vez, o desafio do incidente, do imprevisto que termina, como numa comédia shakespeariana, "tudo está bem porque termina bem."
O resultado, repito, foi esta crônica bem dosada de apreensão aguda do visto, do observado no filme com precisão e minucias e do relembrado do passado com a magia feita da sempre lembrnça da família, centrada no pai amado e ainda vivo e, implicitamente na mãe, felizmente ainda viva também, na comparação entre a experiência do passado e seu reino encantado, e de outro passado menos remoto, em que vive a situação, a experiência de pai também, do gesto amoroso do pai para o filho, em siutação e contexto psicológico-afetivo semelhanate, sob a invvocação oportuna da citação de um trecho de Manuel Bandeira.
Isso me faz lembrar uma crônica, igualmente belíssima, cheia de humanidade e de amor filial- tímdo, entre o que Vinicius de Morais fala do pai e da falta de um encontro com um diálogo mais aberto entre os dois, o qul não se concretizou em vida, mas se realizou em forma de Arte pela crônica.
Todo esse comentário foi suscitado pela leitura de sua crônica tendo como assunto pricipal o circo e memória do artista.
Joserita e Cunha e Silva Filho,
ResponderExcluirFico muito satisfeito de que os dois tenham gostado de minha crônica memorialística, e de que esse texto lhes tenha emocionado de forma positiva.
Tenho essa grata lembrança dos tempos em que meu pai me levava aos circos encantados de minha infância e ao reino mágico do Cine Nazareth, que em minha memória ainda persiste, sobretudo quando revejo o velho prédio, hoje transformado em escola, se não estou enganado.
Abraço,
Elmar