terça-feira, 7 de outubro de 2014

“EU NUNCA COMI PUDIM”


“EU NUNCA COMI PUDIM”

Jacob Fortes

O relógio do carro marcava 21 horas quando eu atravessava uma povoação rala encravada numa região exsicada do Nordeste brasileiro. Neste comenos, a agudez dos meus sentidos dizia que havia algo à frente. Levantei a luz alta do farol. O vulto adiante se fazia parecer a um veículo; enguiçado.  Levantei novamente o farol: era uma carroça a passos de tartaruga, puxada por um jumentinho ruço. Sobre o estrado da carroça um ancião hirsuto, mal-amanhado, e dois meninos, ambos descamisados e cabelos espeta-caju. A particularidade dos meninos cingia-se às suas cabecinhas de arroba que faziam lembrar miniaturas de alienígenas. O conjunto da cena, transporte e passageiros, tinha contornos que se prestavam a certificar tanto a miséria patrimonial quanto a sublimidade daquela família: avô e dois netos. Parei ao lado do carroceiro e enderecei-lhe um efusivo cumprimento de boa-noite. Ele respondeu espontâneo e prazeroso.
— Para onde o Senhor vai a essa hora da noite? Perguntei.
— Para Santa Rita, respondeu o Ancião.
— É longe daqui?
— Uma légua beiçuda.
— Essas crianças já jantaram?
— Nhô não.
— Há, nesta localidade, alguma padaria?
— Lá naquela luz encarnada vende pão.
— O senhor aceita uns pães.
— Se o for dado aceito, os bacorinhos tão com fome.
Derivei o carro à direita dizendo: queira me acompanhar até a padaria.
Enquanto comprava os pães, e refrigerante, ocorreu-me perguntar às crianças.
— Do que vocês mais gostam de comer?
O maiorzinho, seis anos aproximadamente, olhar mortiço, baixou a cabeça e nada respondeu. O menorzinho, talvez uns quatro anos, olhar desprevenido, como, aliás, são os olhares infantis, disse apenas: “eu nunca comi pudim”. A resposta nublou de tristeza a minha alma não exatamente por causa do pudim, mas porque aquela resposta realçava a recorrente constatação: “uns com tanto, outros com tão pouco”.  Enquanto famílias, pacatas — que habitam, anônimas, as vivendas rurais do Brasil — vivem abaixo do principal, e não maldizem o fado que lhes cabe em sorte, comunidades pracianas se esgoelam quando lhes falta o secundário. “Uns choram porque apanham outros porque não lhe batem
Fiquei devendo o pudim, pois o mistifório de gêneros, onde também se vendia pão, (quiçá sapato para galinha), não tinha a iguaria tão desejada por aquela criança. Paliei o seu desejo com uns bombons.
Almejo que as bênçãos divinas recaiam em messe sobre aqueles meninos, (ecos da minha meninice), assim como incidiram fartamente sobre mim. Que Santa Rita os conduza pelos melhores caminhos, mormente os da escola. Evidentemente que o poder sobreceleste precisa de uma ajudinha terreal: que a corrupção seja exonerada da odiosa função de coadjutora das iniquidades sociais.  

Nenhum comentário:

Postar um comentário