Fonseca Neto
Exprime
certo tipo de “mito”, sem correspondência na realidade, a
impressão de que a Igreja Católica é a grande latifundiária do
Brasil. Nunca foi. No entanto, é decisivo o papel dessa antiga
instituição na formação territorial urbana brasileira. Veja-se um
exemplo, bom de tratar, hoje, dia de São Sebastião.
Lá
em Passagem Franca, Maranhão, esta é data de grande festa
católica, que até se tornou, também na esfera civil, o mais
importante feriado municipal – os mais velhos chamam-no de “dia
de preceito”. Tudo para honrar o santo-mártir, que é o padroeiro
do lugar, e também, formal e legalmente, o dono da terra urbana e
parte de seus arredores, chamadas “terras do santo”. Repita-se,
dono (dominus), no sentido jurídico pleno.
Desavisados
supunham que tal situação não mais existiria no Brasil desde a
proclamação da República, quando se deu a separação do Estado em
relação à Igreja. Houve, sim, a separação, mas foi negociada a
intocabilidade das propriedades fundiárias da igreja romana. E Rui
Barbosa foi o redator do decreto (07.01.1890) que assegurou os
direitos eclesiásticos:
“Art.
4º Fica extincto o padroado... Art. 5º A todas as igrejas e
confissões religiosas se reconhece a personalidade juridica, para
adquirirem bens e os administrarem, sob os limites postos pelas leis
concernentes á propriedade de mão-morta, mantendo-se a cada uma o
dominio de seus haveres actuaes, bem como dos seus edificios de
culto”.
A
cidade de Passagem Franca foi fundada por gente católica e a
formação territorial-urbana e municipal ocorreu em torno da igreja:
em 1820 iniciou-se a construção da capela e para sua constituição,
depois cabeça de freguesia/paróquia, sesmeiros-devotos doaram a São
Sebastião parte de suas datas de terra, para verem aceita a
postulação de viabilização de sua igreja particular. Assim, o
padroeiro passou a ter cerca de meia légua de terras ao redor da
capela (depois Matriz), nas ali chamadas “datas”
Piaçava, Lagoa do Taboleiro e Saco do Paulo.
De
posse de seu patrimônio em terras – excelentes, por sinal – o
núcleo original (do que seria, anos mais tarde a cidade) foi
crescendo, tornando-se freguesia em 1835 e sede municipal em 1838. E
todos os seus moradores sendo habitantes da “terra do padroeiro”
– espécie de servos da gleba de São Sebastião, pagando-lhe
rendas das produções, esmolas, outros contributos. Transcorreu o
século XIX, adentrou-se o século XX e somente em 1980 é que a zona
urbana estendeu-se para além do perímetro do senhorio do Santo.
Portanto,
desde sua criação, o município e sua vila-cidade, nunca possuíram
patrimônio próprio: os milhares de moradores locais são uma
espécie de “posseiros do santo”, nenhum tendo titulação
definitiva do pedaço que ocupa, consoante os padrões e as
solenidades escriturais regulares. Até há bem pouco tempo, a
convivência foi totalmente pacífica sob a égide dessa propriedade
de “mão morta”, tendo havido apenas (anos 1940) a judicialização
de uma disputa com um confrontante e nos últimos dez anos, a
prefeitura e particulares invadindo, e arbitrariamente se
apropriando, das terras sobrantes do patrimônio da igreja.
Esse
exemplo ora caracterizado é comum em muitas cidades brasileiras
criadas antes de 1930, quando era obrigado o município ter seu
próprio patrimônio para as cessões “de aforamento”. Nos casos
em que a sede municipal – caso de Passagem Franca – foi erguida
sobre o chão do santo, essa “terra sacra” substituiu, de fato,
mas não de direito, a referida função no respectivo assentamento
citadino-urbano. Até hoje, nas glebas do santo, quem dá “carta”
de uso é o pároco e não o prefeito.
De
tudo isso decorreu, historicamente, que muitos municípios
simplesmente não seriam criados na época colonial e imperial por
não terem patrimônio – por muito tempo dito “patrimônio da
câmara”. Por quê? Porque os proprietários das terras
dificilmente faziam doação para esse fim, preferindo doá-las, como
se viu, para capelas, matrizes e ermidas.
Ao
contrário do que um equivocado “iluminismo” prega, “terras de
santo” constituem um chão de uso coletivo e espaço de forja da
organização urbana e da cidadania no Brasil.
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