POEMA TERRA
V.
de Araújo (1950)
Não me pergunte, moço,
de onde eu vim nem para onde eu
vou...
Eu sou daqui deste solo onde o
sol,
o ano todo e todo o ano,
incide sem piedade;
deste barro cor de sangue
que, no tardio inverno,
se transforma em lama,
em cobertores, em tapetes de
piçarra.
Não se preocupe, moço,
porque jamais negarei que sou
deste chão,
que sou seu vizinho, que sou seu
irmão,
e não nego o ar que respiro,
o feijão que comi, o cuscuz que
cozi,
a rapariga que amei, a rapadura
que roí,
e que, um dia, não comi
o pão que os deuses prepararam
e o diabo endiabrado amassou.
Eu sou deste chão, moço,
deste solo onde o homem encobre,
com o gibão de couro,
o couro que o patrão tirou;
deste chão onde o vaqueiro,
com sede, com fome,
abóia, canta e encanta...
enquanto a serra, Serra Negra,
como espelho mágico,
no recolher da boiada,
no despertar da coruja,
reflete o eco de sua alma;
deste solo que nutre com fogo,
com ferro... a vida do homem
que caça caçado, cansado,
o sustento da família.
Eu sou deste chão minado de
mistérios,
onde as promessas são
o alimento dos ingênuos,
a desilusão dos velhos,
a esperança dos jovens
e o futuro incerto das crianças.
Por que me julgar se ando
descalço,
se masco fumo, se tomo pinga,
se cuspo no chão?!
Será que tenho culpa se não me
ensinaram
dominar a pena, lavrar a palavra,
ou desbastar a Pedra Bruta com
que me deparei?!
Eu sou deste chão, moço,
deste solo onde você também
nasceu...
do Parnaíba, da Parnaíba, do
Igaraçu,
da Ilha Grande(de Santa Isabel);
da Barra Grande, da Atalaia ou
Amarração,
do Coqueiro e da Pedra do Sal.
Sim, eu sou dali do Portinho
e conheço, muito bem, os mistérios
das dunas,
o açoite dos ventos, o enigma dos
mangues...
Comi caranguejo no Porto das
Barcas,
ao crepúsculo, poemei a bela
Estaiada,
fiz serenatas pra Ponte Metálica,
do Flutuante, flertei com
Floriano,
convivi com a miséria na Ponte do
Poti.
Mais que muitos, eu bem conheço a
vida...
Na Paissandu, Osiel disse que o
Tantan já foi “Estrela”,
“Fascinação”, pra mim não é nem
foi “Helena”,
“Zélia do Rancho”, eu vi com
“Bete” e “Margarida”,
“Maria das Neves”, eu conheci lá
na Guarita
e , do “Monte Carlos”,
“Meia-Noite”, divisei “Casa Amarela”.
Eu sou deste chão, moço,
de Therezina, cajuína, linda
Esperantina...
e, no 4 de Setembro, no Teatro de
Arena,
fui Romeu de Julieta que o vento
levou.
Na Serafim, fui Rei Momo com a
Nicinha,
preparei minha banda no Fundo de
Quintal,
desfilei com o Paturi, Jaime
Doido e Manelão...
e, no Troca-Troca, troquei sonho,
num dia de Carnaval, na Avenida
Maranhão.
Eu sou deste chão, moço...
Já ouvi, de Herculano, “Murmúrios
ao Vento”,
“Na Boca do Vulcão”, flagrei o
Nelson meditando,
Ramsés, fatigado, eu vi... no
“Percurso do Verbo”,
Zé Lorota e Dona Nilza encontrei
filosofando,
de “Piripiri, à Sombra de
Buganvílias e Madressilvas”,
vi Cléa Rezende, na Espanha,
despertar Salamanca;
sob a brisa equórea, fui ver com
Paulo a “Paz do Pântano”...
e, “Entre Caminhos”, com Ednólia,
fui platônico
e declamei pra ela os “Poemas Que
Neguei”.
Com o Júnior, filho meu, conheci
harmonia,
disse-me Lucas: A vida sem Deus é
jardim sem flores...
e, sozinho, com sua lanterna de
ouro, vi Diógenes,
à procura de um HOMEM... em pleno
meio-dia.
Com “Os Cavaleiros da Noite”,
cavalgando, eu vi Garcia,
aprendi, com H. Dobal, viver “O
Dia Sem Presságios”,
conheci Mauro Faustino – “O Homem
e Sua Hora”,
penetrei com Hardi Filho, na
“Gruta Iluminada”...
e, na piracema do verso, pescando
ilusão,
feliz naveguei, com Chico Miguel,
no “Universo das Águas”.
Eu sou deste chão, moço, e me
orgulho...
Já trabalhei com Cineas na
Oficina da Palavra,
de Da Costa e Silva, ainda sinto
a “Saudade”,
de Leonardo das Dores, “A Criação
Universal”,
segredo do mundo, não é mistério
pra mim;
e, na Prainha, antes que se
acabasse,
Kenard, “Pra Dizer Adeus”, chamou
Torquato
que fez pra ela uma grande
“Louvação”.
Palmilhei, com Assis Brasil,
“Beira Rio Beira Vida”,
no “Rio Subterrâneo”, mergulhei
com O. G. Rego,
andei, com Ibiapina, sobre “Palha
de Arroz”...
Rubervan foi quem me disse que se
“Grito, Logo Existo”
e decorei o arco-íros com os
“Cromos...” do Elmar.
A declamar, aprendi com o Chico
Castro,
com o RAL, Teresina, aprendi a
versejar;
fui menestrel com Tito Filho,
Alcenor e Adrião,
o Livro da Lei conheci na Igreja
do Tony,
pra mim, Monsenhor Chaves disse
que Cristo há de vir...
e sob o pulsar da Estrela
Flamejante,
Luiz Rocha me ensinou “Saga da
|Terra”,
e as coisas folclóricas lá do
Médio Itaim.
Declamei poema na Praça da Graça,
da carnaúba, vendi linho pro
Mestre Joaz,
conheci Fidié no Colégio de Maria
da Penha,
descobri que Deus habita no Delta
Sagrado,
sou profeta do amor de Otacília,
amada mãe,
lídimo apóstolo das palavras do
meu pai.
Bebi água do Barreiras, do Ingazeiras,
do Caldeirão...
tomei banho na Cachoeira do
Urubu,
decifrei os símbolos da Serra da
Capivara,
conversei com os Fenícios em Sete
idades...
conduzi, no lasso ombro, Santa
Cruz dos Milagres,
e lutei, e morri, e venci, e vi o
meu sangue,
ali no Jenipapo, naquela tarde
sangrenta,
regando as plantas e pastagens
e alimentando os carnaubais
dos verdes campos de Campo Maior.
Eu sou deste chão, moço,
de Cristalândia, de Corrente...
Orei contrito na Igreja de Picos,
joguei tarrafa no Rio Guaribas,
comprei cebola, alho e milho
na grande feira que nunca
esqueci.
Eu sou de Oeiras onde a Santa
Padroeira,
de braços abertos, no cume do
monte,
abençoa os poetas, o povo pacato
que habita a cidade.
Eu sou daqui de Valença onde a
crença
habita o coração de qualquer um;
dali de Aroazes, do Beco, do
Bambu...
e, no Barreiro da Velha Ana,
vi o Zuca imitar Luiz Gonzaga na
sanfona,
o Benedito Quinaria cuidar da
terra,
em sua roça, Joana e Ana
plantando cana,
enquanto eu namorava a serra
que vigia e protege a terra onde
nasci.
Eu sou deste chão, moço,
onde o Cabeça-de-Cuia,
no Encontro das Águas,
é o tormento das Virgens;
onde o Judas, no Sábado de
Aleluia,
é massacrado, queimado...
e cumpre sua sina,
enquanto o Bumba-Meu-Boi,
nos Festejos de Junho,
alegra as Noites de São João.
Eu sou deste chão, moço,
desta terra onde a relva
renasce e morre todo o ano...
como se quisesse dizer aos homens
que a vida é um ciclo
e que o
começo é o princípio do fim.
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