domingo, 5 de outubro de 2014

Seleta Piauiense - V. de Araújo


POEMA TERRA

V. de Araújo (1950)

Não me pergunte, moço,         

de onde eu vim nem para onde eu vou...

Eu sou daqui deste solo onde o sol,

o ano todo e todo o ano,

incide sem piedade;

deste barro cor de sangue

que, no tardio inverno,

se transforma em lama,

em cobertores, em tapetes de piçarra.

Não se preocupe, moço,

porque jamais negarei que sou deste chão,

que sou seu vizinho, que sou seu irmão,

e não nego o ar que respiro,

o feijão que comi, o cuscuz que cozi,

a rapariga que amei, a rapadura que roí,

e que, um dia, não comi

o pão que os deuses prepararam

e o diabo endiabrado amassou.

Eu sou deste chão, moço,

deste solo onde o homem encobre,

com o gibão de couro,

o couro que o patrão tirou;

deste chão onde o vaqueiro,

com sede, com fome,

abóia, canta e encanta...

enquanto a serra, Serra Negra,

como espelho mágico,

no recolher da boiada,

no despertar da coruja,

reflete o eco de sua alma;

deste solo que nutre com fogo,

com ferro... a vida do homem

que caça caçado, cansado,

o sustento da família.

Eu sou deste chão minado de mistérios,

onde as promessas são

o alimento dos ingênuos,

a desilusão dos velhos,

a esperança dos jovens

e o futuro incerto das crianças.

Por que me julgar se ando descalço,

se masco fumo, se tomo pinga,

se cuspo no chão?!

Será que tenho culpa se não me ensinaram

dominar a pena, lavrar a palavra,

ou desbastar a Pedra Bruta com que me deparei?!

Eu sou deste chão, moço,

deste solo onde você também nasceu...

do Parnaíba, da Parnaíba, do Igaraçu,

da Ilha Grande(de Santa Isabel);

da Barra Grande, da Atalaia ou Amarração,

do Coqueiro e da Pedra do Sal.

Sim, eu sou dali do Portinho

e conheço, muito bem, os mistérios das dunas,

o açoite dos ventos, o enigma dos mangues...

Comi caranguejo no Porto das Barcas,

ao crepúsculo, poemei a bela Estaiada,

fiz serenatas pra Ponte Metálica,

do Flutuante, flertei com Floriano,

convivi com a miséria na Ponte do Poti.

Mais que muitos, eu bem conheço a vida...

Na Paissandu, Osiel disse que o Tantan já foi “Estrela”,

“Fascinação”, pra mim não é nem foi “Helena”,

“Zélia do Rancho”, eu vi com “Bete” e “Margarida”,

“Maria das Neves”, eu conheci lá na Guarita

e , do “Monte Carlos”, “Meia-Noite”, divisei “Casa Amarela”.

Eu sou deste chão, moço,

de Therezina, cajuína, linda Esperantina...

e, no 4 de Setembro, no Teatro de Arena,

fui Romeu de Julieta que o vento levou.

Na Serafim, fui Rei Momo com a Nicinha,

preparei minha banda no Fundo de Quintal,

desfilei com o Paturi, Jaime Doido e Manelão...

e, no Troca-Troca, troquei sonho,

num dia de Carnaval, na Avenida Maranhão.

Eu sou deste chão, moço...

Já ouvi, de Herculano, “Murmúrios ao Vento”,

“Na Boca do Vulcão”, flagrei o Nelson meditando,

Ramsés, fatigado, eu vi... no “Percurso do Verbo”,

Zé Lorota e Dona Nilza encontrei filosofando,

de “Piripiri, à Sombra de Buganvílias e Madressilvas”,

vi Cléa Rezende, na Espanha, despertar Salamanca;

sob a brisa equórea, fui ver com Paulo a “Paz do Pântano”...

e, “Entre Caminhos”, com Ednólia, fui platônico

e declamei pra ela os “Poemas Que Neguei”.

Com o Júnior, filho meu, conheci harmonia,

disse-me Lucas: A vida sem Deus é jardim sem flores...

e, sozinho, com sua lanterna de ouro, vi Diógenes,

à procura de um HOMEM... em pleno meio-dia.

Com “Os Cavaleiros da Noite”, cavalgando, eu vi Garcia,

aprendi, com H. Dobal, viver “O Dia Sem Presságios”,

conheci Mauro Faustino – “O Homem e Sua Hora”,

penetrei com Hardi Filho, na “Gruta Iluminada”...

e, na piracema do verso, pescando ilusão,

feliz naveguei, com Chico Miguel, no “Universo das Águas”.

Eu sou deste chão, moço, e me orgulho...

Já trabalhei com Cineas na Oficina da Palavra,

de Da Costa e Silva, ainda sinto a “Saudade”,

de Leonardo das Dores, “A Criação Universal”,

segredo do mundo, não é mistério pra mim;

e, na Prainha, antes que se acabasse,

Kenard, “Pra Dizer Adeus”, chamou Torquato

que fez pra ela uma grande “Louvação”.

Palmilhei, com Assis Brasil, “Beira Rio Beira Vida”,

no “Rio Subterrâneo”, mergulhei com O. G. Rego,

andei, com Ibiapina, sobre “Palha de Arroz”...

Rubervan foi quem me disse que se “Grito, Logo Existo”

e decorei o arco-íros com os “Cromos...” do Elmar.

A declamar, aprendi com o Chico Castro,

com o RAL, Teresina, aprendi a versejar;

fui menestrel com Tito Filho, Alcenor e Adrião,

o Livro da Lei conheci na Igreja do Tony,

pra mim, Monsenhor Chaves disse que Cristo há de vir...

e sob o pulsar da Estrela Flamejante,

Luiz Rocha me ensinou “Saga da |Terra”,

e as coisas folclóricas lá do Médio Itaim.

Declamei poema na Praça da Graça,

da carnaúba, vendi linho pro Mestre Joaz,

conheci Fidié no Colégio de Maria da Penha,

descobri que Deus habita no Delta Sagrado,

sou profeta do amor de Otacília, amada mãe,

lídimo apóstolo das palavras do meu pai.

Bebi água do Barreiras, do Ingazeiras, do Caldeirão...

tomei banho na Cachoeira do Urubu,

decifrei os símbolos da Serra da Capivara,

conversei com os Fenícios em Sete idades...

conduzi, no lasso ombro, Santa Cruz dos Milagres,

e lutei, e morri, e venci, e vi o meu sangue,

ali no Jenipapo, naquela tarde sangrenta,

regando as plantas e pastagens

e alimentando os carnaubais

dos verdes campos de Campo Maior.

Eu sou deste chão, moço,

de Cristalândia, de Corrente...

Orei contrito na Igreja de Picos,

joguei tarrafa no Rio Guaribas,

comprei cebola, alho e milho

na grande feira que nunca esqueci.

Eu sou de Oeiras onde a Santa Padroeira,

de braços abertos, no cume do monte,

abençoa os poetas, o povo pacato

que habita a cidade.


Eu sou daqui de Valença onde a crença

habita o coração de qualquer um;

dali de Aroazes, do Beco, do Bambu...

e, no Barreiro da Velha Ana,

vi o Zuca imitar Luiz Gonzaga na sanfona,

o Benedito Quinaria cuidar da terra,

em sua roça, Joana e Ana plantando cana,

enquanto eu namorava a serra

que vigia e protege a terra onde nasci.

Eu sou deste chão, moço,

onde o Cabeça-de-Cuia,

no Encontro das Águas,

é o tormento das Virgens;

onde o Judas, no Sábado de Aleluia,

é massacrado, queimado...

e cumpre sua sina,

enquanto o Bumba-Meu-Boi,

nos Festejos de Junho,

alegra as Noites de São João.

Eu sou deste chão, moço,

desta terra onde a relva

renasce e morre todo o ano...

como se quisesse dizer aos homens

que a vida é um ciclo
 e que o  começo é o princípio do fim.     

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