sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

S. Sebastião, o dono da cidade


Fonseca Neto

Exprime certo tipo de “mito”, sem correspondência na realidade, a impressão de que a Igreja Católica é a grande latifundiária do Brasil. Nunca foi. No entanto, é decisivo o papel dessa antiga instituição na formação territorial urbana brasileira. Veja-se um exemplo, bom de tratar, hoje, dia de São Sebastião.

Lá em Passagem Franca, Maranhão, esta é data de grande festa católica, que até se tornou, também na esfera civil, o mais importante feriado municipal – os mais velhos chamam-no de “dia de preceito”. Tudo para honrar o santo-mártir, que é o padroeiro do lugar, e também, formal e legalmente, o dono da terra urbana e parte de seus arredores, chamadas “terras do santo”. Repita-se, dono (dominus), no sentido jurídico pleno.

Desavisados supunham que tal situação não mais existiria no Brasil desde a proclamação da República, quando se deu a separação do Estado em relação à Igreja. Houve, sim, a separação, mas foi negociada a intocabilidade das propriedades fundiárias da igreja romana. E Rui Barbosa foi o redator do decreto (07.01.1890) que assegurou os direitos eclesiásticos:

Art. 4º Fica extincto o padroado... Art. 5º A todas as igrejas e confissões religiosas se reconhece a personalidade juridica, para adquirirem bens e os administrarem, sob os limites postos pelas leis concernentes á propriedade de mão-morta, mantendo-se a cada uma o dominio de seus haveres actuaes, bem como dos seus edificios de culto”.

A cidade de Passagem Franca foi fundada por gente católica e a formação territorial-urbana e municipal ocorreu em torno da igreja: em 1820 iniciou-se a construção da capela e para sua constituição, depois cabeça de freguesia/paróquia, sesmeiros-devotos doaram a São Sebastião parte de suas datas de terra, para verem aceita a postulação de viabilização de sua igreja particular. Assim, o padroeiro passou a ter cerca de meia légua de terras ao redor da capela (depois Matriz), nas ali chamadas “datas” Piaçava, Lagoa do Taboleiro e Saco do Paulo.

De posse de seu patrimônio em terras – excelentes, por sinal – o núcleo original (do que seria, anos mais tarde a cidade) foi crescendo, tornando-se freguesia em 1835 e sede municipal em 1838. E todos os seus moradores sendo habitantes da “terra do padroeiro” – espécie de servos da gleba de São Sebastião, pagando-lhe rendas das produções, esmolas, outros contributos. Transcorreu o século XIX, adentrou-se o século XX e somente em 1980 é que a zona urbana estendeu-se para além do perímetro do senhorio do Santo.

Portanto, desde sua criação, o município e sua vila-cidade, nunca possuíram patrimônio próprio: os milhares de moradores locais são uma espécie de “posseiros do santo”, nenhum tendo titulação definitiva do pedaço que ocupa, consoante os padrões e as solenidades escriturais regulares. Até há bem pouco tempo, a convivência foi totalmente pacífica sob a égide dessa propriedade de “mão morta”, tendo havido apenas (anos 1940) a judicialização de uma disputa com um confrontante e nos últimos dez anos, a prefeitura e particulares invadindo, e arbitrariamente se apropriando, das terras sobrantes do patrimônio da igreja.

Esse exemplo ora caracterizado é comum em muitas cidades brasileiras criadas antes de 1930, quando era obrigado o município ter seu próprio patrimônio para as cessões “de aforamento”. Nos casos em que a sede municipal – caso de Passagem Franca – foi erguida sobre o chão do santo, essa “terra sacra” substituiu, de fato, mas não de direito, a referida função no respectivo assentamento citadino-urbano. Até hoje, nas glebas do santo, quem dá “carta” de uso é o pároco e não o prefeito.

De tudo isso decorreu, historicamente, que muitos municípios simplesmente não seriam criados na época colonial e imperial por não terem patrimônio – por muito tempo dito “patrimônio da câmara”. Por quê? Porque os proprietários das terras dificilmente faziam doação para esse fim, preferindo doá-las, como se viu, para capelas, matrizes e ermidas.

Ao contrário do que um equivocado “iluminismo” prega, “terras de santo” constituem um chão de uso coletivo e espaço de forja da organização urbana e da cidadania no Brasil.  

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