31
de outubro Diário Incontínuo
O
DENTE DE OURO
Elmar Carvalho
Um
dos companheiros de tratamento da radioterapia do Hospital São
Marcos me narrou uma história, que é um verdadeiro conto, sem
necessidade de nenhum enfeite e torneio literário. A narrativa segue
abaixo, do jeito que a recordo neste instante; apenas tomarei a
precaução de alterar os nomes dos personagens citados, a fim de
evitar fuxicos e eventuais retaliações, inclusive judiciais.
O
coronel Ozildo Bezerra, pouco tempo depois de enviuvar, se casou com
uma cabocla nova, bonita, com todo jeito de fogosa, de nome Maria das
Graças. Todos a chamavam apenas de Gracinha, o que era muito justo,
uma vez que ela, com efeito, era uma gracinha, por sua formosura e
alegria contagiante. Não tardou muito, a moça passou a enfeitar a
fronte do sexagenário coronel com duas belas e formidáveis aspas.
Os
murmúrios foram se espalhando, e terminaram chegando aos ouvidos do
coronel, que já vinha desconfiando dos modos ariscos e furtivos da
mulher. Ela, em alguns momentos, se tornava muito alegre e em outros,
um tanto amuada, e por vezes lhe negaceava certos agrados nas horas
das camaradagens. Parecia estar enojada e enfastiada do fazendeiro,
que tudo percebia, mas ainda sem querer acreditar no que já se
anunciava, de forma quase escancarada.
Ozildo
chamou a mulher às falas, e ela, embora negando traí-lo, respondeu
com certa insolência e leve zombaria. Ferido em seu brio de marido e
macho, o coronel desferiu um forte soco em Gracinha, que não tentou
revidar. Entretanto, passada a raiva, e seguindo velha filosofia,
preferiu continuar compartilhando seu doce de leite a comer sozinho
titica de galinha.
A
fazenda contígua à de Ozildo pertencia ao coronel Lucas Soares
Pereira, que mantinha na parede de seu alpendre doze armadores, nos
quais cochilavam, dependurados, doze rifles, que eram periodicamente
limpos e lubrificados. Comentava-se que Lucas, ao longo de décadas,
acoitara alguns fugitivos do Ceará, que supostamente teriam cometido
um ou outro homicídio, geralmente por vingança a alguma desfeita ou
injustiça ou para lavagem da honra, em virtude de infidelidade
conjugal. Fora os cearenses, o coronel tinha seus próprios
agregados, que não se negariam a cometer uma ou outra “missão de
sangue”, que ele lhes determinasse.
Contudo,
não se pense que Lucas fosse um homem brabo, violento, de maus
bofes. Muito pelo contrário; parecia a própria mansidão em figura
de gente. Falava baixo e de forma pausada. De extrema gentileza
quando recebia algum visitante, ofertava a sua melhor comida e a sua
rede mais confortável. Ostentava sempre notável bom-humor, e
estimava inventar as suas próprias anedotas e “pegadinhas”. Não
gostando de banguelas e nem de que seus agregados sentissem dores
desnecessárias, mantinha um dentista prático ou protético em sua
fazenda, mestre em arrancar dentes de forma indolor e em preparar
belas dentaduras.
Exatamente
por causa da existência do dentista protético, como se dizia nos
velhos tempos, Gracinha chegou à casa-grande do coronel Lucas, que
lhe indagou sobre o motivo da visita. Ela explicou que Ozildo lhe
arrancara um dente da parte frontal de sua boca, e por isso desejava
colocar em seu lugar um dente de ouro. Não explicou a causa da
agressão, e nada lhe foi perguntado a esse respeito, até porque
Lucas era um amigo fraterno de seu marido. O serviço foi feito,
tendo Gracinha exibido o seu melhor sorriso, em que se via o brilho
dourado da prótese, feita com todo esmero e capricho.
O
coronel Lucas mandou que seu motorista levasse em seu jeep a jovem
mulher e um bilhete ao seu amigo Ozildo Bezerra das Areias, como era
mais conhecido. O positivo deveria aguardar a resposta. O
destinatário imediatamente leu a missiva, sem maiores dificuldades,
posto que a letra era graúda, bonita e bem delineada. Nela estava
dito: “Devolvo sua mulher mais bonita do que quando a recebi, uma
vez que ela agora tem um dente de ouro. Peço que me mande o valor do
serviço, que custou a importância de ...”
Prontamente,
Ozildo entregou o valor solicitado ao mensageiro, dizendo:
– O
Lucas não tem jeito mesmo; sempre fazendo as suas brincadeiras!
Em
seguida, de mãos dadas, levou Gracinha para a alcova, para melhor
apreciar o dente de ouro.
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